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periferias 3 | experiências alternativas

ilustração: Juliana Barbosa

Viajando por periferias diversas e criativas de Lisboa

Os bairros da Cova da Moura e do Talude

Katielle Silva
Marcos Correia
Jorge Malheiros

| Portugal |

Construção clandestina ou precária, ocupação de terrenos privados, realojamento em habitação social pública são expressões comuns quando ouve-se falar nos bairros da Cova da Moura (concelho da Amadora) e do Talude Militar (concelho de Loures), na Área Metropolitana de Lisboa (AML). Tais representações desconsideram a complexidade de suas histórias e as lutas por direitos de seus moradores, bem como a emergência de iniciativas criativas associadas ao processo de territorialização dos seus moradores. Trata-se de lugares de engenho e criatividade, onde o português e o crioulo se misturam na língua falada nas ruas e o bilhete de identidade nacional portuguesa possuído por grande parte dos moradores, traz histórias de viagem, dos próprios ou dos pais, e uma bagagem cultural que combina uma matriz africana com o elemento luso do contexto, assumindo expressões nas sociabilidades, na dança, na gastronomia ou na música. São bairros híbridos e complexos, tensos e inventivo, onde a diversidade e o ajustamento ao novo contexto resultam em “novas elaborações culturais” inacabadas, em constante processo de (des) e (re) construção (Cuche, 2006, pp. 165). 

São dois bairros que partilham o adjectivo “informal”, onde o processo de autoconstrução constituiu a mola-mestra que possibilitou o desenvolvimento e as normas urbanísticas foram e são limitadas apenas pelas capacidades financeiras e técnicas dos seus moradores que em uma prática solidária (em crioulo da Guiné Bissau e de Cabo Verde “djunta-mon” que significa literalmente juntar as mãos) vão fortalecendo vínculos afetivos, de vizinhança e redes de apoio (Delgado, 2013; Gallardo, 2014).  

A origem do “djunta-mon” está ligada ao mundo rural e assenta em uma importante prática de solidariedade recíproca entre grupos de amigos, familiares e vizinhos a qual impulsiona a criação e realização de projetos coletivos. Ao acompanhar a migração das populações para o mundo urbano estrangeiro, o “djunta-mon” foi adaptado de modo a dar resposta aos desafios socio-urbanísticos da cidade, assumindo expressão em bairros periféricos como a Cova da Moura e o Talude Militar, através dos mutirões para limpar os terrenos, a abertura de ruas, o cuidar dos filhos dos vizinhos ou ajudar na construção das casas, dentre outras. A “[...] cultura de origem demonstra seguir tendo aplicações práticas na gestão dos problemas cotidianos nos novos lugares de residência” (Gallardo, 2014, p. 7).

Assim, a ideia ligada à “embalagem” desses bairros está diretamente associada ao que é precário, inacabado ou indesejado; afinal, uma espécie de “não cidade”. Porém, isto não dá conta da complexidade e riqueza das práticas sociais e culturais que emergem nas periferias de Lisboa, colocando os moradores desses bairros como “aqueles que necessitam”. 

Claro que aqui emergem condições sociais e territoriais desiguais condensando uma população com baixos níveis de escolaridade, taxas de desemprego superiores à média, défices no saneamento básico e na qualidade do espaço público, criando um “ciclo regressivo de vulnerabilidades” nos quais as várias condições de desvantagem acometem o mesmo grupo e se retroalimentam (Carmo, Cachado e Ferreira, 2015, p. 18). 

Os bairros da periferia de Lisboa aparecem representados como as “zonas opacas” da cidade, aquelas que os poderes públicos tendem a abandonar (exceto quando há campanhas políticas ou promovem a demolição e o realojamento…), sendo marcados por representações estereotipadas da violência, do comportamento desviante ou da dependência, desvalorizando o trabalho quotidiano, as solidariedades e os processos criativos, num quadro de resistência individual, coletiva e intercultural na cidade. Afinal, não é possível tratar os territórios populares como pouco criativos e seus  moradores como sujeitos incapazes de mudar suas condições de existência.

