Entrevistas

periferias 4 | escola pública: potências e desafios

ilustração: Juliana Barbosa

Ricardo Henriques

"Uma agenda propositiva na escola pública: produção de sentidos e ações pela disputa da equidade"

Patrícia Santos

| Brasil |

2 de dezembro de 2019

Patrícia Santos: Quais marcos você destacaria sobre a construção do mito do fracasso escolar e superioridade da escola privada em relação a pública?

Ricardo Henriques: Há uma leitura disseminada que gera uma enorme dificuldade para o avanço da agenda da escola pública republicana e laica, a de se basear nessa afirmação de que a escola pública não conseguiria ensinar e o estudante não conseguiria aprender. A visão organizada dessa forma é obviamente a da expressão de um preconceito que tenta atribuir à escola pública algum traço essencial de impossibilidade de realizar sua missão. Em geral, essa leitura expressa, por um lado, certa manipulação das evidências e, por outro, um acordo fácil sobre um senso comum que tem muita dificuldade de reconhecer, no campo público, a responsabilidade para com uma política de qualidade, em particular na educação.

Há um ambiente que negocia e dialoga com essa banalização da leitura da escola pública, que coloca esse atributo de uma incapacidade de formar o estudante, como um atributo essencial.  Certamente é uma expressão, ou de má fé, de um não-compromisso com as evidências, ou de um certo jogo oportunista, que, de alguma forma, ratificaria o padrão de desigualdade que temos.

Essa visão alegórica que coloca a escola pública em uma posição de escanteio, que em última instância, seria uma posição de impossibilidade, é da mesma natureza do ato de olhar para o fenômeno social brasileiro e dizer que o ambiente dos espaços populares é o ambiente da carência, o ambiente da ausência, é a mesma matriz analítica que coloca territórios populares e escola pública em situações reféns de uma condição de impossibilidade. "Dizer que o ambiente dos espaços populares é o ambiente da carência, o ambiente da ausência, é a mesma matriz analítica que coloca territórios populares e escola pública em situações reféns de uma condição de impossibilidadeAssim como temos,  nos espaços populares, enorme situações de potência, a escola pública também tem total capacidade de gerar resultados consistentes.

Assim como temos,  nos espaços populares, enorme situações de potência, a escola pública também tem total capacidade de gerar resultados consistentes. Dito isso, não podemos negar a enorme dívida histórica que temos, o déficit que temos também de desempenho e o que temos que enfrentar de forma acelerada. Temos de separar algumas coisas, por exemplo, entender as diferenças entre as condições de funcionamento das escolas, do perfil dos estudantes e as relações de contexto, em que temos situações relativamente perversas. Para exemplificar, uma escola situada em ambientes com alta violência urbana, qual é o efeito perverso decorrente?

Em regra, as redes públicas de ensino têm um processo de escolha dos professores mais experientes sobre a sua locação, com expectativas que se dê em função de algo minimamente razoável, que é da escolha se dar pela distância da moradia do professor ou professora em relação à escola. Essa hipótese é razoável. É bem interessante que a pessoa possa ter essa capacidade, mas o que acontece? Professores mais experientes acabam não escolhendo áreas que são de violência urbana intensa.

"Essa leitura expressa certa manipulação das evidências e um acordo fácil sobre um senso comum que tem muita dificuldade de reconhecer, no campo público, a responsabilidade para com uma política de qualidade, em particular na educação.

Então, inicia uma profecia auto realizadora, olhando exclusivamente essa dimensão de territórios violentos e da escolha dos professores mais experientes de não irem para esses territórios. Portanto, professores e professoras menos experientes vão para essas escolas. E é comum também que essas escolas que estão em ambientes violentos também tenham histórico de vulnerabilidade social e alta defasagem "ano-série-idade" dos estudantes. Assim se estabelece uma correlação de fatores que dificultam enormemente o trabalho pedagógico. Também existe escolas que fazem seleção no perfil inicial dos seus alunos. As escolas caras, privadas que, pelo recurso econômico, exercem um viés de seleção dos seus estudantes, em geral filhos de famílias com alta escolaridade.

