Narrativas

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Descolonizando o dinheiro em Porto Rico

O projeto Valor y Cambio

Frances Negrón-Muntaner

Desde 2006, Porto Rico tem passado por crises de dívida que chegaram a mais de 127 bilhões de dólares e que resultou em aumento de taxas de pobreza, migração em massa e cortes em serviços públicos essenciais. Em resposta, a acadêmica e artista Frances Negrón-Muntaner colaborou com a também artista Sarabel Santos Negrón para lançar a moeda comunitária do projeto Valor y Cambio. O projeto é uma investigação sobre o que os moradores de Porto Rico, e da diáspora porto-riquenha, valorizam e uma forma de repensar a própria noção de “economia” e suas dimensões políticas. Diante dos enormes protestos nas ruas de Porto Rico no mês de julho, o projeto se provou profético. Negrón-Muntaner, que também é curadora, cineasta, e professora na Universidade de Columbia, explica a primeira fase da iniciativa, que ocorreu entre 8 e 17 de fevereiro em Porto Rico. Atualmente, o projeto está em Nova Iorque, onde permanece durante o outono.

O que é “Valor y Cambio”?

Valor y Cambio é uma narrativa interativa e um projeto de moeda comunitária que busca desafiar as políticas de austeridade em Porto Rico (e em outros locais) através da investigação sobre o que os participantes valorizam e da implantação da moeda comunitária, Personas de Pesos Puerto Rico ou apenas pesos, como uma maneira de compartilhar histórias valiosas e praticar uma economia baseada em trocas.

Para iniciar o projeto, criamos uma série inicial com seis “cédulas” de 1 a 25 pesos com imagens de figuras históricas de Porto Rico e uma comunidade icônica. Nós também reconfiguramos um caixa eletrônico, que chamamos de VyC (acrônimo para Valor y Cambio), para que gravasse as histórias das pessoas e disponibilizasse as cédulas do projeto. Para obter uma cédula, o VyC pedia ao participante que falasse sobre o que tem valor, e sobre quais pessoas ou grupos já representam  este valor. Os participantes podem então trocar estas cédulas por itens em estabelecimentos e organizações localizadas em vários bairros e cidades, incluindo San Juan, Caño Martín Peña, Bayamón, Rio Piedras, Cupey, Miramar, Humacao, e mais tarde, Nova Yorque.

Em geral, o projeto busca estimular o diálogo sobre o que chamamos de “economia”. De um lado, estamos questionando a ideia de que os recursos de uma comunidade deveriam ser usados para promover o sucesso de indivíduos ao invés do bem-estar coletivo. De outro, queremos enfatizar que a “economia” não é apenas sobre produção ou trabalho, mas também sobre subjetividades, possibilidades políticas, e sobre como as pessoas se relacionam umas com as outras.

"O projeto busca estimular o diálogo sobre o que chamamos de “economia”. De um lado, estamos questionando a ideia de que os recursos de uma comunidade deveriam ser usados para promover o sucesso de indivíduos ao invés do bem-estar coletivo. De outro, queremos enfatizar que a “economia” não é apenas sobre produção ou trabalho, mas também sobre subjetividades, possibilidades políticas, e sobre como as pessoas se relacionam umas com as outras."

O que é uma moeda comunitária?

Uma moeda comunitária ou moeda complementar é uma criada por comunidades, indústrias ou grupos em função de suas demandas específicas de troca. Moedas comunitárias variam grandemente: podem ser organizadas como banco de tempo, onde sua unidade de valor é tempo, ou apoiadas por moedas nacionais. Em geral, elas não substituem a moeda nacional (ou principal), mas oferecem maneiras de fortalecer a atividade local e construir economias solidárias não baseadas em lucro ou acumulação. Existem numerosas moedas comunitárias circulando ao redor do mundo, apenas na Espanha são aproximadamente 300.

Nossa iniciativa também vê o uso de moedas comunitárias como um desafio à ideia de que comunidades, grupos, ou pessoas com pouco acesso a economia formal ou dominante são inerentemente pobres. Apesar do fato de que não ter um emprego nesta economia pode significar menos acesso a produtos e serviços básicos, muitas comunidades chamadas de “pobres” podem ser ricas em suas formas de construir conexões entre pessoas, ou também em recursos e competências em variadas áreas como engenharia, assistência médica, agricultura ou artes. Moedas comunitárias podem facilitar as trocas destas competências e conhecimentos em benefício de comunidades e regiões.