A persistência das desigualdades socioterritoriais na Área Metropolitana de Lisboa

A Área Metropolitana de Lisboa (AML) sofreu profundas alterações económicas, sociais, demográficas, urbanísticas e ambientais a partir da década de 1950. A população dos municípios que compõem hoje a AML aumentou de 1.249.340 habitantes em 1950 para 2.821.870 em 2011, correspondendo respetivamente a 15% e 26% da população total portuguesa (INE, 2019).

A transformação urbana ocorrida na AML entre 1950 e 2011 pode ser sintetizada em dois períodos. Primeiro, um fenómeno de forte industrialização entre as décadas de 1950 e 1970 que atraiu centenas de milhares de migrantes internos. A maioria dos migrantes estabeleceu-se nas periferias sul e, sobretudo, norte, da cidade de Lisboa, em áreas onde as habitações tinham um menor custo (e em muitos casos era de caráter informal e com condições precárias). 

A partir da década de 1970, com a crise de 1973 e as suas sequelas, a que se juntou a entrada de Portugal na União Europeia em 1986, iniciou-se um processo de desindustrialização ao mesmo tempo que se intensificou o desenvolvimento do sector dos serviços. Os impactos no território da AML foram profundos, sobretudo em áreas outrora ocupadas pela atividade industrial, como Lisboa Oriental, o concelho de Vila Franca de Xira (nordeste de Lisboa) e, principalmente, a Margem Sul do rio Tejo. Adicionalmente, ocorreu uma forte infraestruturação do território, com uma expansão da rede de transportes públicos e um desenvolvimento significativo da rede viária, com foco nas autoestradas. O que outrora era a periferia de Lisboa, foi integrada progressivamente numa malha urbana mais vasta, mais fragmentada e dispersa, em constante expansão (Salgueiro, 2002).

Foi também a partir da década de 1970, em sequência da Revolução de Abril de 1974 e do subsequente processo de descolonização dos territórios ocupados por Portugal em África, que os denominados retornados (portugueses e descendentes provenientes das ex-colónias africanas que “regressaram” a Portugal) se instalaram na AML, contribuindo para o crescimento demográfico e a consolidação urbana de diversos concelhos limítrofes de Lisboa. Junto com os retornados chegaram também os primeiros contingentes significativos de habitantes nativos das ex-colónias, agora denominadas Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Muitos destes imigrantes instalaram-se nos concelhos de Amadora, Sintra, Odivelas e Loures (1ª coroa periférica de Lisboa), muitas vezes em áreas inicialmente ocupadas pelos migrantes internos portugueses. Nos anos 1970, a maioria das áreas ocupadas por estes migrantes constituíam bairros de barracas e clandestinos (classificadas depois como Áreas Urbanas de Gênese Ilegal – AUGI – suscetíveis de reconversão urbanística) e eram caracterizadas, no primeiro caso, pela grande precariedade do edificado e pela ocupação do espaço e, em ambos, pela auto-construção, a ausência de um espaço público ordenado ou qualificado e a falta de infraestruturas básicas como os sistemas de saneamento.

Apesar do contínuo desenvolvimento económico, social e urbano da AML, que implicou o realojamento e a demolição da maioria dos bairros de barracas, sobretudo ocorrido entre meados da década de 1990 e 2011, no quadro do Programa Especial de Realojamento (PER) de 1993, e a reconversão e legalização de muitos bairros clandestinos, ainda subsistem algumas áreas degradadas e informais onde se verifica uma sobre-representação de residentes com origem nos PALOP (imigrantes e descendentes). Dois exemplos marcantes desta realidade são o Bairro da Cova da Moura, na freguesia da Damaia, concelho da Amadora e o Bairro do Talude Militar, freguesia de Unhos, concelho de Loures (Figura 1). O bairro do Talude Militar ocupa uma área de 1,6 km2, é composto aproximadamente por 110 habitações onde estima-se residirem entre 500 e 700 pessoas, maioritariamente de origem cabo-verdiana que ocupam terrenos públicos e privados (Ferreira, 2016; Luiz e Jorge, 2012). O bairro da Cova da Moura é mais densamente povoado, estimando-se residirem entre cinco e seis mil pessoas distribuídas por menos de 0.2 km2. Na prática, os territórios ocupados pelos bairros em estudo podem ser considerados como experiências urbanas particulares devido às suas caracteristicas sócio-culturais próprias na atual malha urbana da AML.