Também tem as escolas públicas que fazem exame de seleção para sua entrada, que são tipicamente escolas técnicas. Essas escolas não expressam a realidade heterogênea de um território e trazem para si o estudante com menos defasagem "série-idade" e os estudantes com mais desempenho. Essas escolas são também escolhidas por professores mais experientes. Então, você coloca tanto nas privadas, quanto nas públicas, que têm esse viés de seleção, melhores alunos na largada e professores mais engajados. A desigualdade é evidente nessa situação.

"Tanto as privadas, quanto as públicas,  têm esse viés de seleção, de melhores alunos na largada e professores mais engajados. A desigualdade é evidente nessa situação."

Então, o que a gente precisa pensar? Desmontar essa certa naturalização da escola pública como um lugar de impossibilidade. Temos de criar condições adequadas para práticas em escolas em situação de vulnerabilidade quanto à geração de resultados mais positivos. O que é evidentemente trabalhoso, pois estamos em uma sociedade radicalmente desigual, uma sociedade com vários traços estruturais dessas desigualdades. Algumas analogias feitas com experiências internacionais perdem a aderência possível de tomadas de decisões de política pública pois são analogias com estados, com sociedades que têm níveis de desigualdade muito menores do que os nossos.

Quando você faz uma justaposição linear, sem adaptação nenhuma, sem nenhuma reflexão de customização, de adequação à nossa realidade de experiências, é óbvio o falseamento da capacidade de adaptação.

A Finlândia faz um movimento radical muito interessante de largada, que é o de valorização dos professores. A primeira grande virada dos anos 1970 é valorizar os professores e transformar a função de professor em uma função atrativa.  Do ponto de vista salarial, mas também socialmente, equivalente a outras profissões liberais. E aí começa a reverter a tendência que tinha de menor escolarização. No entanto, é óbvio que essa variável tem que ser feita no Brasil, valorizar os professores. Mas, a forma de valorização não é a mesma em uma sociedade tão desigual como a nossa.

Então, são várias adaptações fundamentais na seleção, talvez o traço mais importante seja pensar em gerar aprendizagem para todos, ou seja, gerar uma visão de equidade, com alto desempenho dos estudantes, conseguir que qualidade seja algo que se expresse em todos ficarem na escola e todos aprenderem aquilo que é necessário em termos cognitivos, todos aprenderem as dimensões de uma sociedade do conhecimento contemporâneo, inclusive, aprender a aprender -  e não só assimilar os conhecimentos cognitivos, mas estabelecer como fundamental entendermos a necessidade de, ao longo de todo o ciclo educacional, gerar igualdade de oportunidades. 

"Temos de criar condições adequadas para práticas em escolas em situação de vulnerabilidade quanto à geração de resultados mais positivos. O que é evidentemente trabalhoso, pois estamos em uma sociedade radicalmente desigual".

Existe uma leitura rasteira sobre igualdade de oportunidade, que seria a seguinte: basta resolvê-la no momento inicial, de entrada dos estudantes. Mesmo que fosse possível, pois não é trivial de ser feito, sem a devida atenção a esse processo, ao final do primeiro, segundo e terceiro ano, as desigualdades estruturais na sociedade serão novamente geradas. Então, a escola pública, com sua responsabilidade social, e dessa forma, ela é muito mais importante do que a escola privada, por ter a responsabilidade de gerar bens públicos, a escola pública deveria estar dedicada, de forma obsessiva e cotidiana, a reduzir a desigualdade ao longo de todo seu ciclo. Agora, a gente tem doze anos obrigatórios. Ao longo do ciclo de 12 anos a escola pública deveria estar atualizando ano a ano a redução das desigualdades e de oportunidade, melhorando a igualdade de oportunidade ano a ano.

E para que seja efetiva, implicará uma certa permanência de uma política de ações afirmativas cotidianas, capazes de verificar, a todo tempo, em que medida está aumentando ou não a desigualdade, em que medida está se desviando do vetor de produzir um bem público - o da excelência com equidade.

Essa vocação essencial da escola pública, a de produzir excelência com equidade, é o que a valoriza e a retira dessa situação de escanteio, desse mito da impossibilidade. Cria o campo da responsabilidade pública com os diretores de escola, com os professoras e professores, com a comunidade escolar e com a sociedade como um todo, para que exerçam  a vocação de gerar excelência com equidade.