Além disso, em um Mercado cativo como Porto Rico, onde os Estados Unidos e empresas transnacionais dominam e extraem enorme riqueza, as moedas comunitárias podem ter um impacto adicional: uma vez que as cédulas circulam apenas em Porto Rico e diáspora, elas incentivam apenas economias locais, ao invés de enriquecer grandes corporações. É assim que são utilizadas em locais como Bristol, na Inglaterra, e em Fortaleza, Brasil. Além disso, moedas comunitárias abrem a possibilidade para que os moradores desenvolvam sua própria política monetária e, assim, reconhecer coletivamente e validar as coisas que tem valor.

Vejo, por exemplo, grande potencial em utilizar moedas comunitárias para valorizar e apoiar o trabalho não reconhecido de cuidado e reprodução de vida que as mulheres geralmente desempenham e como uma maneira de incorporar idosos e outros membros da comunidade que tem tanto a oferecer, mas que na economia atual são considerados como "excedente".

Como Valor y Cambio começou?

Pra mim, foi uma combinação de descobertas e perguntas. Uma delas ocorreu no ano passado quando Vanessa Pérez-Rosario, editor da Small Axe me entrevistou sobre o trabalho que eu fazia sobre dívida impagável, um grupo de pesquisa sobre dívida global que co-dirijo na Universidade de Columbia (Nova Iorque). Por três anos, o grupo se dedicou ao estudo da crise econômica da ilha em contexto global e comparativo. O processo me fez pensar sobre um conceito sobre o qual eu não havia dedicado muito tempo antes: dinheiro. O que é dinheiro? Como se adquire valor? Como dinheiro pode ser uma estratégia para reconfigurar a economia predominante? Eu compreendia que apesar de dinheiro em si não ser “nada”, ele pode contar histórias, reconfigurar conexões humanas e fazer parte de mudança política.

Uma segunda descoberta surgiu ao ler sobre como, em 2013, enquanto a Irlanda ainda lidava com a crise de 2008, o governo promoveu um diálogo sobre o que as pessoas valorizam para desenvolver um novo programa e informar políticas. Percebi que este debate ainda não havia acontecido em Porto Rico, mas ele parecia muito urgente.

A Terceira tinha a ver com arte. Desde o início, nosso grupo de trabalho identificou as artes como uma das práticas chave para imaginar e compartilhar outras formas de pensar e agir diante de crises de austeridade e eu também percebi que projetos de economia solidária são frequentemente iniciados por artistas. Com isso em mente, ano passado organizei uma exposição chamada Puerto Rico Under Water: Perspectivas artísticas sobre a crise da dívida na Gallery of the Center for the Study of Ethnicity and Race, da Universidade de Columbia. O processo de curadoria foi uma confirmação de que artistas desenvolviam trabalhos importantes na investigação sobre os efeitos da dívida, permitindo distintos relacionamentos sociais e desafiando discursos dominantes. Igualmente importante, este processo me aproximou do trabalho de Sarabel Santos Negrón, uma das artistas da exposição, que produziu uma série de fotografias que documentam o que chamamos de “escombros" da crise da dívida. Após a exposição, falei com Sarabel sobre a ideia da moeda. Ela imediatamente concordou em colaborar e começamos a trabalhar no design das cédulas.

O fato de utilizarmos personagens históricos nos permitiu sugerir que, apesar dos desafios atuais serem formidáveis, o país enfrentara desafios durante toda a sua história e há muito conhecimento, debates e perspectivas sobre eles. Neste sentido, o valor de relembrar histórias não é apenas destacar o que as pessoas “fizeram”, mas refletir sobre as formas que estes desafios podem nos informar sobre o presente.

"Vejo, por exemplo, grande potencial em utilizar moedas comunitárias para valorizar e apoiar o trabalho não reconhecido de cuidado e reprodução de vida que as mulheres geralmente desempenham e como uma maneira de incorporar idosos e outros membros da comunidade que tem tanto a oferecer, mas que na economia atual são considerados como "excedente".

As cédulas são lindas, como isso foi feito?