Figura 1 – Localização do Bairro da Cova da Moura e do Bairro do Talude (por secção)

A observação da tabela 1 mostra a vulnerabilidade social da população residente, no bairro do Talude. Aqui, a percentagem de população com pouca escolaridade (analfabeta e ensino primário) é sempre superior à da freguesia onde está inserido e, sobretudo, ao concelho a que pertence. Em relação à população efetivamente empregada, a sua percentagem é sempre inferior à da freguesia e à do concelho; além disso, entre 1991 e 2011, a proporção de população empregada diminuiu significativamente. Ademais, o desemprego no Bairro do Talude era, em 1991 e 2001, inferior ao da freguesia e, em 2001, ao do próprio município; no entanto, essa realidade alterou-se em 2011, ano em que o desemprego no Talude era cerca de 30% superior ao da freguesia e ao do concelho.

 

Tabela 1 – Evolução Socioeconómica do Bairro do Talude em 1991, 2001 e 2011 (%)

    Analfabeto Primário Empregado Desempregado Jovem
1991 (S) Bairro Talude  15.5 29.1 45.1 3.6 35.4
(F) Unhos 13.9 32.7 45.8 4.1 33.2
(M) Loures 10.3 27.1 47.6 3.1 29.0
2001 (S) Bairro Talude  17.1 34.5 46.1 2.5 27.5
(F) Unhos 15.6 32.4 48.0 2.7 26.8
(M) Loures 12.3 26.9 49.6 3.8 22.3
2011 (S) Bairro Talude  6.5 30.2 38.6 8.9 25.1
(F) Unhos 3.3 28.2 44.6 6.7 19.8
(M) Loures 3.3 23.6 43.8 6.5 21.0

Fonte: INE, Censos 1991, 2001 e 2011.

No que respeita a percentagem de população jovem (menor de 19 anos), esta foi superior à freguesia e ao concelho em todos os anos, embora se tenha verificado uma progressiva diminuição (como aliás em toda a AML), ao longo das últimas décadas. Em resumo, apesar da evolução socioeconômica registada na AML entre 1991 e 2011, o bairro do Talude continua a apresentar indicadores socioeconómicos mais desfavoráveis quando comparado com a freguesia e o município a que pertence.

Relativamente à Cova da Moura (tabela 2), a sua evolução socioeconómica parece ser mais problemática que a do Bairro do Talude, apesar das dinâmicas semelhantes. A taxa de analfabetismo no bairro da Cova da Moura, em 1991, era de mais do dobro da sua freguesia e concelho. Em 2011, apesar da diminuição acentuada em relação a 1991, a taxa de analfabetismo era quase três vezes superior à da freguesia e à do concelho. Já a população com ensino primário evolui de maneira diversa, sendo bastante inferior à percentagem da freguesia e do concelho em 1991, mas com proporções bastantes semelhantes em 2011. 

A percentagem de população empregada da Cova da Moura sempre foi inferior à da freguesia e à do concelho; no entanto, e ao contrário do Bairro do Talude, o valor entre 1991 e 2011 é praticamente o mesmo. Relativamente ao desemprego, a percentagem da Cova da Moura era ligeiramente inferior à do município em 1991 e 2001; porém, em 2011, a situação era já diferente, com uma percentagem bastante mais alta (10.6%) do que a do concelho e da freguesia a que pertence. 

Tabela 2 – Evolução Socioeconómica do Bairro da Cova da Moura entre 1991 e 2011 (%) 

    Analfabeto Primário Empregado Desempregado Jovem
1991 (S) Cova da Moura 20.4 16.9 37.7 3.4 44.5
(F) Damaia 8.1 26.5 47.0 3.6 25.4
(M) Amadora 9.6 25.2 47.5 3.5 27.8
2001 (S) Cova da Moura 19.6 23.8 46.5 3.9 30.2
(F) Damaia 9.6 27.4 47.7 3.8 17.0
(M) Amadora 11.5 25.5 49.3 4.2 21.1
2011 (S) Cova da Moura 8.0 25.3 35.5 10.6 26.1
(F) Damaia 2.9 25.7 40.6 6.6 17.8
(M) Amadora 3.3 23.5 42.1 7.4 20.0

Fonte: INE, Censos 1991, 2001 e 2011.