"A vocação essencial da escola pública, a de produzir excelência com equidade, é o que a valoriza e a retira dessa situação de escanteio, desse mito da impossibilidade. Cria o campo da responsabilidade pública com diretores de escola, professoras e professores,  comunidade escolar e a sociedade como um todo"

Só pode ser vocação traduzida em prática se configurarmos  esse espaço da escola pública como republicana e laica. Há espaços para escolas privadas, escolas confessionais. Evidentemente, há espaço para escolhas, mas, majoritariamente, a escola pública, tem que assumir essa responsabilidade: o bem público essencial da escola pública é esse bem público de excelência com equidade, mas precisa ser de excelência para todos. Para lidarmos com isso não podemos negar os enormes desafios que temos em relação à qualidade da educação pública brasileira, mas há enormes sinais e várias evidências de que a escola pública, inclusive em contextos de muita adversidade, consegue gerar resultados, tanto de fixação de crianças e jovens na escola, como de aprendizagem. Um sintoma importante disso, desde quando temos métricas, é ver, mesmo na média de 2005 a 2017, nesse ciclo de avaliações externas feitas pelo Ministério da Educação, que as escolas públicas do Ensino Fundamental 1 têm uma performance crescentemente de melhora ao longo de todo o ciclo.

"A escola pública deveria estar dedicada, de forma obsessiva e cotidiana, a reduzir a desigualdade ao longo de todo seu ciclo." Do ponto de vista quantitativo, é a primeira expressão de que, no regime de escola pública universal, temos resultados totalmente consistentes em uma velocidade bastante razoável para o período, demonstrando que essa escola pública consegue entregar resultados, do ponto de vista dos valores e do desempenho, bastante relevantes.

 


 

Como contraponto a esse mito, quais caminhos ou experiências sistemáticas você destacaria nas redes estaduais e municipais, que valorizam a potência criativa dos sujeitos da escola pública, fortalecendo o exercício da cidadania e o diálogo com as questões do século 21?

Não acredito em um banco de práticas que sirva a um propósito de copiar práticas em realidades diferentes. A questão chave de boas práticas é identificar as práticas que funcionam e criar modos, métodos, parâmetros para adaptar o que funciona para outras realidades. Para fazer isso bem feito, é preciso mapear e registrar bem, levantar essas práticas e simultaneamente auxilia-las.

Há um conjunto de elementos que são chaves. O primeiro é uma expressão fácil de ser enunciada e muito difícil de ser praticada, que é a ideia de ter foco no estudante. Se a gente tiver foco no estudante, coerência e buscar a todo tempo aprender com a prática, começamos a ter condições para definir não só um movimento de melhoria dos resultados mas, mais ainda, de uma cultura de melhoria contínua da educação porque eu não posso me satisfazer só com ganhos no tempo.

É preciso um vetor estrutural, sobretudo em uma sociedade tão desigual como a nossa, voltado para uma gestão de avanço contínuo no sistema. As atores, como um todo, professores, diretores e até a comunidade, se comprometem com altas expectativas do estudante, mas começando a desenvolver capacidades de análise para entender quais são os desafios específicos e concretos em cada realidade, e como serão as adaptações voltadas para produzir essa ideia de altas expectativas. Então, é  preciso ter, na largada, à disposição, para qualquer funcionário, seja diretor, professor, o seguinte: para todos devemos ter altas expectativas.

"Com foco no estudante, coerência e buscando a todo tempo aprender com a prática, começamos a ter condições para definir não só um movimento de melhoria dos resultados mas de uma cultura de melhoria contínua da educação"

Essa questão-chave implica entender o valor absoluto do que se espera para aquele ano letivo, mas, entender, sobretudo, o valor relativo. Qual é a trajetória que cada estudante pode performar? Pois se a tentativa é gerar igualdade de oportunidade ao longo de todo o ciclo, deveríamos pautar  um projeto que, sabendo das defasagens com as quais meninas e meninos entram, mesmo no primeiro ano do ensino fundamental, qual será o momento em que projetaremos a escola como um todo, reduzindo as defasagens - algumas em meses, outra em anos. Com base de dados, capacidade de análise qualitativa, entrevista qualitativa com os pais no primeiro ano da escola primeiro ano do ensino fundamental. 

 


 

Como pôr em prática esse enunciado do foco no estudante?

A prática de conselho de classe discutindo só as dificuldades ligadas à indisciplina, falta de atenção, com variáveis associadas ao comportamento não esperado, não está focado no estudante, está focado nos constrangimentos que o cotidiano da escola gera e dificulta o seu trabalho.

