Resenha

periferias 4 | escola pública: potências e desafios

ilustração: Juliana Barbosa

Ensinar a transgredir

de bell hooks

Vinebaldo Aleixo de Souza Filho

| Brasil |

2 de dezembro de 2019

Uma pedagogia engajada de mãos dadas com a prática da liberdade1bell, hooks. Ensinando a transgredir – a educação como prática da liberdade. Martins Fontes. São Paulo, 2013 [1994].

Imagine que uma pensadora negra estadunidense, intelectual, ativista, com décadas de experiência de ensino em diferentes instituições, tocasse a campainha de sua casa ou visitasse à sua escola, universidade, coletivo, restaurante... e começasse a conversar com você sobre os desafios e potências do ato de ensinar como prática da liberdade, sobre os elos entre pedagogia crítica e budismo engajado, pensamento feminista, erotismo, sexualidade e embates de classe social em sala de aula, entre outros temas que pudessem surgir dessa interação? E se além disso, ela falasse do tédio nas aulas universitárias e da necessidade de se cultivar o prazer de ensinar, do entusiasmo como ferramenta pedagógica, entre outros temas, numa prosa que navega com fluência entre o pessoal e o acadêmico? Essa pensadora é bell hooks, destacada intelectual, pensadora e ativista do feminismo negro, com mais de 30 livros publicados. E o livro que permitiria o diálogo imaginário acima é Ensinando a transgredir – a educação como prática da liberdade - coletânea de ensaios que trazem estes temas e outros mais num estilo narrativo fluído que muito tem a dizer sobre a realidade educacional brasileira atual.

Escrito em 1994, e lançado no Brasil em 2013, esta obra antecede a maré crescente de novas publicações da autora que chegam ao mercado editorial brasileiro, como O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, de 2018, Olhares negros – raça e representação; Erguer a voz – pensar como feminista, pensar como negra, ambas de 2019, para ficar apenas em três títulos que são também coletâneas de ensaios. Nestas obras, reconhecemos a prosadora de escrita cristalina, a analista aguda das representações culturais e artísticas do ponto de vista racial e a pensadora e ativista do feminismo negro estadunidense.

Todavia, a originalidade desta obra é revelar a face pouco conhecida de bell hooks, ao menos para o público brasileiro. Aqui, as qualidades ressaltadas no parágrafo anterior estão entrelaçadas à docente, que revisita seu passado como aluna no sul dos Estados Unidos, a crise enfrentada ao ver-se efetivada no departamento de inglês do Oberlin College, “fui assombrada pelo sonho de fugir - de desaparecer - até mesmo de morrer”2bell hooks, Ensinando a transgredir, p. 09. ), posto que sonhava mesmo em ser escritora e não educadora, como ela diz no capítulo introdutório, até se tornar a professora com mais de 20 anos de experiência e que vê na educação uma missão política, entrelaçada ao ato de escrever de modo acessível para diferentes públicos sobre raça, gênero, classe social e descolonização. 

Nos 14 ensaios que compõem esta coletânea a autora abre sua “caixa de ferramentas” para revelar estratégias, dificuldades e influências no processo de se fazer professora dentro e fora da sala de aula. Os textos foram escritos em momentos diferentes e para diferentes públicos, por isso, diversos temas se repetem ao longo do texto. O livro é voltado tanto aos/às educadores/as quanto aos/às estudantes, uma vez que bell hooks, aborda tanto seu ponto de vista como professora, quanto como aluna em diferentes contextos e momentos de sua vida. Podemos acrescentar, ainda, que o livro certamente é valioso para todos/as que veem na educação – formal e não-formal – uma maneira de ampliar nossa capacidade de exercer liberdade, como sujeitos históricos.