Tendo isto em conta, pode afirmar-se que a Cova da Moura tem um retrato semelhante ao do Bairro do Talude, uma vez que os indicadores censitários apontam para uma situação socioeconómica mais desigual quando comparado com a freguesia e o concelho a que pertence.Contudo, por trás desta realidade socioeconômica que persiste nos territórios ocupados pelos bairros do Talude Militar e da Cova da Moura, emergem processos formativos e de empoderamento, bem como iniciativas culturais reveladoras de forte criatividade e que se manifestam como verdadeiros atos de resistência e rebeldia frente à ideia de cidade monocromática, de cidade para poucos e iguais. Afinal, como refere Hurley (2019), a diferença e a diversidade, que facilitam a inovação, são hoje a marca dos territórios periféricos. 

O bairro Talude Militar

Como o próprio nome sugere, o bairro foi erguido acompanhando uma parte da Estrada Militar, originalmente com função de defesa de Lisboa e em área de declive nas margens do Rio Trancão, fator que leva a que o bairro do Talude Militar esteja classificado pelo Plano Diretor Municipal de Loures como impróprio para “reconversão urbana” por se tratar de uma área com riscos de deslizamento. Isto tem tornado o realojamento, desapropriação e demolições uma realidade para os moradores do Talude Militar, ajudado pelo fato do Bairro ter sido alvo do Programa Especial de Realojamento (PER), que visava eliminar os bairros de barracas em Portugal. Contudo, estima-se que o PER não abrangeu 43% dos 150 agregados familiares registados originalmente em 1993, realojando apenas uma parte dos moradores (Luiz e Jorge, 2012).

Nos bairros periféricos da AML vêem-se emergir, no espaço de precariedade material e, porventura, de condicionamentos ao desenvolvimento de uma vida com direitos plenos de cidadania, práticas culturais inovadoras que, ao mesmo tempo que procuram responder a limitações (i)materiais, servem também como ligação ao país e à cultura de origem, enquanto práticas de integração socioespacial da população imigrante. Do conjunto das práticas criativas desenvolvidas no bairro do Talude Militar destacaremos a horta urbana e a organização associativa do bairro. 

A horta urbana é entendida como uma atividade de intervenção em um entorno construído, logo coexistindo com outras tipologias espaciais, como os espaços residenciais, com a função de atender as necessidades de subsistência, mas também de identidade, de espaço de liberdade e afeto (Luiz e Jorge, 2012). E é neste contexto que as hortas urbanas do Talude, desempenham várias funções, para além daquelas diretamente ligadas a pequena produção orgânica que fica na mesa das famílias residentes, sendo uma parte menor comercializada e trocada dentro e fora do bairro.  

Contudo, ligada à função de enriquecer, a custo baixo, a dieta alimentar dos moradores do Talude Militar, as hortas urbanas são um meio através do qual resgata-se tradições e sabores dos países de origem de seus moradores. A cana-de-açúcar, o milho e o feijão são alguns exemplos dos produtos cultivados nas hortas do Bairro, além da criação em conjunto de animais também para consumo como galinhas, cabras e ovelhas.

Os produtos cultivados estão na base de pratos típicos africanos como o milho doce, o pastel de milho ou cachupa. A cana de açúcar, além de ser consumida na sua forma natural, é também moída e destilada para a fabricação do ponche e de aguardente chamada pelos cabo-verdianos de grogue

Embora envolvendo moradores de diferentes faixas etárias, a horta urbana é uma atividade desenvolvida mais intensamente por adultos mais velhos e idosos que, frequentemente, já estavam ligados à terra em suas cidades de origem e que procuram no “novo” território manter modos de vida e resgatar as ligações com o rural (Lages, 2011). “Já plantava em Cabo Verde. Como gostávamos de plantar na nossa terra, também plantamos aqui [bairro Talude Militar]”, diz um ex-morador do bairro, por quase 40 anos, hoje realojado, em conversa informal (Figura 2).