Por outro lado, um conselho de classe que discuta quais são as regras de contexto, quais são as limitações, quais são os potenciais de aprendizagem, quais são as virtudes daquele mesmo estudante que tem muita potência em uma área e não tem na outra, essa leitura que está mais atenta aos desafios, às dificuldades do estudante, está focada no estudante.

O professor que dá, em regra, a aula que gosta de dar ou que sabe dar, é um professor que não está focado no estudante. Com professora e professor focados no estudante, a cada semestre, a cada início no ano letivo, entendem a configuração da turma, analisam as devolutivas pedagógicas do ano anterior, entendem, conversam com professores do ano anterior para saber em detalhamento sobre a turma, sobre alunos que passaram por outro professor, alunos que vieram de outra escola, alunos que foram reprovados e, assim, tenta construir o plano de aula adequado à configuração dessa turma de 30, 35, 40 alunos.

"Um conselho de classe que discuta quais são as regras de contexto, quais são as limitações, potenciais de aprendizagem, quais virtudes daquele mesmo estudante que tem muita potência em uma área e não tem na outra, essa leitura que está mais atenta aos desafios, às dificuldades do estudante, está focada no estudante."

Além disso, dar aula para a média da turma, é o nosso padrão mais usual. O que é dar aula para a média da turma? É uma aula que desinteressa aos melhores alunos e não engaja os alunos que têm mais dificuldade em determinada disciplina. Esse tipo de aula é uma aula que não está focada no estudante. Todo o processo de mudança de uma escola pública, realmente preocupada com altas expectativas, implica certamente focar no estudante. 

Outro exemplo: um ciclo de alfabetização. Não se alfabetiza no primeiro ano, pode ser em até três anos. O problema é que a leitura perversa é deixar, deixar e não se comprometer com a aprendizagem. Aí chega no final do terceiro ano, ninguém aprendeu nada. Mas se conseguirmos fazer isso ao longo do ciclo, as pessoas, as crianças que evoluem em velocidades diferentes, ao final dos três anos, todos estariam igualmente alfabetizados.

O conceito do ciclo é um conceito muito importante pois, a priori, está dando o entendimento de que o momento da entrada é bastante desigual e as trajetórias individuais também são desiguais, mas eu posso ao longo de dois ou três anos, dar conta da minha responsabilidade enquanto professor de adequar essa alfabetização. Na largada até o final do ensino médio. Focar no estudante é um ato muito difícil e trabalhoso, embora seja muito fácil  enunciar que educação é prioridade. "É preciso  ter, na largada, à disposição, para qualquer funcionário, seja diretor, professor, o seguinte: para todos devemos ter altas expectativas."

Tenho muita dúvida se a sociedade brasileira reconhece a educação como prioridade. Coloca, fala isso da boca para fora, mas a pratica muito pouco. De forma geral, nosso desafio é enorme. A escola como um todo, pública e particular, estão muito distantes do que a gente precisa para a sociedade do século 21.

 


 

E no contexto macro? Como concretizar o enunciado do foco no estudante?

Da sala de aula, partindo para o limite oposto: é preciso coerência na política pública, com alinhamento entre qualquer que seja o governo, estadual ou municipal, suas áreas regionais e a escola como um todo, como saída às soluções idiossincráticas. A gente precisa beber das experiências que funcionam para poder generalizá-las nas escalas de política pública municipal ou estadual. É preciso adaptar as boas práticas. Associado ao estado,  quer dizer o seguinte, que uma decisão de alocação de recursos do estado ou do município tenha que se dar em sintonia com os planos de ação da escola.

"É preciso coerência na política pública, com alinhamento entre qualquer que seja o governo, estadual ou municipal, suas áreas regionais e a escola como um todo, como saída às soluções idiossincráticas."

E o que temos que fazer? Aumentar a capacidade e qualificar esses planos das escolas. Isso significará que, quanto maior essa coerência, menor será a simples alocação de recursos para planos que estão ruins, embora será maior o apoio técnico para que planos ruins se transformem em bons, por meio uma inteligência instrucional que vise a produção de bons planos pelas escolas.

