Narrativas

periferias 1 | o Paradigma da Potência

"Vida" aprisionada

Scott McMillan

| Escócia |

traduzido por Giulia Mendes Gambassi

Depois de quase 14 anos de encarceramento, um relato sobre as minhas experiências como prisioneiro pode proporcionar uma resposta mais ampla, entretanto, monótona, se comparada ao que geralmente suscita a pergunta “como é lá dentro?”. Essa, com certeza, é uma questão comumente feita, de uma maneira ou de outra, por todos – desde membros da minha família, a amigos e completos estranhos. Todavia, menos comuns são as diversas respostas que dei ao longo dos anos, constantemente mudando, a depender da época e do contexto. Apesar de toda a homogeneidade e conformidade geralmente associadas às prisões, em última análise, o encarceramento é uma experiência muito pessoal. Com isso em mente, reconheço que o relato que apresento aqui é a melhor interpretação que posso dar da minha própria experiência e o que ela significa para mim agora. Também aceito que, embora às vezes eu possa fazer generalizações e buscar universalidades, de modo algum eu falo por todos, seja aqui, na Escócia, ou em qualquer outro lugar do mundo.

Na minha experiência, a reposta àquela pergunta comum não deve ser constituída por uma ladainha de clichês obscenos sobre condições de vida ou de salubridade, nem sobre a cultura de organizações criminosas, violência interpessoal e abuso de drogas, os quais a maioria das pessoas parece acreditar e querer confirmar.

Muito menos tratarei da “vida” confortável e fácil que a maioria das pessoas assume e ridiculariza, encorajada pela mídia sensacionalista e por políticos oportunistas que buscam obter vantagem com a indignação pública.

A prisão está longe do discurso exagerado e caricato que precede qualquer forma de representação.

Está mais distante ainda do espaço privilegiado de reabilitação e suporte que é declarado oficialmente pela proposta política atual do Serviço Prisional Escocês (Scottish Prison Service, SPS) “Libertando potenciais. Transformando vidas”.

De acordo com a minha experiência, a prisão é um monumento a potenciais desperdiçados. Uma armadilha para deixar a vida passar pelas mãos. É um palco para o ódio e o medo da sociedade. Uma narrativa silenciosa e teatral do bem versus o mal. Um depósito de lixo. Um sistema de gestão de resíduos para os mais vulneráveis e perigosos – considerando que um não exclui a outro. É uma barreira entre “nós” e “eles” que se faz aparente, mais permeável para uns do que para outros. É um lugar fundamentalmente contraditório: cuidado e controle; retribuição e reabilitação; segregação e reintegração; responsabilização e infantilização.

Independentemente do que eu ou você pensamos sobre o que a prisão é ou deve ser, ela ainda é a forma de punição mais severa que nós, como sociedade livre no Reino Unido, podemos infligir a alguém.

Para mim, agora com 31 anos, ela também é o lugar em que passei quase metade da minha vida e, o que é ainda mais preocupante, ela é o que mais conheço da vida. Em 2003, cheguei à prisão. Fui condenado por assassinato e tentativa de assassinato. Eu tinha apenas 16 anos. Estava sozinho. E apavorado. Mas, isso, pelas razões erradas, como mais tarde acabei percebendo. Eu estava preocupado com questões imediatas, como agressão e abuso. Status e política. Preocupava-me se iria usar o celular naquela noite, receber uma visita naquela semana. Todas eram preocupações genuínas, apesar de focadas demasiadamente no aqui e no agora.

Entretanto, não é disso que a prisão é feita – ou pelo menos não para mim. A prisão é um jogo longo. Agora, eu não vou fingir que eu não vi violência, ou que ela não me encontrou algumas vezes, mas eu poderia dizer o mesmo sobre a minha vida antes do encarceramento. Então, por fim, depois de ter encarado o pior daquela situação e ter achado meu caminho, o que realmente me marcou foi a sensação de que, independentemente de quanto eu tentasse ficar conectado ao lado de fora e a quem eu era, tudo acabava me escapando pelas mãos.

Pouco a pouco – conforme as relações foram se desgastando e eu me separei de minha companheira, as cartas foram deixando de ser enviadas e tanto ligações quanto visitas foram se tornando menos regulares, até o ponto em que tudo o que eu realmente fazia era conversar com alguns amigos aqui, outros ali, falar com a minha família de vez em quando, para não ficar por fora do que estava acontecendo –, eu percebi que todas as coisas que eu temia e que tinha certeza de que aconteceriam, nem importavam mais. O mundo, do qual eu achava ser o centro, continuou girando mesmo na minha ausência e todos que nele estavam continuaram vivendo suas vidas. Uma vez eu escrevi sobre como um longo período de encarceramento poderia ser a chance de ver como o mundo seria se eu morresse. Reitero isso, aqui, enquanto não encontro analogia melhor. Ao mesmo tempo em que todas as minhas certezas “preto no branco” se transformavam em dilemas acinzentados, percebi que eu tinha algo muito maior com o que me preocupar.

Quem sou eu? Agora que todas as coisas que usava para me definir se foram ou desconectaram? Para onde vou daqui?

E isso, para mim, é o que realmente arruína a maioria das pessoas. Porque elas não vão a lugar nenhum. Elas ficam paralisadas e forçam tanto a situação que, no fim, não sobra nada além de um show de memórias desgastadas. Elas não encontram maneiras de crescer.

De ter a sensação de que suas vidas estão caminhando para algum lugar. Elas apenas se tornam parte do incessante e estagnado nada do qual agora fazem parte. É por isso que as drogas são uma possibilidade tão atrativa na prisão. Uma forma de derreter as paredes. De transformar lugar algum em algum lugar. De se sentir como se sentia antes: vital, relevante, real.