Figura 2 - Moradores do bairro do Talude Militar a debulhar ervilha em frente a horta, 2019.

A prática da horta é realizada com o emprego de conhecimento baseado nas tradições de plantio originárias. Contudo, o conhecimento “formal e técnico” ligado a horticultura também foi colocado em prática pelos mantenedores das hortas em virtude de vínculos estabelecidos entre moradores e investigadores da Universidade de Coimbra. Quando a Universidade ultrapassa o seu carater de espaço de produção, sistematização e transmissão de conhecimento, agrega práticas democráticas de saber que se transformam em práticas educativas, assume um compromisso com a sociedade e fortalece movimentos de resistência (Gohn e Zancanella, 2012). Essas práticas educativas foram acionadas no quadro da parceria com a Universidade de Coimbra, produto de um projeto desenvolvido por investigadores que levaram questões e debate sobre a importância da rotação de culturas, diversificação dos produtos plantados, controle natural de pragas, técnicas de irrigação e construção de tanques de adobe (Nunes, et. al., 2014). 

A coexistência das hortas e dos espaços de habitação refletem também a luta pela permanência em um território marcado pela incerteza e o acesso limitado a recursos básicos como a água e a terra.

É na procura de respeito, de subversão às precariedades vivenciadas através dos constrangimentos sociais, económicos, culturais e ambientais no espaço de viver não reconhecido pelo poder público, considerado “clandestino” e “informal”, que as hortas emergem como possibilidade de aceder a um espaço de liberdade, perdido noutro tempo-espaço da colonialidade, que forja a história desta população (Luiz e Jorge, 2012, p. 151).

De natureza inteiramente comunitária, a atividade associativa no bairro do Talude Militar, desenvolvida pela Associação para Mudança e Representação Transcultural (AMRT), anteriormente chamada de Associação de Melhoramentos e Recreativo do Talude, parece também ter surgido da combinação entre a conquista de direitos aos serviços urbanos e, ao mesmo tempo, alimentar dinâmicas imateriais ligadas à cultura dos seus moradores. 

A AMRT está em funcionamento desde Agosto de 1993 e foi criada por um coletivo de jovens moradores do bairro como resposta às dificuldades de alcançar meios institucionais para responder às insuficiências de um bairro que se autoconstrói, resultando em um processo de auto-organização com o propósito de solucionar problemas quotidianos e tornar as demandas visíveis ao poder público. 

Uma vez satisfeitas as necessidades materiais básicas, a AMRT galgou para dimensões imateriais através do desenvolvimento de atividades culturais e sua divulgação ou a criação de espaços de convívio que consolidam uma identidade comum. A AMRT tem espaço próprio dentro do bairro desde o ano 2000 e executa projetos ligados a inserção da população jovem na vida adulta e profissional, atividades voltadas a integração da população imigrante na “vida portuguesa”, apoio a educação das crianças do bairro e dispõe de um gabinete de inserção profissional e de um centro de informação. (Figura 3)

Para além das atividades na esfera interna do bairro, as quais são fundamentais para a manutenção de uma “solidariedade territorial”, é relevante sublinhar que a AMRT não limitou-se a “jogar” apenas na arena do lugar de pertença, valorizando a participação do bairro do Talude Militar nas arenas decisórias do concelho de Loures, como a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia de Unhos (Lages, 2011).

A AMRT foi se consolidando também através da realização de apoios sociais aos moradores do Talude Militar, como apoio à creche, tão fundamental em um bairro predominantemente de população jovem, e criação em 2008 do Banco de Apoio Alimentar e Vestuário (Lages, 2011). 

Além das práticas de apoio social aos moradores, há também aquelas festividades que reforçam a permanência de uma cultura que pode não ser considerada apenas de “lá”, mas que também não é somente de “cá”, e que contribuem para reforçar solidariedades e abrir o bairro ao exterior. A festa do Sagrado Coração de Jesus que acontece no mês de setembro e visa reunir a população de origem Africana residente e ex-.residente – por via do realojamento - do bairro e também que nunca viveu neste, é um exemplo deste tipo de Festas, envolvendo o som do batuque, da morna ou do funaná, enquanto come-se uma cachupa e bebe-se um grogue produzido com cana vinda da horta local. 