Quando esse ciclo virtuoso funcionar, identificando escolas com dificuldade de fazer seus planos, mais apoio por parte da secretaria será dado para aperfeiçoar os planos. Não é abandonar a escola, mas investir energia, tempo, equipe técnica para qualificar esses planos e aumentar essa coerência.

Obviamente, isso está associado, na visão macro, às coisas que funcionam, aos municípios que funcionam, aos estados que funcionam, e que, para tanto, é necessário uma disposição de política pública, uma vez que governança é essencial para a produção de um sistema único de educação, análogo, não idêntico e, portanto, inspirado no sistema da saúde e no sistema da assistência social.

Hoje, a ideia das responsabilidades compartilhadas, regime de colaboração, não tem sintonia para um sistema único. Então, quando não há sistema único, esse segundo elemento, de responsabilidades compartilhadas, é mais difícil de ser praticado. É difícil produzir coerência no interior, enquanto ainda não se tem um sistema integrado de educação. Devemos ter autonomia dos entes, mas o ideal, o desejado, seria que essa autonomia se desse dentro de um sistema minimamente coerente.

"Qualificar planos das escolas significará que, quanto maior essa coerência, menor será a simples alocação de recursos para planos que estão ruins, embora será maior o apoio técnico para que planos ruins se transformem em bons, por meio uma inteligência instrucional que vise a produção de bons planos pelas escolas."

Para produzir esse bem público para a garantia do direito para todos, não podemos negociar altas expectativas só para alguns. É um princípio que chega a ser visto na  escola privada. Porque a escola privada pode ter, por exemplo, excelência para alguns. A leitura da forma como se faz a divulgação do Enem é muito engraçada. Temos escolas que atraem as famílias fazendo duas sedes, dois registros. A escola do tipo A e a escola do tipo B. A mesma escola, com o mesmo nome, a escola X, mas com dois campus, inclusive separados fisicamente e contando com seleção interna. Colocam excelentes alunos no campus A, já outros alunos que não são os excepcionais, não são excelentes, no campus B. Obviamente, os alunos do campus A entram nos primeiros lugares do Enem, mesmo que sejam 30 alunos. No total são 500 alunos. Mas tem a escola do tipo A, que tem 30 e tem a escola do tipo B, que tem 470.

Como a escola A e a B são ranqueadas como escolas diferentes, A estará no top 10 do Enem porque fez com que se classifiquem os melhores alunos. Esses 30 alunos fazem a marca da escola e fazem com que os pais escolham essa escola e paguem, normalmente, mensalidades altíssimas. Agora o que aconteceu? Intra esta unidade, a escola produziu um viés de seleção.

Selecionou, entre aqueles que já têm pais com alta escolaridade, tem a renda para poder pagar a mensalidade alta, os melhores alunos e, certamente, coloca os melhores professores. Então, faz, na verdade, uma bolha para poder performar no Enem e captar os melhores alunos. Aqui não há nenhuma visão de equidade. Essa não é referência, não é parâmetro para escola pública.

É uma situação totalmente artificial e que, nesse artificialismo, cria uma referência de qualidade. Isso é falso, tal qual é falso um certo saudosismo da maravilhosa escola pública dos anos 1950. A maravilhosa escola pública dos anos 1950, era maravilhosa, só que para alguns. Não tinha nenhum atributo público no sentido preciso.

 


 

Fiquei intrigada com essa dimensão de pensar a escola dos anos 1950 como excelente, como quase outro mito, porque não deixa de ser um.  Poderíamos explorar um pouco mais dessa ideia dessa escola pública que antigamente funcionava?

"A maravilhosa escola pública dos anos 1950, era maravilhosa, só que para alguns. Não tinha nenhum atributo público no sentido preciso.

Acho que tem uma parte dos adultos, em geral da classe média alta, brancos, que passaram por uma escola pública que funcionava, que era uma boa escola pública. E realmente era boa para aqueles que lá estavam, mas é importante ressaltar que conseguiu ser boa porque objetivamente era boa só para alguns, em um momento em que as desigualdades do país eram ainda maiores do que as de hoje, com altíssimas taxas de analfabetismo e com pouquíssima parte da elite social e econômica com nível universitário. 