Infelizmente, essa escapatória tende a se transformar em um abismo do qual a maioria não consegue sair. Endossado, e muito, pela política prisional que efetivamente criminaliza uma questão de saúde pública, como o vício, ao ponto em que cumprem mais tempo de prisão aqueles que usam drogas durante o período em que estão encarcerados, do que aqueles que as vendem em massa nas ruas.

Ainda, o que as drogas não tomarem, os trabalhos, as políticas e as hierarquias internas, irão fazê-lo. Esses são os primeiros conselhos que um veterano experiente vai oferecer a qualquer um que estiver no começo de uma longa sentença: “esqueça-se do que está acontecendo lá fora. Aceite a vida a prisão. O tempo vai passar voando”, o que, em muitos aspectos, não está errado. Simplesmente aceite de cara o que eu descrevi – o que vai, no fim e de qualquer maneira, acontecer – e ativamente se antecipe a isso. Infelizmente alguns fazem isso imergindo totalmente no pequeno e limitado mundo da prisão. Definindo-se apenas por isso e nada mais. Desesperados para se encaixarem. Para se sentirem seguros. Para serem alguém. Preocupados em serem “do time”, “um verdadeiro preso” com “um bom nome na prisão”. Tudo isso, conquistado pela demonstração de um imperativo hipermasculinizado, oposicional e antiautoritário com o qual a prisão se orienta e perpetua. Um modelo para autodestruição. Delinquentes sem educação (Non Educated Deliquent – NED) sob medicação. (Re)produzidos pela prisão de forma eficiente e sistemática. Sortudos se saírem. Prováveis reincidentes.

Felizmente eu tomei a primeira decisão razoável da minha vida já no cárcere: rejeitar meus vícios e ficar longe das drogas; jogar o jogo; aproveitar o melhor de cada oportunidade; e sair assim que possível. Eu preenchia meu tempo com “ocupações relevantes”, como treinamento educacional, vocacional e físico. Eu pretendia aumentar o meu potencial e dar a mim mesmo algum senso de propósito. Eu ia usar esse tempo para fazer a minha vida caminhar em alguma direção. E, com isso em mente, acredito ser necessário falar da relevância, ou não, dos clichês. Por exemplo, minha vida até eu entrar na prisão, em retrospecto, se depara com uma série de circunstâncias determinísticas, às quais não vou abordar aqui, a não ser para apontar a ironia de que ninguém, à época, podia imaginar onde eu iria parar. Ainda, apesar de minha dedicação aos estudos no cárcere, eu fui em uma direção totalmente oposta.

Desde o momento em que cheguei à prisão, eu sabia que nunca ia me “encaixar” e, mesmo depois de quase 14 anos, eu ainda não me encaixo. Eu ainda não sei o que foi que me deu no começo, já que, precoce como eu era, eu certamente não tinha a experiência para ver as coisas como as vejo agora. Acho que eu apenas aceitei que estava fodido. O peso do que eu enfrentava era insustentável e, por mais que eu o odiasse, eu sabia que tinha que trabalhar com ele. Eu tinha que me envolver e inserir no sistema para tirar tanto dele quanto ele tiraria de mim. Tentar me rebelar contra isso era apenas me envolver ainda mais com o que eu odiava. Replicar o modelo era permitir que eles tirassem ainda mais de mim, para receber muito pouco de volta.

Então comecei a frequentar aulas. Língua inglesa, informática, matemática. Todas as coisas que eu deveria ter tido na escola. Mas, diferentemente dessa época, eu realmente queria fazer isso dessa vez e, quando estava estudando, eu não sentia que estava na prisão. A partir daí, envolvi-me no meu primeiro curso à distância pela Open University e conquistei um diploma acadêmico em Criminologia e Política Social de forma lenta, mas segura. Enfim, nos estágios finais da progressão de minha sentença, eu e mais dois colegas prisioneiros que estavam na mesma posição que eu, fundamos um grupo único de pesquisa com vários acadêmicos e alunos de doutorado de diversas universidades em toda a Escócia. Nós criticamos, desenvolvemos e produzimos pesquisas em justiça criminal e reforma penal juntos, como colegas e amigos. Por meio desse grupo notável, fui introduzido às pessoas certas, no momento certo e, graças ao seu comprometimento e convicção, eu estou, atualmente, no que eu acredito ser meu último ano de encarceramento, na única prisão aberta da Escócia, fazendo mestrado em tempo integral em uma universidade de ponta. Dizer que a minha experiência educacional desde que eu entrei na prisão foi incrivelmente positiva e transformadora é um grande eufemismo. O que começou apenas como algo em que apenas me envolvi porque eu vi que era culturalmente valoroso para que aqueles que iriam decidir a minha liberdade condicional, no fim, acabou transformando a minha visão de mundo, de mim mesmo e do meu potencial.

Em meio a tudo isso, eu assumi diversos papeis para oferecer suporte, advocacy e orientação a outros prisioneiros, e acabei me tornando um ouvinte treinado dos Samaritanos,1NT: grupo de apoio treinado para conversar com pessoas que estejam passando por situações complicadas, sem que necessariamente estejam tendo pensamentos suicidas. Para mais informações, acesse: https://www.samaritans.org/how-we-can-help-you. ajudando àqueles que estão tendo dificuldade em lidar com as pressões do cárcere. Esses papeis de suporte foram um dos caminhos que encontrei na prisão, através dos quais eu pude me sentir bem sobre o que eu estava fazendo. Encontrei grande catarse e recompensa ao trabalhar com meus próprios problemas enquanto ajudava outros a lidarem com os deles. Essa experiência também me mostrou, de forma vívida, quão prejudicada está a maioria daqueles que entram na prisão, principalmente em termos de saúde mental, abuso de substâncias e vício. A maior parte das pessoas chega na prisão advinda de situações com múltiplas desvantagens, sendo que 40% dessa população vem de 20% das áreas mais marcadas pela desigualdade na Escócia. Tendo envolvimento com tantas questões pessoais, assim como com meus estudos acadêmicos, agora eu estou obtendo qualificações para trabalhar com grupos de apoio e aconselhamento na área de saúde mental.