Sarabel e eu estudamos moedas nacionais, sociais e artísticas de todo o mundo. Neste processo, vimos muito potencial na moeda para contar outras histórias e circular outros valores. Nós também conduzimos pesquisas informais com pessoas que vivem em Porto Rico e na diáspora. Perguntamos que personagens, comunidades ou lugares incorporam os valores que consideramos fundamentais para o projeto – equidade, justiça, solidariedade e criatividade – e isso nos permitiu discutir questões cruciais da atualidade como educação pública, acesso a assistência médica, meio ambiente, autogoverno, segurança alimentar, justa distribuição de riquezas e equidade racial e de gênero.

Foi difícil selecionar apenas seis histórias. No final, escolhemos personagens do passado e comunidades atuais cuja atuação refletem esses valores e que foram enriquecedores para a vida de outras pessoas. Eles são (geralmente, em ordem de nascimento): os irmãos Gregoria, Celestina and Rafael Cordero; Ramón Emeterio Betances, Luisa Capetillo, Julia de Burgos, Roberto Clemente e as oito comunidades de Caño Martín Peña, um bairro de 25.000 habitantes próximo ao distrito financeiro de San Juan. Outro aspecto do design foi que inserimos um QR code no verso das cédulas. Este elemento é parte fundamental nas trocas que o projeto ativa: Em contrapartida por nos contar sobre o que eles valorizam, o código direciona os participantes ao nosso site para obter mais informações sobre os personagens e comunidades que nós valorizamos.

"O fato de utilizarmos personagens históricos nos permitiu sugerir que, apesar dos desafios atuais serem formidáveis, o país enfrentara desafios durante toda a sua história e há muito conhecimento, debates e perspectivas sobre eles. Neste sentido, o valor de relembrar histórias não é apenas destacar o que as pessoas “fizeram”, mas refletir sobre as formas que estes desafios podem nos informar sobre o presente."

Porque não criar uma moeda virtual?

Apesar de estarmos na era de moedas digitais e especulativas, como BitCoin, escolhemos uma moeda de papel, que pode circular de mão em mão. Achamos que isso poderia ser usado para despertar conversas e facilitar o surgimento de novas perspectivas coletivas. E foi isso que aconteceu. Os participantes do projeto as vezes comparavam ou trocavam cédulas enquanto esperavam em filas e compartilhavam ideias e anseios. Isso não significa que uma moeda comunitária “deve” ser de papel. Existem exemplos virtuais como a de Ossetana em Andalucia. Como tudo que tem a ver com moedas virtuais, seu design e modo de circulação deve responder às demandas de seus usuários.

Quantas cédulas entraram em circulação?

Nos nove dias do projeto em Porto Rico, aproximadamente 1600 cédulas de várias denominações circularam. (…) Pequenos empreendimentos tiveram a circulação das cédulas de maior valor controladas, mas eventualmente percebemos que esta precaução não era necessária. Descobrimos que a maioria das pessoas queria ficar com as cédulas ao invés de trocá-las por produtos ou serviços. Para alguns participantes, o que a cédula representava excedia seu valor de troca.

Porque você acha que isso aconteceu?

Ainda vamos refletir a respeite disso nos próximos meses, mas minha intuição/impressão até o momento é de que as pessoas ficaram com suas cédulas para valorizar a si mesmos e às suas comunidades. E nós podemos contextualizar essa resposta de várias maneiras. Uma é que a moeda usada em Porto Rico não é simplesmente a de outro país, mas a moeda de uma nação colonizadora, que apenas inclui imagens de personagens históricos masculinos, que se identificam como brancos, representantes do Estado e/ou agentes de políticas genocidas racistas ou heterosexistas. A ideia de uma moeda que circula imagens e histórias de mulheres, negras, porto-riquenhas, imigrantes e filhos de imigrantes, escritores, médicos, educadores, atletas, pensadores, feministas, líderes sindicais; tanto indivíduos como famílias e comunidades; afirmou que existem outras formas de contar e de atribuir valor. E o projeto fez isso utilizando um dos mais poderosos símbolos do colonialismo Americano em Porto Rico: dinheiro.