E essa classe média, classe média alta, colocava seus filhos nas escolas públicas, que tinham esse enorme viés de seleção. E o que aconteceu na história? Massificou-se a escola pública, nos anos 1970, um período em que tínhamos muitas condições favoráveis, como demografia, ainda com uma população urbana não completamente concentrada e taxas de crescimento da economia muito altas. Estávamos em meio a uma ditadura. A ditadura massificou a escola pública e não trouxe, como outros países trouxeram, a referência de qualidade em larga escala. Ao massificar esse processo, preservou-se a ideia de a elite receber educação de qualidade.

"A ditadura massificou a escola pública e não trouxe, como outros países trouxeram, a referência de qualidade em larga escala. Ao massificar esse processo, preservou-se a ideia de a elite receber educação de qualidade."É absolutamente sintomático que, nesse momento em que se massifica a escola básica, as pirâmides educacionais tenham se invertido, fazendo com que a universidade pública ficasse de altíssima excelência. Esse processo foi segmentando e a escola básica, massificada. Tiraram dela os parâmetros de qualidade. Para aqueles mesmos filhos que fizeram uma boa escola pública nos anos 1950, criou-se uma universidade pública de altíssima qualidade e a universidade privada de baixa qualidade.

Na passagem dos anos 1970 e 1980 a pirâmide se inverteu radicalmente, fez com que os alunos que ingressaram na Universidade pública, de excelência, fossem alunos que tivessem passado pela escola privada de uma minoria. O mundo pós-segunda guerra estava fazendo, nos anos 1950 e 1960, exatamente o contrário, ou seja,  uma escola pública universal para todo mundo.

 


 

Retomando a fala das altas expectativas para todos, como esse processo deve se dar?

Altas expectativas para todos implica um esforço diferenciado no interior da escola. Portanto, pedagógico, diferenciado entre os estudantes. Tem estudantes que têm muito mais dificuldade na disciplina A, mas têm excelente performance na disciplina B. É preciso dar conta disso. A cultura de reprovação, que em alguns estados é absolutamente gigantesca, é uma cultura que não está referenciada nessa ideia de altas expectativas para todos. Altas expectativas para todos implica um esforço diferenciado no interior da escola. Portanto, pedagógico. A cultura de reprovação, que em alguns estados é absolutamente gigantesca, é uma cultura que não está referenciada nessa ideia de altas expectativas para todos.

Porque a cultura de reprovação vai fazer, por exemplo, que no ensino médio um estudante com notas negativas em duas disciplinas mereça ser reprovado em 15 disciplinas. Esse conceito, a priori, é um conceito que não está preocupado em dar conta de fazer uma mobilidade educacional com esse aluno e focar no seguinte: olha, o aluno ou a aluna tem mais dificuldade em duas disciplinas, mas está desempenhando muito bem em 13.

A questão é: como reduzir essa defasagem? Isso solicita mais esforço do professor, solicita mais esforço daquela comunidade. Nas escolas que são virtuosas, quanto mais os professores estejam sintonizados com essa ideia da excelência com equidade, cria-se um ambiente em que o conceito de altas expectativas para todos funciona. E chega-se ao ponto de que as escolas que funcionam muito bem, cuja gestão está a esse serviço, passam a trabalhar mais por projetos, passam a trabalhar de forma mais interdisciplinar, pois, para além de tecnicamente ser muito bom, também cria um ambiente em que o professor de química, de história e de inglês, a professora de matemática valorizam, por exemplo, trabalhar em projetos.

Uma coisa importante, para afinar, quando falamos de gestão, é preciso ter um método. É uma armadilha da educação o fato de nós sermos sujeitos singulares de aprendizagem e termos de ser encarados assim no cotidiano da escola pública. Não deve e não existe obrigação de que todos os processos sejam singulares. "Com a referência da escola pública ser para todos com altas expectativas  é possível organizar processos internos na escola e entre escolas, de forma a configurar, a todo tempo, essa agenda com conhecimentos pedagógicos e técnicos que professoras e  professores têm."

Pelo contrário, os processos, quanto mais referenciados, quanto mais padronizados, no sentido de entender como produzir um sistema e aprender com as práticas que são reproduzidas e são denominadores comuns, maior a probabilidade de enfrentar as desigualdades. E retomo: vulnerabilidades não são absolutas, são sempre em contexto. Estudantes que têm dificuldade em uma determinada área, têm enormes facilidades em outras áreas e é preciso ter padrões que permitam essa adaptação e um funcionamento nessa direção. Então, com a referência da escola pública ser para todos com equidade, altas expectativas com equidade, é possível organizar processos internos na escola e entre escolas, de forma a estar o tempo todo configurando essa agenda com os conhecimentos pedagógicos e técnicos que professoras e  professores têm.

