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periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

foto: RIC

Ecologia de guerra

A ideologia do movimento de libertação curdo contempla o ecologismo como um de seus pilares, ainda que sua implementação enfrente tamanha dificuldade fruto de nove anos de guerra

Frank Mei

| Síria |

traduzido por Daniel Martins de Araújo

O modelo econômico do Norte e Leste da Síria, território também conhecido por Rojava, baseia-se na tese de Murray Bookchin e em seu conceito de ecologia social.1Bookchin, Murray. The Ecology of Freedom: The Emergence and Dissolution of Hierarchy. 1982 O modelo contempla seres humanos como parte da natureza e promove princípios de igualitarismo ao invocar o funcionamento do ecossistemas; assume que na natureza prevalece a cooperação, a simbiose e outras formas de relação horizontal. O modelo de Rojava estabelece paralelismos críticos entre a dominação do homem sob a mulher, do humano sob outro humano, e  do humano contra a natureza. Com o objetivo de desenvolver uma sociedade ambientalmente sustentável, o modelo de Rojava propõe um sistema econômico que defenda a coletivização dos recursos naturais e da terra.Com o objetivo de desenvolver uma sociedade ambientalmente sustentável, o modelo de Rojava propõe um sistema econômico que defenda a coletivização dos recursos naturais e da terra

As teses de Murray Bookchin encontraram encaixe perfeito no vínculo do povo curdo com seu passado ancestral, que se proclama herdeiro das primeiras civilizações que habitaram a Mesopotâmia e das religiões como o yezidísmo, o qual ainda hoje em dia cultua elementos da natureza.2Religião pré-islâmica ligada ao misticismo, especialmente prejudicada pelos ataques do Estado Islâmico. O movimento curdo afirma, com frequência, ter suas origens nesses credos.

Não dissociada, a cosmovisão do povo curdo em matéria de ecologia vai muito além da simples visão ocidental centrada em aspectos como reciclagem ou mobilidade sustentável. O modelo ecológico de Rojava é um chamado viver em consonância com o mundo que nos acolhe.

Pequena represa de cooperativa agrícola, próximo a Amûde, Rojava | RIC
Cooperativa agrícola de mulheres em Demsal | RIC

Construir uma sociedade ecológica

Quando houve a revolução em Rojava várias instituições foram criadas, incluindo o Comitê de Ecologia. Os inícios não foram fáceis por conta da dificuldade de encontrar técnicos/as capacitados/as em ecologia, uma vez que era caótica a situação e muitos tinham fugido em decorrência da guerra.  Uma das pessoas que participou da criação do comitê é Alan Murad que, junto a a Hediya Mihmed, são corresponsáveis pelo comitê. 

O sistema político, por todas ramificações e níveis, funciona baseado no sistema de "co-presidência" em que postos de liderança, na maioria das instituições (exceto as organizações autônomas das mulheres) sejam compartilhadas por um homem e uma mulher.

O sistema político, por todas ramificações e níveis, funciona baseado no sistema de "co-presidência" em que postos de liderança, na maioria das instituições (exceto as organizações autônomas das mulheres) sejam compartilhadas por um homem e uma mulher

Quando territórios como Manbij, Raqqa, Tabqa ou Deir-ez-Zor foram libertados das mãos do Estado Islâmico, as atividades do comitê foram estendidas a essas regiões, com treinamento de novas pessoas.

Alan conta que “nós ajudamos a se organizarem, ensinamos o que é ecologia e como nosso comitê ecológico funciona. Ensinamos que, com a ecologia, podemos proteger a saúde, o ar e a terra.” Já Hediya Mihmed fala sobre o forte impacto da guerra na região. “Não só destruiu seres humanos e a infraestrutura mas, também, a natureza.

A guerra traz, ainda, uma mentalidade de destruição. Nas áreas que libertamos, tivemos de trabalhar para mudar essa mentalidade. E não é uma tarefa fácil. Requer tempo."