O bairro Cova da Moura (Kova M)

Da várzea do rio Trancão subimos agora até à colina entre as freguesias da Damaia e Buraca, no concelho da Amadora. Partilhando elementos do mesmo contexto histórico-cultural do bairro do Talude Militar, a população africana, maioritariamente, proveniente de Cabo Verde, fincou os primeiros pilares há quase meio século, no território do bairro do Alto da Cova da Moura. Junto com estes cabo-verdianos estavam muitos retornados brancos das ex-colónias portuguesas, a que se juntaram outras populações dos PALOP como os sãotomenses e angolanos. Contudo, na escala da AML e do país, o bairro da Cova da Moura é o território mais conhecido como “reduto” da identidade, da cultura, da resistência e da criatividade africana, particularmente crioula cabo-verdiana, em solo português. 

O bairro da Cova da Moura é caracterizado pela juventude da sua população, registrando-se uma sobre-representação dos empregos na construção civil (homens) e nos serviços de limpeza e nas cozinhas ou atendimento em restaurantes (mulheres) (Vasconcelos, 2007). Ruas estreitas com alcatrão gasto, instalações elétricas complexas e visíveis, traçado urbanístico denso e que reduz o espaço público, e várias construções que desafiam a arquitectura canónica, tal é a paisagem que configura este bairro das portas de Lisboa. (Figuras 4 e 5). 

Vista de uma das entradas do bairro da Cova da Moura, 2019
Rua do Vale no bairro da Cova da Moura, 2019

A forma do bairro resultou de um processo de evolução quase orgânico, que parte de um traçado parcial originalmente auto-definido que se vai densificando e sendo preenchido progressivamente pela ação dos moradores. Tratando-se da ocupação de um terreno quase totalmente privado, em que a ação pública se tem revelado incapaz de promover requalificação ou mesmo regulação efetiva, as marcas deste na paisagem são limitadas, correspondendo essencialmente à pavimentação de várias ruas, à construção de uma escola e de um polidesportivo.  

Na ausência de uma efetiva intervenção dos atores públicos, tem cabido às organizações locais da sociedade de bairro o papel de garantirem a qualidade de vida dos moradores e manterem constantes demandas junto dos atores públicos externos, assumindo a liderança da resistência colectiva. 

Assim como a Associação Mudança e Representação Transcultural (AMRT) do bairro do Talude Militar, a Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ) surgiu da necessidade de responder urgentemente às demandas do dia-a-dia para o básico funcionamento do bairro, como ter acesso a água e a energia eléctrica, juntando-se à Associação de Moradores do Bairro Alto Cova da Moura (AMBACM). 

Embora a ACMJ partilhe com a AMRT um embrião assente na ausência de respostas através de meios formais para resolução de problemas, aquela mantém, desde a sua origem, um discurso, convertido em prática, de valorização do imaterial (desenvolvimento de competências, promoção cultural, estímulo ao desporto…) que incorpora um elemento relevante de valorização da cultura cabo-verdiana, frequentemente reconstruída em contexto de interação e diversidade.

Efetivamente, na prática da ACMJ, as dimensões materiais e imateriais se entrecruzam através da arte, a qual é aqui entendida como uma dimensão política e social contribuindo para a desconstrução do senso comum, procurando dar visibilidade àquilo que o discurso hegemônico procura ocultar (Carmo, 2012; Mouffe, 2007; Malheiros, 2007). O grafite é uma destas iniciativas artísticas estimulada e presente no bairro da Cova da Moura, demonstrando uma valorização da cultura e a existência de uma identidade transnacional africana (Campos e Vaz, 2013). Muitos dos grafites contêm mensagens reivindicativas e de esperança, diversas de militantes e ídolos negros, pintadas em tons cinza ou com cores vibrantes, que transportam, sobretudo, elementos de identidade negra ou crioula, servindo por um lado para o embelezamento do lugar Cova da Moura e por outro como um marcador identitário, de resistência e de afirmação, que evidencia valores como a solidariedade, a ação coletiva, o anti-racismo ou a resistência à opressão. (Figura 6).