Além disso, eu comecei fazer um treinamento para ser cabeleireiro, alguns anos atrás. Um amigo sugeriu que eu trabalhasse nessa área por já ter desenvolvido algumas competências interessantes a ela, entre tentativas e erros, ao longo dos anos, com um colega condenado que não confiava nos prisioneiros originários de Glasgow,2NT: no texto original foi utilizado o termo weegies que corresponde à uma abreviação de Glaswegian, palavra usada para se referenciar a quem vem de Glasgow. que trabalhavam como barbeiros no corredor – as divisões na Escócia são mais focadas em classe e endereço do que em raça, como acontece com a maior parte das populações prisionais ocidentais. Eu tive sorte por, na época, estar em uma prisão que era a única na Escócia a oferecer treinamento e certificação da City & Guilds3NT: grupo de empresas que tem como objetivo desenvolver competências em indivíduos, negócios e economias para que possam progredir. Está associado ao aconselhamento vocacional., então fui atrás disso. Essa experiência acabou levando a um trabalho comunitário como cabeleireiro que durou 11 meses, assim como a uma oferta de trabalho em tempo integral, que estará disponível quando eu estiver em liberdade.

Bom, voltando, então, aos clichês. Tendo feito uma graduação, um estágio e sendo considerado um trabalhador e colega confiável, estava usando minha experiência para ajudar a mim mesmo enquanto ajudava outros. Eu acredito que agora seria um bom momento para mencionar que eu também escrevi um romance. De todos os clichês prisionais que existem, acredito que eu tenha feito praticamente todos, exceto aprender a tocar violão (apesar de ter tentado). Mas a verdade é que, ao menos pelo meu ponto de vista, o perigo é que o que acreditamos serem clichês, na verdade não o são. O fato é que eles quase nunca são alcançados. Já são raros o suficiente considerando cada indivíduo, mas mais ainda pensando em grupos. Mesmo assim, as pessoas que não estão prisão parecem vê-la como uma oportunidade ou até mesmo como uma vantagem para fazer tudo o que queriam, mas não tinham tempo: “é fácil quando você está trancado e não tem nada melhor pra fazer”. Ademais, há também a percepção de que prisioneiros “têm tudo o que querem lá [na prisão]”.

Entretanto, a prisão não é um ambiente propício para crescimento e para conquistas pessoais. É um lugar forjado por limitações práticas, culturais e mentais. O acesso à educação, por exemplo, é extremamente limitado nas prisões, principalmente em nível superior e universitário. Dos quase 7.5004NA: a Escócia é um país pequeno, com uma população de aproximadamente 5.404.700 pessoas, o que faz com que a taxa de encarceramento seja de 136 pessoas a cara 100.000 – umas das mais altas da União Europeia. prisioneiros na Escócia, apenas 60 estão fazendo cursos na Open University. Mesmo assim, esse dado foi recentemente celebrado pelo SPS, sendo interpretado como uma massiva adesão ao ensino superior. Contudo, muitos se inscrevem para cursos nesse nível, mas têm seu acesso negado, devido ao fato de todas as vagas estarem ocupadas. Os estudos na Open University também estão disponíveis apenas em alguns períodos, o que significa que apenas aqueles que ainda têm, no mínimo, seis anos pela frente no cárcere podem conseguir completar um curso. Isso, considerando, é claro, que cada módulo anual seja sucessivamente aprovado pelo conselho de acesso à educação de nível superior, o que nunca é garantido, nem mesmo quando o ano de estudo anterior tenha sido bem-sucedido. A justificativa política é a de que não há dinheiro suficiente para proporcionar educação superior a mais pessoas, mesmo considerando que a Escócia apoia todos os cidadãos a conquistarem seu primeiro diploma gratuitamente. Esse é um fato que parece ter escapado à maioria dos funcionários da prisão e do público em geral que regularmente declaram, como eu mesmo pude ouvir, apesar de tudo isso, seu desgosto perante o acesso à educação dado a pouquíssimos de nós, com dizeres como “eu tive que pagar para meus filhos irem à universidade e você (prisioneiro) está sendo educado de graça”, o que não é o caso.

Contrariamente ao discurso popular negativo, alguém pode ler em tabloides ou ouvir em um fervoroso falatório em um palanque político que as oportunidades de ensino superior e atendimento vocacional são muito menos acessíveis nas prisões do que na comunidade. O que é prontamente oferecida é a educação focada primeiramente em níveis básicos de qualificação e desenvolvimento de habilidades. Entretanto, há uma inegável correlação entre aqueles que têm baixo sucesso escolar e pouca experiência empregatícia e aqueles que estão prisão – e acredito que isso deve ser discutido. Contudo, a instituição acaba focando nessas necessidades a ponto de propor uma expectativa preconceituosamente baixa aos prisioneiros, o que, para mim, colabora ainda mais para a cultura negativa na prisão no que tange à educação e ao desenvolvimento de habilidades. Isso, considerando que aqueles que seguem em frente para alcançar um nível superior, mesmo com tudo isso, recebem a mensagem de que – seja por nossa incapacidade de funcionar na comunidade sem o apoio e a estrutura proporcionados pela prisão, seja pela discriminação ativa após um registro criminal –, nossas realizações não serão viáveis no “mundo real”. E isso foi relatado para mim de forma bem clara quando uma professora, certa vez, confessou seu choque e repugnância após participar de uma reunião do Conselho de Acesso ao Ensino Superior, em que gerentes de todos os centros prisionais da Escócia se reúnem para decidir quais candidatos terão direito a estudar no próximo ano. Nessa ocasião, ela ouviu um gerente dizer: “qual é o sentido de darmos diplomas a eles (prisioneiros)? O que vão fazer com eles?”.  E mesmo que eu decida interpretar essa fala da forma mais complacente possível – considerando a situação das pessoas com antecedentes criminais em sociedades ocidentais modernas como o Reino Unido, em que a política de divulgação causa problemas graves à (re)inserção no mercado de trabalho, se não for excluído completamente –, o que isso diz, então, sobre a provisão de treinamento educacional e vocacional no cárcere, ou as perspectivas daqueles que se engajam nelas?