Alan Murad e Hediya Mihmed, corresponsáveis pelo Comitê Ecológico de Qamishlo | RIC

Uma das primeiras ações realizadas foi a troca de árvores que necessitavam de alto consumo e que viviam pouco, por árvores que necessitam pouca água e que vivem por muito tempo. Entretanto, foram muitos os obstáculos. O petróleo com o qual as famílias tradicionalmente fazem uso para se aquecer, frequentemente passa por escassez. Por isso, a população não teve outra opção senão derrubar árvores, sem se dar conta dos impactos negativos na natureza e em sua própria vida. 

O Comitê de Ecologia trabalhou para impedir essa destruição plantando milhares de árvores. "Quando agora vejo as pessoas plantando árvores por iniciativa própria, fico muito feliz”, comenta Alan. Atualmente o Comitê Ecológico é formado por 120 pessoas.

Para entender essa visão ecológica temos de falar de Abdullah Ocalan,  líder curdo preso pelo Estado turco há vinte anos. Ocalan diz que “se você quer seguir minha ideologia, meu caminho, então plante uma árvore e cuide dela”. Alan nos conta sobre o profundo significado contido nessa frase. Para ele, “quando  você planta uma árvore, como pessoa, você lança suas raízes. Isso te permite estar ligado à terra, a um território e te faz assumir suas responsabilidades." 

A cada 4 de abril, celebramos uma campanha pelo plantio de árvores. A data coincide com o aniversário de Abdullah Ocalan, ainda que, às vezes, o plantio comece até antes para aproveitar o clima ainda fresco, já que o verão na Síria é extremamente longo e quente.

Berivan Shilan, codiretor do Departamento de Ecologia e Assuntos Locais do Cantão de Jazira, explica que, uma vez criadas as estruturas e realizadas as ações mais urgentes, o Comitê se concentrou  na necessidade de mudar a mentalidade das pessoas: como cuidar da saúde, da vida e do meio ambiente. 

Para atingir esse objetivo, organizaram seminários com o objetivo de conscientizar e formar trabalhadoras e trabalhadores dos Comitês Ecológicos de cada município, que também participaram de ações de conscientização para suas instâncias administrativas locais, por sua vez vinculadas às comunas, os conselhos populares de bairro, que difundem a consciência ecológica entre a população.

Cezire Media

E depois de tudo, Corona Vírus

Em 23 de março de 2020 o Norte e Leste da Síria entraram oficialmente em quarentena. A situação se alargou até meados de junho, com um balance final de 5 infecções e um morto, ainda que o número seja provavelmente maior devido a falta de material necessário para a testagem. O único equipamento de teste disponível se encontra em Sere Kaniye, cidade sob ocupação turca desde outubro de 2019. No início de abril, outros seis equipamentos de testes foram comprados pelo Governo Regional do Curdistão iraquiano, ajudando a controlar os escassos surtos que ocorreram. 

Outro fato que merece destaque é a colaboração nula da Organização Mundial da Saúde (OMS), que não foi capaz de enviar ajuda humanitária à região, exceto em alguns casos em que material de ajuda fora diretamente enviado aos poucos hospitais controlados pelo regime sírio. No início de junho, a quarentena no Norte e Leste da Síria foi oficialmente encerrada, apesar de ter recomeçado em 13 de julho em decorrência do surgimento de novos casos em áreas vizinhas. O primeiro grande surto de coronavírus está em curso no Norte e Leste da Síria, com ao menos 17 mortes, 320 casos confirmados e tantos outros subnotificados à medida em que o vírus se propaga sem que haja controle nos centros populacionais com maior densidade habitacional.