Grafites no bairro da Cova da Moura, 2019

De um modo mais específico, o resgate do lugar de origem está presente nas placas toponímicas colocadas pelos moradores, numa acção da ACMJ, dando nomes de ilhas de Cabo de Verde a algumas ruas do Bairro. 

A vivência da cultura de origem também aparece no som e dança do batuque realizado por mulheres, cabo-verdianas ou descendentes, integrantes do Grupo de Batuque Finka-Pé criado, com o apoio da ACMJ, em 1988. As mulheres em círculo, com uma dançarina no meio, percutem a “tchabeta”, um pano ou objeto coberto de napa enrolado entre as pernas, acompanhando este som com cantigas que remetem, por exemplo, à dificuldade da condição de ser mulher e aos problemas concretos que se deparam cotidianamente em Portugal.   

O momento cultural mais conhecido e original na Cova da Moura corresponde às festividades do Kola San Jon. Este cortejo, que tem origem nas ilhas de Santo Antão, São Vicente e São Nicolau em Cabo Verde e cruza cultura de escravos e colonizadores, mistura música, tambores, apitos e artefatos, é celebrado no bairro da Cova da Moura desde 1992. Vinte e um anos depois do início da sua celebração, a festa de Kola San Jon, celebrada no final de mês de junho, próximo ao dia de São João, foi inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial de Portugal.

 No domínio da promoção e produção cultural mais marcada pela hibridez e pela iniciativa dos jovens é incontornável referir o Festival Kova M que acontece, anualmente, desde 2012, na Cova da Moura. Como referiu o Coordenador do Festival, este tem como objetivo dar visibilidade a jovens artistas da música e da dança a morar na Cova da Moura e em outras periferias. É através do Festival Kova M que a população do bairro e de concelhos vizinhos pode desfrutar durante alguns dias de música, dança, desporto, sabores e temperos africanos, bem como de workshops sobre questões críticas. 

Dentre os géneros musicais apresentados no Festival Kova M, chamamos atenção para o hip-hop nacional, o rap portuga, música com um elemento étnico afro, produzida por jovens do bairro que expressam a sua indignação nas letras, onde também se podem escutar os seus sonhos de mudança da realidade (Raposo, 2010). Estes jovens tiram partido, desde 2008, do Kova M Estúdio, possuído pela ACMJ, para desenvolverem o seu trabalho e explorarem novas práticas criativas que difundem em circuitos digitais, registrando números elevados de streams.

 Por exemplo, em 2010 foi lançado um álbum chamado “música de intervenção” que reuniu vários músicos de rap do bairro, sendo este o primeiro álbum produzido no Kova M Estúdio. Falar em rap na Cova da Moura é ouvir nomes como Dom Vá, Ridel, Kromo de di Guetto e Mynda Guevara. O hip-hop da Cova da Moura, cantado em português e em crioulo, retrata a realidade daquele bairro que parece misturar-se com as realidades das periferias das grandes cidades globais, produto de uma urbanização que discrimina, marginaliza e exclui, moldando cidades desiguais e injustas. 

Além destas práticas culturais, a amostra do bairro da Cova da Moura pode ser desfrutada nos restaurantes com pratos típicos das ilhas, cujo aroma acompanha a caminhada, nos salões de cabeleireiro afro, ou nas mulheres que vendem o peixe e os legumes que a cozinha do trópico requer.

Essas iniciativas de inovação e criatividade (i)materiais no bairro da Cova da Moura significam, na verdade, “produzir cidade”, transformando o espaço precário em um lugar com vida. Internamente, contribuem para o reforço da identidade e do sentido de comunidade, apoiadas em códigos e práticas culturais que são vividas pela população e respeitadas por esta. Externamente, contribuem para a mobilização e difusão das estratégias de resistência, protagonizadas por moradores e pelas associações locais como a ACMJ e a AMBACM, a sucessivas investidas de destruição parcial ou total do Bairro, como foi aventado no contexto do já citado PER ou no quadro de um documento elaborado pelo município em meados do primeiro decénio do século XXI.  