Assim como eu, a maioria das pessoas encarceradas teve más experiências na escola e, portanto, a perspectiva de voltar a qualquer tipo de estudo parece ser absurda. Logo, quando aqueles que eventualmente têm coragem de tentar novamente são ativamente infantilizados e tratados como déficit, tendo que ouvir, ainda, depois de toda sua perseverança, que qualquer coisa que realizem será desvalorizada e desconsiderada de toda forma, todos os discursos negativos sobre a prisão são simplesmente reafirmados e reproduzidos. O SPS, durante sua apresentação “Emprego e empregabilidade nas prisões escocesas – trabalhando por mudanças” na Universidade de Strathclyde em 2018, reconheceu suas falhas perante o fato de que de suas 45.000 entradas anuais, 30.000 saem sem nenhuma perspectiva de emprego ou suporte, tendo a instituição se comprometido a pesquisar e a promover empregos e treinamento. Mas mesmo que a prisão consiga resolver esse problema, provendo qualificações e treinamentos de qualidade, o que pode ser feito sobre o “lado de fora” da sociedade, em que a “letra escarlate” do antecedente criminal nos impede ou exclui de coloca-los em prática?

Nesse sentido, devemos considerar um outro aspecto-chave de uma cultura marcadamente negativa no que tange atendimento vocacional e educacional na prisão, englobando não só nossas inaptidões, mas nosso status indigno na sociedade. E isso acarreta uma influência particularmente condenatória nos discursos diários de meus companheiros prisioneiros. Qualquer ideia de que conquistas positivas vão nos encontrar em algum ponto da vida, assim como de que teremos, algum dia, um bom emprego, ou que nós vamos ser aceitos ou levados seriamente em algum momento, fica designada a um local de desdém e dúvida. Eu mesmo, até 2015 – antes do meu envolvimento com o grupo de pesquisa –, falava de minhas conquistas acadêmicas e potenciais oportunidades de vida apenas em termos de passar minhas habilidades e ética de trabalho para alguém. Se eu tivesse sorte, teria um trabalho de estoquista em um supermercado ou de auxiliar de limpeza no McDonald’s. Eu certamente não imaginava que eu chegaria a efetivamente realizar um trabalho acadêmico.

Existe, em geral, uma atitude derrotista no cárcere, de pensar: “de que adianta? Ninguém nunca nos dará uma chance”. Uma perspectiva pessimista, porém, não infundada, considerando o discurso social em geral no que diz respeito aos prisioneiros, principalmente na mídia, cuja influência impacta o processo decisório por trás de qualquer iniciativa relacionada à prisão. Nós somos, talvez apropriadamente, uma população tão difamada e indigna, que nossos cuidados, direitos e oportunidades são fonte de discórdia e raiva pública. Nós somos consistentemente retratados como pragas, tormentos e monstros da sociedade de bem, então, por que eles iriam nos querer de volta? Mas se nós acreditarmos que o resto da sociedade não nos quer e que nós não somos, realmente, parte dela, podemos acabar percebendo-a como algo que não é para nós e que está deliberadamente contra a gente, levando-nos a nos dissociar dela e a rejeitá-la. Ainda, considerando certos estigmas, uma população que é sistematicamente humilhada e desdenhada está cada vez mais incapaz de nutrir a motivação necessária para aspirar ou conquistar qualquer coisa positiva. E isso é um grande problema considerando uma sociedade em que mais de 95% da população presa vai, eventualmente, ser solta.

Foi isso que eu quis dizer quando descrevi um sistema fundamentalmente contraditório. O objetivo primário da prisão é, mesmo com tudo isso, a punição. É o lugar em que a sociedade retém e controla aqueles que são considerados um risco ao público, privando-nos de nossos direitos e liberdade. Nessa construção, minha posição identitária como prisioneiro é desviante e “outra”. Eu sou indigno e mereço punição. A prisão, no meu ponto de vista, tem essa parte resolvida. Entretanto, o objetivo secundário, agora, é prover cuidado e reabilitação, lidando com diversas questões e desvantagens que são enfrentadas pela maioria da população carcerária, para que possam voltar à sociedade e a viver uma vida com propósito, livre de crimes e normal (o que quer que isso seja).

Mas seu objetivo primário – e tudo o que ele implica sobre a essência de sua população – torna impossível prover assistência de qualidade. Seja pelo agente da agência de empregos tentando promover nossa identidade cívica enquanto deixa claro que não temos nenhum direito enquanto trabalhadores; seja pela enfermeira que deveria conseguir se separar do serviço prisional e ser um ponto de confidencialidade e segurança, que acaba trabalhando junto aos funcionários da prisão para interrogar e disciplinar; seja pelo gestor de riscos tentando nos reintegrar à sociedade colocando-nos completamente contrários a ela; ou o tempo adicional de pena servido devido a sanções que miram nos comportamentos mais recorrentes da nossa população, como saúde mental, vício e impulsividade, que a prisão diz tratar e dar suporte.

Independentemente do que a prisão tenta ser, ela não pode ser outra coisa além do que é.

