Narrativas

periferias 3 | experiências alternativas

foto: Wà Coração – Coimbra, 2018. Desenho: Marcelo Forte, Coração bordado: Wà Coletivo.

WàCOLETIVO

Bordado, costura e crochê como arte contemporânea no espaço público

Cariri, Ceará

| Brasil |

A palavra “Wà” significa “caminhar” na língua indígena Kariri (povo que habitou e deu nome à nossa região). Foi este o nome que escolhemos para nos representar. Somos um coletivo de mulheres diversas, mas que caminhamos juntas. Juntas criamos, juntas nos expressamos, juntas ressignificamos e levamos a prática das técnicas artesanais do espaço doméstico e íntimo para as ruas, ampliando as possibilidades de se fazer arte urbana em um universo protagonizado pelas tintas e pelo masculino. 

As técnicas artesanais como o bordado, a costura, o crochê, entre outras são tradicionalmente reconhecidas como práticas femininas, e durante muito tempo sequer foram consideradas expressões artísticas. Como tudo o que as mulheres faziam, era jogado e subestimado à margem da sociedade patriarcal. Propomos outros rumos para tais técnicas na contemporaneidade, que sejam insubmissas e transgressoras, que se misturem ao discurso engajado politicamente e sejam compreendidas como arte contemporânea no espaço público, em grades, em muros, em prédios abandonados, dividindo espaço com outras expressões como grafites e pichações. 

Nessa perspectiva seguimos marcando nosso lugar no mundo, nos espalhando, caminhando até o momento pelo Cariri, pelo Brasil e por Portugal. Comunicando de onde viemos e também tratando de temas universais como o feminismo, a paz, o amor. Buscamos também estabelecer outras conexões criativas em diálogos externos, exercitando outras formas de coletividades, como  as oficinas que ministramos, que se configuram como experiências que vão além do ensino-aprendizagem. O processo interno da vivência é tão importante e significativo quanto o resultado das intervenções que afetará as pessoas nas ruas. A oficina é nosso “lugar” de nascimento e reviver essa prática proporciona a formação de novos coletivos artísticos, mesmo que temporários, nos alimenta criativamente e nos fortalece com a criação de novos laços.

Algo que desde o princípio nos unira fora o desejo de falar de nós mesmas e do nosso lugar; os desenhos criados para os bordados nessa primeira oficina davam esse indicativo e, à sua maneira, representam diferentes tipos de resistência no território.  A ave conhecida popularmente como Soldadinho-do-Araripe, é uma espécie endêmica que se tornou forte símbolo da preservação do meio ambiente em nossa região. O bordado com seu desenho foi fixado em uma casa abandonada num cruzamento de intenso movimento bem no centro da cidade do Crato, Ceára. A imagem reflete o descaso com a espécie de tamanha importância para a natureza e para o bem-estar da própria população local. 

 A Índia Kariri, que hoje abençoa e protege a entrada da casa do nosso grande artista Abidoral Jamacaru, nos faz lembrar do massacre indígena ocorrido durante a Confederação dos Kariris, entre 1683 e 1713, e também da destruição dos vestígios de vida e cultura material desse povo que originalmente  habitou a nossa terra e hoje dá nome à região. Essa mulher Kariri representa a resistência à violência, à escravidão, à tomada de terras e ao apagamento de crenças e tradições.

Mateu é um personagem brincante do nosso Reisado - uma das maiores e mais vivas manifestações culturais da fusão de etnias durante o doloroso processo de colonização na região. Esse folguedo popular é apresentado através da dança, do canto e da representação dramática, mantendo viva relação com a festa popular dos Santos Reis. No Cariri, a presença do negro na cultura da cana-de-açúcar faz o Reisado aparecer como Reis de Congo, já fundidos com elementos indígenas.  A cultura dita tradicionalmente “popular” tem raízes profundas, demonstra resistência e teimosia quando ao se manifestar, nos remete à nossa ancestralidade. No desenho da obra bordada, a imagem do duplo Mateu ainda traz associada consigo a questão contemporânea da mobilidade nos centros urbanos, reforçando a importância do uso da bicicleta como transporte.