Considerações Finais 

Comparados com bairros formais de realojamento público,  que apesar da melhor qualidade de diversos edifícios, frequentemente não estão bem inseridos no tecido urbano e são marcados pela ausência de atividades económicas locais (formais e informais), os bairros de autoconstrução, como o Talude Militar e, sobretudo, a Cova da Moura, materializam o direito da população empobrecida e etnicamente periférica a escolher o seu lugar na cidade e a contribuir para a produção desta, ajustando-a aos seus anseios e necessidades. Porque são lugares marcados por um certo abandono da regulação pública, por conflitos de tipos diversos (por exemplo, entre proprietários e moradores; forças policiais e jovens; instituições locais e poderes públicos) e por uma exigência de adaptação constante, não são bairros socialmente fáceis, sendo caraterizados pela resiliência e resistência dos moradores, como acontece na Cova da Moura.   

É nestes bairros que se produz a cidade diversa e plural, que desafia os referenciais normativos comuns que nos dizem (mal) que a integração (dos imigrantes no local de destino) é incompatível com um transnacionalismo ativo ou que a atividade que domina os bairros periféricos é a criminalidade, devendo estes ser erradicados. O Talude Militar e a Cova da Moura mostram-nos que não é assim.

Porque a cidade formal limita o acesso a quem tem poucos recursos, como os imigrantes laborais dos PALOP e os seus descendentes, os bairros são a alternativa de vida e moradia daqueles que “ficam de fora” e que ali se reinventam diariamente. Gerados num quadro de constrangimentos (poucos recursos financeiros, ausência de componentes de ordenamento público do território…), os desafios são muitos, da qualidade da casa à quase ausência de espaço público, ou da reprodução da pobreza e do insucesso escolar num quadro de racismo e de estigma territorial. Torna-se assim necessário fazer regressar o estado a estes lugares, não para os destruir, mas para requalificar, criando, num ambiente de co-gestão com os residentes, espaços físicos melhores, oportunidades de formação e valorização dos recursos “endógenos” alternativas (a crioulidade reconstruída) que conduzam a novas representações sobre os bairros, integrando-os na metrópole. Só assim será possível tirar pleno partido da criatividade aqui existente, concretizando o desiderato da inovação social, enquanto processo novo e mobilizador, capaz de contribuir para modificar as relações de poder.

Este trabalho tem o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT/MEC) através de fundos nacionais e é cofinanciado pelo FEDER através do Programa Operacional Competitividade e Inovação – COMPETE 2020 – no âmbito do projeto PTDC/ATP-GEO/2362/2014 – POCI-01-0145-FEDER-016869 / FINHABIT – Viver em Tempos Financeiros: Habitação e Produção de Espaço no Portugal Democrático


 

Bibliografia

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Katielle Silva | Brasil |

Geógrafa, Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, ambos pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutoranda em Geografia Humana pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa. É investigadora nos núcleos de pesquisa ZOE (Dinâmicas e Políticas Urbanas e Regionais), no Centro de Estudos Geográficos (CEG-ULisboa) e MSEU (Movimentos Sociais e Espaço Urbano) na UFPE.

katiellesusane@gmail.com

Marcos Correia | Portugal |

Geógrafo, Mestre em Sistemas de Informação Geográfica e Ordenamento do Território, ambos concluídos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Doutorado em Sistemas de Transporte, no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Realiza investigação nas áreas dos transportes, urbanismo, dispersão urbana, acessibilidade, equidade, desigualdades sociais, modelação e econometria.

marcoscorreia@edu.ulisboa.pt

Jorge Macaísta Malheiros | Portugal |

Geógrafo, pesquisador e membro da direção do Centro de Estudos Geográficos do IGOT (Universidade de Lisboa), onde também é professor associado. Desenvolve investigação nas áreas dos estudos sociais urbanos e das migrações internacionais, com destaque para a integração dos imigrantes, as dinâmicas demográficas, as relações de género, os problemas da habitação e da segregação urbana.

jmalheiros@campus.ul.pt

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