Ademais, minha posição identitária dentro da retórica do “cuidado” é igualmente desvalorizada e nela eu sou um protocidadão que precisa de supervisão e intervenção. Nessa lógica, eu não sei o que é melhor para mim nem como viver o mundo real. Nenhuma das construções oferece escopo para que haja igualdade e paridade com os membros “responsáveis” e “de bem” da sociedade. O resultado dessa composição eu acabei por experienciar devido ao fato de eu corresponder a um tipo identitário de “criança problema”. Monstruoso e indefensável. Alguém de quem eles não querem cuidar, mas devem, mesmo que contrariados, porque é a coisa certa a ser feita.

Mas isso não quer dizer que coisas positivas não acontecem na prisão. Ou que não há quem faça escolhas positivas lá dentro. Eu gostaria de pensar que ao menos minhas experiências são uma prova disso. Também posso dizer, a partir dessas experiências, que a prisão mudou no decorrer dos anos. No sentido mais óbvio possível, fico feliz em informar que os dias melancólicos de ausência de água ou energia elétrica nas celas, assim como o indigno “tacar fora”5NA: “Tacar fora” [no original “slopping out”] refere-se ao ato de esvaziar diariamente recipientes destinados a dejetos humanos, anterior à introdução de vasos sanitários nas celas. que experienciei no início de minha sentença, são coisas do passado. Mas a mudança não ocorreu apenas em termos de condições de vida. Posturas estão mudando; relacionamentos entre os prisioneiros e os funcionários estão se desenvolvendo; direitos e dignidade são prioridades em qualquer proposta política; a lacuna entre os guardas mais antigos e os novos recrutas (tanto dos funcionários quanto dos prisioneiros) está se estreitando. Coisas ruins ainda acontecem ocasionalmente, é claro, mas, definitivamente, agora o ambiente é menos violento e amplamente hostil, tanto do lado dos funcionários quanto dos prisioneiros, se comparado com o que era quando eu cheguei e, certamente, do que era para aqueles mais velhos do que eu. Uma mudança bem-vinda, sob o meu ponto de vista, mas alguns ainda olham de forma nostálgica para os “velhos tempos”. Entretanto, algumas coisas permanecem constantes, como a inevitável impotência e desconexão do que importa para nós, assim como a constante e interminável trivialidade proporcionadas a partir disso, que é levado em consideração em última instância, quando o é. E isso pode ser perturbador, se pensarmos que o tempo médio gasto no cárcere aumentou nesse período, o que significa que a desconexão e a luta certamente ficarão apenas mais difíceis de serem encaradas.

Aqui está outro paradoxo punitivo e mais uma evidência do efeito tóxico de ser considerado indigno. Quanto mais os sistemas prisionais modernos e ocidentalizados – particularmente o da Escócia, um país que tem orgulho de estar na vanguarda do liberalismo e da justiça social – se tornam progressiva e superficialmente mais confortáveis do que nunca, acompanhados por uma retórica da política mais voltada a questões de cuidado e bem-estar, mais a mídia, os políticos e o público são incentivados a expressar sua raiva e preocupação com as condições do nosso sistema de justiça. Lendas de períodos de mimos em luxuosas prisões como consequência de uma justiça sutil, alimentam as solicitações por sanções criminais mais duras e severas, assim como sentenças cada vez mais longas – sendo as penas perpétuas realmente perpétuas – e os pedidos do reestabelecimento da pena de morte. Essa é uma lógica certamente aterrorizante que parece levar pouco em conta a punição aparentemente simbiótica da Escócia como uma tendência de bem-estar social, com sentenças prisionais aumentando constantemente, tendo a Escócia distribuído, proporcionalmente, mais penas de prisão perpétua do que qualquer outro país da Europa, incluindo a Rússia. Poderia parecer que quanto mais confortável a prisão fica, mais tempo eles precisam nos manter nela para justificar o avanço.

Sem sucesso nesse caminho, persiste a noção de que, devido ao nosso relativamente confortável e funcional sistema prisional moderno, assim como às condições de vida na Escócia e no Reino Unido, a nossa prisão não é, portanto, uma verdadeira prisão. Eu ouço com regularidade a influência dessa lógica de denegação prisional nas zombarias que os funcionários fazem sobre nossos alojamentos e alimentação gratuitos, assim como sobre a nossa suposta falta de responsabilidades do mundo real e o desperdício do dinheiro dos contribuintes. Eu ouço esse tipo de comentário até de pessoas queridas, família e amigos, que genuinamente se preocupam com nossos interesses, mas que declaram que nossa situação não é tão ruim quando sabem que temos televisões e kettles.6NT: chaleiras elétricas muito comuns no Reino Unido.

Isso, mais do qualquer outra coisa, sempre me faz questionar o valor que um cidadão comum atribui à sua liberdade, privacidade e dignidade, assim como o quão fácil é subestimá-las. A ideia de que ter algumas regalias e confortos domésticos, como uma televisão, facilita o fato de se estar trancado em lugar do qual não se pode sair, em que nada é realmente seu, em que nenhum espaço, nem mesmo o corpo, está totalmente a salvo de ser invadido e interrogado, por meses, anos ou até mesmo décadas; assim como a concepção de que construir um muro entre nós e todos os problemas da vida, como com família, relacionamentos, crianças, finanças e lutos significaria que essas questões não mais impactariam de alguma forma nossa situação ou perturbariam nossa mente, parece-me dizer muito sobre como nós, como sociedade, percebemos o que significa ser “livre”.