 

 

 

Outro formato de partilha, conexão e diálogo é a parceria realizada com outras artistas. Em Portugal, na série Wà Coração, cada artista convidada colabora a partir de sua linguagem plástica.  A ideia é que cada colaborador crie uma representação do universo feminino e do mundo plural das mulheres no suporte bidimensional do desenho. Cada proposta é trabalhada para ser executada em papel destinado ao lambe-lambe. O trabalho/desenho da artista é somado ao trabalho do Coletivo, que cria e borda o coração para ser afixado/cravado no peito de cada personagem. Com esse gesto/soma as imagens de mulheres múltiplas e diversas se misturam e se completam, na busca de representar a nossa realidade.

A primeira obra da série foi realizada em Coimbra com o artista Marcelo Forte; a segunda, em Braga, com a artista Diana Medina e a terceira, foi realizada em Guimarães, com a  artistas Aglaíze Damasceno. São experiências que ampliam nosso olhar, que com ele  afetamos o outro e por ele somos afetadas. Esse trabalho colaborativo se configura como um fazer artístico marcado por novas conexões espaço-tempo, interatividades de múltiplos domínios e fusão de linguagens e estéticas. 

Na nossa obra mais recente realizamos uma homenagem a Crislaine Guedes, jovem de 21 anos, brincante contramestre do Reisado Estrela Guia, mulher transexual, pobre, periférica, sem ensino fundamental completo. Crislaine foi brutalmente assassinada no dia 1º de abril de 2019.  A intervenção propôs gravar na memória a lembrança de suas cores, beleza e alegria. Trabalhamos com bordados, macramê, pintura e colagens sobre foto de autoria de Alana Morais. A arte/homenagem foi fixada no bairro João Cabral, em Juazeiro do Norte, Ceará, cidade onde Crislaine vivia e ativamente participava de movimentos culturais e religiosos.  Esta é a nossa maneira de não silenciar tamanha violência contra pessoas trans.

Nossas obras são pautadas pelo tempo lento, próprio do labor artesanal. Mas também pela transitoriedade e efemeridade. Expostas no espaço público, sem qualquer tipo de vigilância ou fiscalização, estão sujeitas a interação do outro. O que normalmente acontece em mais ou menos tempo. Um eterno exercício de desapego que agora também percebemos como co-criação. O que isso nos diz? Que buscamos transversalmente, desempenhar uma função social e “deselitizar” a produção artística, abrindo-a à criação e experimentação coletiva prática e promovendo debates capazes de reaproximar o sujeito e o mundo. Acreditamos na arte para todos, com todos e por todos. 

Um grande bem-haja!


 

WÀCOLETIVO | Brasil |

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Adália Alencar é designer pela Universidade Federal do Cariri. Atua desenvolvendo produtos, projetos gráficos e outros projetos voltados para as linguagens visuais.
Beatriz Oliveira é graduanda em Comunicação Social-jornalismo pela Universidade Federal do Cariri.
Cleo do Vale é graduada em Moda, mestre em Gestão Social, doutoranda em Design de Moda e professora da UFCA.
Élida Gomes é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Cariri.
Jessyca Santos é graduanda em Design na Universidade Federal do Cariri.
Priscila Araújo é graduada em administração pela Universidade Federal do Cariri.
Rachel Gomes é artista visual, mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (2018) e graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri (2015). Sua primeira exposição individual Vagina Orai Pro Nobis (2015) teve curadoria do Prof. Dr. Fábio Rodrigues.
Raquel Santana e graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri membra do Coletivo Estação 9.
Shayna Moura é graduanda em Design pela Universidade Federal do Cariri.
Thamyres de Souza é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Cariri.
Valéria Oliveira é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri, empreendedora da Macrawork e da Feira Cariri Criativo.

wacoletivo@gmail.com

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