Na geografia dos capítulos a introdução tem um papel-chave, pois a autora revisita os anos de sua formação, passando pela infância no sul segregado racialmente dos EUA, à adolescência no contexto de dessegregação racial. Entre um contexto e outro, há um divisor de águas. Enquanto nas escolas segregadas negras, a maioria das professoras eram mulheres negras, o ensino era anticolonial, antirracista e a educação era voltada para a prática da liberdade. Com o fim da segregação racial (em meados da década de 1960), as escolas comuns são composta pela maioria de docentes brancos, a construção de conhecimento é reduzida a transmissão de informações, além das aulas acabarem por reproduzir estereótipos raciais. Em seguida, bell hooks narra seu período de graduação (momento em que também começa a lecionar) e pós-graduação.

Um dos pontos mais interessantes de sua formação como educadora ocorre nesse período. Primeiro porque nota que as aulas eram entediantes - o entusiasmo, a alegria de ensinar não era sequer cogitado. Aliás, em diversos ensaios ela critica a noção generalizada acadêmica de que uma boa aula precisa ser séria e centralizada no poder de fala docente. “Entrar numa sala de aula de faculdade munida da vontade de partilhar o desejo de estimular o entusiasmo era um ato de transgressão”3 Ibidem, p. 17. . Outro ponto de virada em sua trajetória ocorreu na graduação quando a autora tomou contato com as obras do brasileiro Paulo Freire, que segundo a autora, forneceu a linguagem política em um momento em que ansiava tornar-se uma intelectual negra insurgente. “Quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire, meu primeiro contato com a pedagogia crítica, encontrei nele um mentor e um guia, alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador”4 idem, p.15. . Nesse período uma frase de Freire tornou-se seu mantra, diz, não se entra na luta como objeto para se tornar sujeito depois. 

Em obras como Pedagogia do Oprimido, Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo, Por uma Pedagogia da Pergunta (composta de diálogos entre Freire e Antonio Faundez), bell hooks menciona que sentiu profunda empatia e identificação com os escritos freireanos, uma vez que ela própria possui origem rural e vivenciou a ligação profunda de suas antigas professoras negras do secundário com a educação como prática da liberdade. Além das obras, a autora conheceu pessoalmente Freire, primeiro em um seminário em uma universidade em que ela lecionava. Naquele momento, bell hooks o criticou por notar uma linguagem sexista em seus textos. Paulo Freire não só acatou as críticas, como argumentou que iria estar atento a estes aspectos em suas obras subsequentes. O que realmente ocorreu. Para a autora, a partir desse momento passou a amar o educador brasileiro, uma vez que ele evidenciou com o próprio comportamento um de seus ensinamentos, a coerência entre teoria e a prática. Além de permear diversas discussões ao longo do livro, Paulo Freire é o tema central do capítulo 4, em que a autora cria uma entrevista imaginária e afetiva, em que Glória Watkins (nome de batismo da autora) entrevista bell hooks (nome que adota como forma de homenagear sua bisavó materna), sobre o impacto da obra freireana em sua produção.

Ilustração: Juliana Barbosa

II

Um dos aspectos centrais de toda a obra é a maneira como a autora constrói sua concepção de Pedagogia Engajada, tema principal do capítulo 1. Esta forma de ver a educação, formada ao longo do tempo, é resultado da confluência de múltiplas fontes: a pedagogia crítica de Paulo Freire, o antirracismo, o feminismo e uma abordagem holística do aprendizado, em que não só a cognição é importante, mas os aspectos espirituais e anseios individuais dos/as estudantes. Neste último caso, ela cita ao lado de Freire a importância de outro mestre,  o budismo engajado do monge vietnamita Thic Nhât Hanh.

O capítulo 2 e 3 abordam o multiculturalismo. No primeiro deles, intitulado Uma revolução de Valores, seu principal interlocutor é Martin Luther King. Ali, são discutidos os requisitos e desafios fundamentais para uma sala de aula multicultural. Estar preparado e disposto a Abraçar a mudança (título do capítulo 3), construir espaços formativos de trocas de experiências e medos, questionar a educação bancária, entre outros temas, são abordados. bell hooks destaca diversas vezes ao longo do livro que não basta apenas mudar o conteúdo do currículo, mas é necessário alterar hábitos e atitudes. No caso do multiculturalismo, abraçar a mudança requer uma “verdadeira revolução dos valores”, conforme salientou King, citado pela autora.  