Então, apesar desses diversos fatores culturais e estruturais que alimentam a percepção de que eu não era nem capaz nem digno de realizar o que eu aspirava, ou até que eu sequer teria chance de fazer o que quer que fosse com minhas realizações, por algum motivo, eu tentei mesmo assim. Não porque eu seja diferente dos outros ou me destaque de alguma maneira – não sou melhor nem mais significante do que qualquer outra pessoa aqui ao meu lado. Essa foi só a minha maneira de lidar com a situação. E a minha forma de “resistir” está longe de ser única. Muitos de nós encontram maneiras de conter a maré da apatia prisional e limitar seu potencial corrosivo. Encontrar maneiras de redefinir nosso senso de identidade, seja através de nossas novas dimensões ou através da reinvenção e do fortalecimento do que ainda somos, dedicamos todo o nosso tempo a telefonemas e visitas, tornando-nos pais, filhos, amigos ou companheiros mais presentes do que nunca.

No entanto, sempre chegamos ao questionamento “quem somos agora?”. Na prisão, muitos, como eu, lutam arduamente para entender e legitimar essa identidade projetando-a para o mundo que está além das paredes. Todos nós fazemos isso de diferentes maneiras. Para mim, fazer as coisas que fiz dentro da prisão facilitou a conexão com os que estão do lado de fora, porque isso deu sentido à minha vida. Eu estava realizando coisas agora que, apesar de estarem acontecendo na prisão, poderiam estar sendo feitas em qualquer lugar, diminuindo, assim, o abismo entre a minha vida e a vida da família e dos amigos. Eu diminuí o receio que eles tinham em avaliar o que deveriam contar ou não para mim sobre seu cotidiano, por medo de me fazer sentir mal sobre o meu. Eu dissuadi a pena que sentiam pela vida que eu estava perdendo. Principalmente porque, em alguns casos, parecia que eu estava realizando muito mais coisas do que eles! E há algo mais estranho ainda: em uma bizarra reviravolta, eu havia me tornado um exemplo positivo, ao invés de um conto preventivo, para muitas pessoas próximas a mim na comunidade. Amigos e familiares castigavam seus filhos desobedientes dizendo-lhes para verem o quão bem eu estava, por estar estudando e fazendo algo da minha vida. Isso me proporcionou um estranho tipo de (re)conexão com a vida daqueles que eu amava e com quem me importava, permitindo-nos falar consistentemente dos aspectos positivos da pior coisa que eu já havia feito, e onde isso, como consequência, levou todos nós.

Uma parte extremamente significativa, se não a mais importante, da minha projeção no “mundo real”, foi cometer um pecado capital ainda maior do que já havia cometido: começar um novo relacionamento no meio da minha sentença. Outro conselho dado pela maioria dos veteranos experientes e que ignorei, “nunca tenha uma [namorada/companheira] na prisão, é como se estivesse cumprindo o dobro da pena”. Mas é difícil resistir ao desejo de se conectar com alguém e sentir-se vital, atraente e desejado por ele ou ela, de compartilhar sua intimidade, mesmo que apenas por telefone ou separados por uma mesa na área de visitas. Especialmente quando você opta por não matar sua solidão com drogas. Então, o que começou como alguns flertes tímidos por telefone com uma velha amiga, lentamente se transformou em um relacionamento de oito anos e, agora que eu posso visitar minha casa, resultou em um bebê, que está a caminho. Eu amo minha companheira profundamente e estou incrivelmente feliz e orgulhoso por termos chegado tão longe juntos. Mas a logística, a paciência, a confusão emocional e o estresse psicológico envolvidos na manutenção de um relacionamento durante o período encarceramento são suficientes para que eu concorde inteiramente com a ideia de estar cumprindo o dobro do tempo.

Definitivamente não é fácil desgastar e aguentar os limites rígidos impostos entre você e sua companheira, que roubam qualquer momento de felicidade, proximidade e intimidade que você possa ter durante uma visita semanal de 45 minutos (se tiver sorte de estar em uma prisão próxima à sua casa). Ocasionalmente, esse momento é lesado por um oficial que decidiu que o casal está sentado muito próximo em suas respectivas cadeiras; que se está de mãos dadas por muito tempo; podendo até separá-los fisicamente nas poucas oportunidades que têm de se abraçarem e beijarem (uma no começo e outra no fim da visita), revistando suas bocas ou levando-os para revistas íntimas por suspeita de contrabando de itens ilícitos. Ou mesmo quando, no corredor do pavilhão, usando um dos quatro telefones públicos da prisão que acomodam 80 presos em cada andar, tenta-se ter conversas significativas e compartilhar seus pensamentos mais pessoais, sabendo que cada minuto da ligação, com seus momentos e detalhes íntimos, é registrado e monitorado pela equipe de segurança. Mais frequentemente do que se imagina, isso acaba se tornando uma sucessão de frustrações, lágrimas, discussões, suspeitas, dúvidas e ressentimentos do desejo irrealizável de mudar algo que se não pode mudar. É uma vida de incertezas e do constante questionamento “nós conseguimos fazer isso?” Eu consigo? É tentar preencher o vazio entre o casal com conversas sobre o futuro que terão, mas no aqui e agora, estando sempre solitários, um sem o outro, sempre com medo de se perderem em meio a tudo isso.