Também penso que para algumas pessoas, as cédulas significaram a possibilidade de um Porto Rico mais justo, inclusivo e equitativo no presente. Assim, considerando que esta etapa do projeto durou apenas alguns dias e houve dúvidas sobre se ele seria estendido, a maioria das pessoas escolheu guardar as cédulas como um símbolo. Se dinheiro é a “promessa” de pagamento e a implementação de austeridade em Porto Rico foi definida por uma lei chamada PROMESA, as cédulas representavam um diferente tipo de promessa.

Qual é a próxima etapa de Valor y Cambio?

A próxima etapa é o compartilhamento de nosso aprendizado com o processo e com as respostas. Vamos fazer isso de três formas: com um relatório sobre o conteúdo das gravações, com um vídeo-documentário sobre a trajetória do projeto, e com outras atividades públicas, como conversas ou palestras em diferentes espaços. Também sabemos que muitas pessoas da Ilha não puderam participar e desejam se envolver, especialmente fora da área metropolitana de San Juan. Atualmente estudamos como alcançar esta meta.

Como medem o sucesso do projeto?

É difícil falar sobre sucesso, pois os efeitos podem demorar bastante tempo para se manifestar ou podem não ser o que imaginamos. Porém, medidos por valor e objetivos imediatos do projeto, é possível dizer que Valor y Cambiofoi um sucesso como um primeiro diálogo, pois quase todos queriam participar, ainda que pudesse significar “perder” dinheiro ou tempo. E apesar da primeira fase do projeto ter durado apenas nove dias, milhares de pessoas participaram diretamente, online e em plataformas de mídia social. Como resultado, em um curto período de tempo, o projeto ampliou o diálogo sobre economia solidária, apresentou a ideia de uma moeda comunitária e seus possíveis usos em Porto Rico.

Além disso, quase imediatamente assim que o projeto iniciou, eu comecei a trabalhar com quatro comunidades que estão considerando adotar suas próprias moedas e desenvolver economias de trocas interligadas na ilha e em diversas cidades americanas. Uma destas comunidades terá o lançamento de sua moeda em breve em Porto Rico. Ademais, apenas três meses após o início do projeto, diversas organizações convidaram Valor y Cambio para se evolver em Porto Rico e outras comunidades em Nova Iorque.

O projeto também gerou um certo entusiasmo ou o que estou chamando em um futuro artigo de “entusiasmo decolonial”, que define como uma emoção de duração variável que resulta de quando as pessoas têm um vislumbre de um futuro distinto, onde nem o colonialismo, nem a colonialidade domina suas vidas. Isso sugere que, ao contrário da profunda crença de que porto-riquenhos são apáticos, politicamente passivos, ou que lhes falta visão coletiva, há em muitos um profundo anseio por uma sociedade diferente e por maneiras para conexões humanas diferentes.

Assim, Valor y Cambio mostrou não apenas que novos mundos são possíveis, mas que podemos viver neles todos os dias, inclusive através de pequenos gestos como imaginar uma moeda, compartilhar histórias, lhes atribuir valor uns aos outros.

Desde a semana passada, porto-riquenhos foram às ruas para exigir a renúncia de seu governante como o resultado de variadas ofenças, incluindo corrupção, políticas de austeridade e negligência após o Furação Maria. Você identifica ligações entre o projeto e os protestos?

Sim. Ao longo dos protestos comecei a ver sinais de que Valor y Cambio era um dos seus muitos catalizadores. É possível dizer que os protestos demonstraram diversas formas de colocar em prática o que valor e mudança podem significar. Em suas formas de organização, seus objetivos e sentimento, os protestos compartilham os valores centrais de Valor y Cambio: solidariedade, justiça, equidade e criatividade.

Mais especificamente, ambos Valor y Cambio e a campanha “Ricky Renuncia” se lançaram com a convicção de que, a pesar de obstáculos formidáveis, a mudança está “em nossas mãos”. Semelhantemente, ambas as iniciativas afirmaram que a prática artística tem um importante papel na geração e compartilhamento de novos repertórios de crítica e a que a mudança exige novas subjetividades e distintas formas de relações sociais.

Por fim, embora Valor y Cambio não seja uma campanha e tenha outros objetivos, assim como os protestos, o projeto está plantando sementes para um futuro diferente. Embora no momento o futuro permaneça incerto, milhões de porto-riquenhos agora sentem que têm um futuro e estão dispostos a lutar por ele. Isso torna a pergunta sobre o que você valoriza e sobre como agir mais urgente do que nunca.


original em Inglês

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