Os capítulos 5 e 6 abordam a centralidade da experiência na formulação pedagógica da autora. No primeiro, A teoria como prática libertadora, bell hooks defende que a teorização a partir da dor e da luta pode ter um potencial de autorrecuperação e libertação coletiva, em que a teoria e a prática estão juntas. Usando exemplos pessoais e outros estudos, argumenta que as crianças podem ser grandes teóricas, na medida em que são capazes de fazer questionamentos e colocar em dúvidas diversos aspectos que na vida adulta tendemos a naturalizar, como o sexismo e o racismo. Destaca ainda, neste capítulo, a importância de teorias que podem ser compartilhadas de forma oral e escrita. Ao refletir sobre seu pensamento feminista afirma: “Para mim, essa teoria nasce nasce do concreto, de meus esforços para entender a vida cotidiana, de meus esforços para intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas”5 Idem, p.97. . Com isso, busca fazer a teoria feminista ser acessível para diferentes públicos. O que resulta na possibilidade de mais gente aderir ao feminismo. 

Já o capítulo 6, Essencialismo e experiência, defende a ideia de que a partilha de experiências pessoais em sala de aula, de um modo não essencialista, é uma maneira que criar uma comunidade escolar de aprendizado em que todos se interessam pelas discussões, pois sentem que os conteúdos discutidos possuem vínculos e respondem a inquietações de suas próprias vidas. Além disso, argumento que a habilidade de fluir entre o pessoal e o cotidiano para o acadêmico permite potencializar a capacidade de aprender

A discussão sobre solidariedade feminista entre mulheres negras e brancas estadunidenses, o pensamento feminista e acadêmicas negras são abordados nos capítulos 7, 8 e 9, respectivamente.

Vale destacar o capítulo 10, A construção de uma comunidade pedagógica. Feito na forma de diálogo entre um educador branco e uma educadora negra, Ron Scapp e bell hooks, como forma de criar diálogos solidários e políticos entre intelectuais de gênero e raça distintos, que ousaram romper essas fronteiras para colaborar em torno de visões de mundo comuns. Partindo da concepção comum da pedagogia como prática da liberdade, esses dois professores trocam ideias a respeito de suas trajetórias e concepções de educação e aula. A ideia mestra que defendem é que para construir uma comunidade pedagógica, tendo como princípio uma pedagogia engajada, é necessário transformar a estrutura pedagógica do ensino, como o currículo. Porém é preciso ir além e transformar atitudes, pois uma aula de conteúdo progressista pode ser dada de modo conservador e autoritária. Em outras, palavras Ron Scapp e bell hooks defendem que não só o conteúdo precisa ser emancipado, mas também a prática de ensino.

Outros temas abordados nesse livro são a relação entre o ensino da língua inglesa e descolonização em A língua (capítulo 11), classe social em Confrontação da Classe Social na sala de aula (capítulo 12) e sexualidade em Eros, erotismo e o processo pedagógico (capítulo 13).

O último ensaio, Êxtase, é uma reverência à “arte de ensinar”. Embora a autora destaque o desgaste físico e emocional que o ensino de uma pedagogia engajada implica, devido por exemplo a maior popularidade dessas aulas frentes as tradicionais aulas da educação bancária. O que paradoxalmente, reconhece, dificulta transformar a sala de aula numa experiência de comunidade de aprendizado em que todos podem se expressar, ouvir e ser co-responsáveis pela aula. Apesar disso, bell hooks, termina seu livro com estas palavras:

A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade.” (hooks, 2013, p.273)

Em tempos extremos como o que vivemos no Brasil e no mundo com a ascensão de forças conservadoras no cenário político, em que o próprio livre pensar, progressista e engajado, dentro e fora das escolas, estão sob ataques, bell hooks nos convida a pensar o território da educação, em sentido amplo, como exercício da liberdade. Por isso, esse livro é tão atual.


 

Vinebaldo Aleixo de Souza Filho | Brasil |

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Unicamp

vinealeixo@gmail.com

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