Eu acho, por razões bastante óbvias, que os relacionamentos nas prisões são muito difíceis. Mas além das barreiras institucionais físicas, as relações também se tornam incrivelmente difíceis pelas mesmas atitudes e discursos negativos que tornam difíceis todos os outros aspectos da prisão. Existe a ideia de que a conexão que um casal faz enquanto um deles está sob custódia não é “real”, assim como seu crescimento pessoal e suas experiências de vida, qualificações ou habilidades. Nada disso conta da mesma maneira que as pessoas reais, com vidas reais, experiências reais e relacionamentos reais contam. E muitos se sentem à vontade em fazer críticas desmedidas e em duvidar das relações de maneiras que seriam inimagináveis em qualquer outro contexto. Pessoas que eu não conheço e, em alguns casos, que minha companheira mal sabe quem são, se sentem à vontade em questioná-la sobre o motivo de ela ter se envolvido com alguém como eu (um prisioneiro). Dizem que ela é louca, que eu não sou confiável e que estou com ela apenas porque estou entediado ou sozinho, afirmando que vou deixá-la quando estiver livre. Em contrapartida, muitos colegas prisioneiros ao longo dos anos, desde amigos íntimos a perfeitos estranhos, têm me dito repetidas vezes que estou “fora de mim”, me aconselhando a terminar o relacionamento antes que ela me deixe por outra pessoa, se já não estiver tendo um caso. Mesmo a família e os amigos – reitero, com nosso melhor interesse em mente – têm dificuldade em dignificar e legitimar esses relacionamentos, assim como no que diz respeito às condições de nosso aprisionamento, tão fortes são suas crenças.

Para aqueles que conseguem sobreviver a tudo isso, chegando perto de voltarem para casa para realizar os sonhos que cultivaram para se manterem sãos, outra camada de intrusão e vigilância entra em cena. A prisão e o grupo de justiça comunitária se tornam muito envolvidos na eficácia do seu relacionamento, fazendo uma avaliação de assistência social não apenas do seu relacionamento, mas de seu companheiro ou companheira, assim como de sua casa e sua família, especialmente se ele ou ela já tiver filhos. Em caso afirmativo, um assistente social, especialista em infância e família, será designado para falar com eles, sendo o professor responsável pela orientação escolar da criança em questão notificado de que o companheiro ou a companheira de sua mãe ou de seu pai está na prisão – e tudo isso contra a vontade dos pais e sem seu consentimento. E enquanto toda essa desconcertante invasão está acontecendo, as mensagens transmitidas consistentemente pelos advogados são as mesmas que as de todos os outros, justificando que tudo isso é necessário para salvaguardar e proteger “eles” de “mim”, já que eu represento um real risco para a segurança pública e que a aptidão do pai ou da mãe para ser responsável pela criança é questionável por ter convidado um infrator violento para a vida da sua família. Aqueles que têm um bom relacionamento com a assistente social da comunidade podem ser tratados com um pouco mais de delicadeza, ouvindo coisas como “não temos nenhuma preocupação com (prisioneiro/prisioneira), isso é apenas um protocolo e temos que segui-lo somente para mantermos todos seguros”. Permitimos que declarações como essa apaziguem e nos distanciem da natureza intrusiva do processo e de suas implicações, mas elas desvanecem mesmo assim. E agora que o relacionamento de vocês foi avaliado, ele é sujeito a um constante escrutínio – como fator de risco ou de estabilidade –, além dos altos e baixos previstos em qualquer relacionamento “normal” que, de repente, tornam-se indicadores de sua habilidade (como prisioneiro) de funcionar na comunidade.

Finalmente, uma importante parte da experiência da prisão – que eu penso ser escamoteada como algo excitante ou apenas negligenciada por completo, sendo tida como trivial – é o impacto de pequenos autoritarismos e burocracias. Pois é isso que a prisão é: uma grande organização, totalitarista, neoliberal e extremamente avessa a riscos, projetada para dominar e controlar aqueles que estão sob seu comando. É um lugar em que um grupo de pessoas tem total poder sobre outro. E mesmo que eu não negue que houve e provavelmente sempre haverá casos muito graves de abusos e má-conduta por parte dos funcionários, na minha experiência, eles são raros. O que é constante e universal são as pequenas coisas. As microviolências. Pequenas demonstrações e abusos de poder que nos lembram de algo que alguns de nós nunca esquecem. É isso que é a prisão para mim. É ser revistado nu por estar cinco minutos atrasado para o trabalho. É receber um medicamento suspeito ainda em teste porque você já não tem mais recursos contra a gripe. É ter membros de sua família viajando oitenta quilômetros para fazerem uma visita e ouvirem que não podem entrar, pois – apesar de terem documento de identidade com foto e serem conhecidos pelo agente do portão – eles não trouxeram um comprovante de residência dos últimos três meses. É, então, serem avisados de que os itens permitidos que eles trouxeram para você não podem entrar, pois o formulário que preencheram e entregaram não está sendo encontrado. É receber apenas metade dos discos de um box de DVD porque você já excedeu seu limite de trinta discos. Para mim, a prisão é ficar sabendo de uma nova regra a partir da qual você não pode mais ter aquela caneca de cerâmica que você tem há sete anos porque alguém em um gabinete decidiu que ela pode ser usada como uma arma. É ser reportado em um relatório disciplinar por ter quatro toalhas em sua cela, em vez de duas. É ser revistado sob a suspeita de estar fazendo alguma bebida alcóolica porque você tem “frutas demais”. É ter a sua visita encerrada por segurar as mãos de seu companheiro ou companheira. É ser parado e questionado sem nenhuma razão específica a não ser a de que os funcionários decidiram que hoje era um bom dia para isso. São todas essas coisas pequenas e mesquinhas, junto ao potencial impacto que elas têm em nossas vidas, progressão e liberdade condicional, o tempo todo, dia a dia, mês a mês e ano após ano, que vão se combinando e intensificando. Coisas que com certeza levariam qualquer pessoa à loucura, mas às quais não podemos reagir.