 


 

Já que você entrou no debate racial, a partir da sua experiência com pesquisas raciais e gênero escolar, tendo as desigualdades evidenciadas pelos dados, qual é o caminho possível para aperfeiçoar os passos de formação democrática e de valorização da escola pública, considerando a realidade brasileira?

É muito importante para a sociedade brasileira atualizar a sua dívida histórica, ou seja, reconhecer seus traços racistas. A própria escola reproduz esses traços. De alguma forma, a sociedade brasileira, após a saída da escravidão, produziu uma atuação absolutamente perversa que era dizer que o desigual era a mesma coisa que o diferente. Qual é a perversão dessa ideia? Quando menciono a ideia de que desigual é igual a diferente, eu produzo um certo interdito no campo de possibilidades da política pública e digo que só é possível melhorar essa sociedade trabalhando na esfera da pobreza.

Eu não tenho como trabalhar sobre o espaço da desigualdade porque todos são diferentes entre si e sobre isso eu não posso incidir.

"É muito importante para a sociedade brasileira atualizar a sua dívida histórica, ou seja, reconhecer seus traços racistas. A própria escola reproduz esses traços"

Então, o campo, no amplo espectro doutrinário, mais liberal e mais progressista, quando se debruça como fenômeno social , diz o seguinte: é tão desafiadora a realidade brasileira para aqueles que estão interessados em enfrentá-la, que o jeito chave de fazer é enfrentar a pobreza. O que quero dizer é o seguinte: O caminho de enfrentamento da pobreza é essencial, mas ele é estritamente insuficiente.

Eu preciso dizer que desigual não é o mesmo que diferente porque assim vou reconhecer e, a partir disso, valorizar a força da diversidade. Ela é oposta a força da desigualdade. É a mesma decisão, que diz: libertam  escravos, mas não trazem nenhum compromisso público do estado de distribuição de terra, distribuição de ativos, de escolarização. É uma forma de confundir diferença com desigualdade, de naturalizar a relação de desigualdade. Isso leva ao entendimento de que esses diferentes são menores, mas eles só são menores porque eles são diferentes. Então, não tem muita solução para essa história. "Precisamos de um certo imperativo de regime social que desempenhe uma equação social que reconheça e valorizar a diferença, a diversidade, como um modo de enfrentar a desigualdade e produzir um arranjo social muito mais virtuoso."

Precisamos de um certo imperativo de regime social que, ao separar o desigual com o diferente, com o diverso,  não só faça essa operação quase analítica, mas que desempenhe uma equação social, estabelecendo que é preciso reconhecer e valorizar a diferença, a diversidade, como um modo de enfrentar a desigualdade e produzir um arranjo social muito mais virtuoso. Como dizia, precisamos atualizar a nossa dívida histórica e enfrentar com muita nitidez e com muita coragem esse  arranjo social. Porque a gente inibiu a maior virtude que a sociedade produziu, que é a força da sua diversidade.


 

Patrícia Santos | Rio de Janeiro, Brasil |

Editora na Revista Periferias e Diretora executiva na UNIperiferias

patricia@imja.org.br

Ricardo Henriques | Brasil |

Economista e Superintendente Executivo do Instituto Unibanco. Foi Secretário Nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação e Secretário Executivo do Ministério de Desenvolvimento Social, quando coordenou o desenho e a implantação inicial do programa Bolsa Família. No Rio de Janeiro foi Secretário Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos e Presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP), quando desenvolveu e implantou o Programa UPP Social. Foi assessor especial do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pesquisador e diretor adjunto da área social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e, durante mais de 30 anos, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Presidiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro e a Conferência de Educação na 34ª Conferência Geral da UNESCO (2008). Foi membro do Conselho de Administração do International Institute for Education Planning (IIEP-UNESCO) e, atualmente, é membro dos Conselhos; Anistia Internacional (Brasil) Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), CIVI-CO, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV),  Fundação Itaú Social (FIS), Instituto Natura, Instituto República, Instituto Sou da Paz e Todos pela Educação(TPE).

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