O bloqueio econômico a que a região está submetida e o bloqueio preventivo das passagens fronteiriças foram a melhor garantia para a contenção do vírus. Entretanto, esse fato e a subsequente crise econômica proveniente das sanções econômicas impostas pelos EUA ao Regime Sírio evidenciaram a fragilidade da economia de Rojava, totalmente dependente do petróleo e do comércio com o Iraque. O bloqueio econômico a que a região está submetida e o bloqueio preventivo das passagens fronteiriças foram a melhor garantia para a contenção do vírus

Por esse motivo, a Administração Autônoma, órgão executivo do Norte e Leste da Síria, promoveu um plano para se alcançar, em um período de um ano, autossuficiência e cobertura de, entre outros bens, do abastecimento de vegetais. Para dar conta, cooperativas agrícolas de mulheres foram criadas, assim como hortas em terrenos particulares ou de comum usufruto foram encorajadas. Esse feito representa uma importante mudança se levarmos em conta o modelo produtivo existente até então, em que prevalecia a monocultura de trigo. Berivan Shilan, corresponsável do Departamento de Ecologia e Assuntos Locais do Cantão de Jazira, explica que a guerra em Sere Kaniye teve um efeito muito prejudicial nos projetos agrícolas existentes na região, que contava com as mais avançadas das cooperativas. Berivan explica: “sendo honesto, a economia de Rojava é baseada no petróleo. O resultado disso para a natureza é negativo, por isso estamos trabalhando por uma mudança. Sabemos que a riqueza da nossa terra é o petróleo, mas devemos aprender a usá-lo melhor ”.

Por parte da Turquia, mais uma faceta de sua guerra 

No marco das invasões sofridas por Rojava (em Afrin, 2018, e Sere Kaniye, 2019) a Turquia está fazendo uso de métodos específicos de guerra para dificultar a vida dos habitantes do Norte e Leste da Síria. No campo ecológico, o maior flagrante da nocividade turca está na água: Allouk, principal estação que bombeia para a província de Jazira, encontra-se em território sob ocupação. Assim, a Turquia deixa, com muita frequência, mais de meio milhão de pessoas sem água durante vários dias, com as agravantes consequências em um contexto de pandemia.

Além disso, os rios de Rojava, provenientes das montanhas do Curdistão turco (Bakur) estão altamente contaminados, e as barragens construídas em território turco reduzem consideravelmente a vazão dos rios, sendo o mais grave caso do rio Eufrates, uma vez que é a fonte de vida para os cantões de Taqba, Raqqa e Deir Ez-Zor. Outro efeito da invasão turca em Rojava são os incêndios provocados nos campos de trigo por mercenários, a mando da Turquia, sendo o trigo alimento da população durante o ano. A situação apenas se agrava com a obstrução no fornecimento de água mencionada anteriormente.

Os rios de Rojava, provenientes das montanhas do Curdistão turco (Bakur) estão altamente contaminados, e as barragens construídas em território turco reduzem consideravelmente a vazão dos rios, sendo o mais grave caso do rio Eufrates, uma vez que é a fonte de vida para os cantões de Taqba, Raqqa e Deir Ez-Zor.

Incêndio provocado por mercenários a mando da Turquia | RIC
Incêndio provocado por mercenários a mando da Turquia | RIC

Internacionalismo e ecologia

A participação de voluntários internacionais no campo da ecologia tem sido encorajada principalmente a partir da campanha “Make Rojava Green Again”, promovida pela Comuna Internacionalista de Rojava. A campanha busca a formação das pessoas voluntárias, a criação de uma rede de solidariedade internacional com o Curdistão e a prática ecológica em projetos realizados com a população civil, com os comitês municipais e com cooperativas de distintos povoados com Carudî e Rihanîke.

O Comitê de Ecologia de Qamishlo fez algumas colaborações com ativistas internacionais, apesar de pouco exitosas. "Pedimos dispositivos que nos ajudem em nosso trabalho, mas nunca atenderam a essa nossa demanda", explica Alan "Essa é a única ajuda que pedimos, pois o restante, já temos. Nós já temos nosso pessoal e a nossa própria reflexão ecológica", conclui.


 

Frank Mei | Rojava |

Jornalista e pesquisador com trabalho no Norte e Leste da Síria

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