Tudo isso ocorre enquanto nós estamos sendo coletivamente avaliados e gerenciados por profissionais que nunca conhecemos, em reuniões às quais não podemos comparecer; sendo jugados por informações às quais não temos total acesso e, logo, não podemos questionar ou verificar. Procurando relatórios de ministérios do governo, de agentes penitenciários, agentes de suporte pessoal, psicólogos, trabalhadores relacionados à saúde mental e ao suporte a vícios, assim como assistentes sociais. Tendo nossas relações pessoais íntimas com companheiros, familiares e amigos vetadas por questões de “estabilidade”. Sendo mantidos por anos em listas de espera para entrar em programas de intervenção focados em infrações, cuja eficácia é infundada. Ou, ainda, assistindo o tempo passar esperando por vagas em instalações especializadas que devemos testar antes de sermos avaliados para soltura. Observando cada obstáculo impactar de alguma forma a próxima data importante. Sendo levado a sentir que não importam as consequências de ter tempo adicionado à pena. Tendo que evidenciar constantemente uma jornada de progressão e desenvolvimento pessoal, pois não é suficiente apenas se comportar e obedecer. Tendo cada aspecto significativo de nossas vidas e de nós mesmos reduzido a uma pontuação na avaliação de risco que, por sua vez, determinará o quanto representamos de ameaça para a sociedade. Tendo que aprender as regras do jogo ou perpetuamente voltar à primeira casa.

Eu fiz uma escolha, logo no começo, de conhecer meu inimigo para aprender sua linguagem e demonstrar as habilidades certas. E, apesar disso de ter me sido útil, considerando a minha vivência no sistema, infelizmente, estou tão familiarizado com esse código que, mesmo na companhia de minha família e amigos durante os períodos de indulto, acho difícil não tentar enquadrar as coisas boas da minha vida em um contexto de redução de risco, na construção do meu capital, dando-me a estrutura que preciso para me manter longe de problemas. Eu realmente espero que eu pare com isso um dia e fale sobre esses momentos apenas pela alegria que proporcionam.

Então, o que mais eu posso dizer sobre a prisão? Depois de todo esse tempo e de tanta vida ter passado, acredito que tenha sido algo grandioso demais para tentar quantificar. Fico frustrado apenas tentando fazê-lo. Neste instante, estou refletindo sobre tudo o que eu disse aqui e pensando: “não é o suficiente. Deixei muita coisa de lado. Não expliquei as coisas direito”. Tudo parece desarticulado e em desacordo consigo mesmo. Resistência na aceitação. Desconexão, reinvenção e reconexão. Um modelo exemplar demonizado. Um fracasso bem-sucedido. Um outro reintegrado. Meu relato é tão controverso quanto o sistema que descrevo. Para deixar tudo ainda mais confuso, conto esta história enquanto estou em uma espécie de limbo, nos últimos estágios da minha sentença, vivendo um pouco dentro e um pouco fora do encarceramento e assimilando, a ele, problemas da sociedade. Será que eu deveria explicar todos os aspectos do sentenciamento, da progressão e do sistema de condicional da Escócia? Dedicar um parágrafo apenas às dinâmicas de reintegração da sociedade? Eu não sei. Tudo o que eu realmente sei é que prisões e prisioneiros são mais do que as manchetes que você lê no jornal ou as histórias que você ouve nos noticiários. Nós somos mais do que estatísticas preenchendo documentos do governo e de revistas acadêmicas.

Nós somos mais do que monstros ou erros da sociedade. Nossas vidas, nossos problemas, nossas esperanças, sonhos, aspirações e medos não são diferentes dos seus. Nós somos humanos. Que falham. Perigosos em alguns casos. Mas humanos mesmo assim. E a prisão é um lugar inerentemente prejudicial para os humanos. Ainda assim, a sociedade continua achando maneiras de mandar mais e mais de nós para lá, por mais e mais tempo. Alguns são enviados para serem punidos. Por segurança. Para reabilitação. Para Suporte. Alguns são mandados para serem esquecidos. Alguns, apenas porque a sociedade não sabe mais o que fazer. Seja qual for a razão, eu tenho confiança em dizer que a prisão não vai nos tornar melhores ou deixar a sociedade mais segura, ela simplesmente ferirá a todos nós, de uma maneira ou de outra. Qualquer benefício que possa ser atingido, será realizado apesar da desafeição inflexível e vazia que somos obrigados a aceitar como “vida”.

Em última análise, há algo inerentemente tóxico à prisão, não apenas como local, mas como conceito, que denigre e desvaloriza tudo o que toca ao ponto em que vejo exatamente o porquê de tantos de meus colegas ainda afirmarem que eu cumpri meu tempo de forma completamente errada e nunca sonhariam em seguir o exemplo. A doxa da monstruosidade, do não merecimento, da incapacidade e ilegitimidade é tão forte que, mesmo estando, aqui, com um diploma, uma profissão, uma parceria de longa data, uma casa aonde ir, ofertas de emprego e mesmo já tendo minha liberdade condicional encaminhada para a primeira oportunidade que surgir, assim como tendo passado sem problemas pelo sistema de progressão da prisão, para muitos prisioneiros eu ainda sou apenas um ingênuo e delirante “infrator primário”, que terá dificuldades no mundo real e cujo sucesso até agora se baseia em ser quieto, almofadinha e não um “criminoso de verdade” como eles. Então, para todos aqueles que fazem o seu melhor para resistir à toxicidade da prisão, de forma a não prolongar a pena, eu tiro o meu chapéu. Porque dos tijolos à argamassa, da política à prática, da sociedade à cultura, as adversidades estão verdadeiramente contra nós, a cada passo do caminho.

A prisão é um mal necessário, até porque é o lugar em que eu sei que mereço estar. Eu realizei grandes feitos com meu tempo aqui, provavelmente algumas das coisas mais importantes que realizei na vida e que talvez nunca tivesse feito fossem outras as circunstâncias. Contudo, é devido a isso que eu posso dizer, com segurança, o que a prisão é e o que está tentando ser, mas que, entretanto, não funciona, exatamente por eu ser uma das pouquíssimas exceções que, infelizmente, confirma a regra.


 

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