edição litafrika

periferias 8 | litafrika: Encontros Artísticos

ilustração: Mateus Rodrigues

Tram 83

Fiston Mwanza Mujila

| RD Congo |

junho de 2023

traduzido por Sandra Tamele

trecho traduzido de Tram 83
(Deep Vellum, 2015)

*

Primeira noite no Tram 83: noite de deboche, noite de bebedeira, noite de mendicância, noite de ejaculação precoce, noite de sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, noite de prostituição, noite de sobreviver, noite de dançar, dançar e dançar, noite que produz coisas que só existem entre um excesso de cerveja e a intenção de esvaziar o bolso de alguém que exala conflitos minerais, esse estrume de vaca elevado à matéria prima, no princípio era a pedra…

"Caminhamos pela escuridão da história. Éramos a vaca leiteira de um sistema de pensamento que lucrou a partir de nossa tenra idade, que nos esmagou por completo. Éramos um pedaço de merda."

"Tínhamos um ideal, inocência…"

"Inocência". ecoava Requiem, caindo na gargalhada. "Você quis mesmo dizer inocência? Inocência é covardice. Você tem que se movimentar com os tempos, irmão."

"Você não mudou nada."

"Aqui você não envelhece. Você simplesmente existe."

"Requiem…"

"Aqui é o Novo México. Cada homem por si, e merda para todos."

O Tram 83 era um dos restaurantes e puteiros mais populares, com um renome de ultrapassar as fronteiras da Cidade-Estado. "Vá ao Tram 83 e morra", era um dos refrões mais frequentes dos turistas dos quatro cantos do mundo que embrenhavam na cidade para tocar seus negócios. Durante o dia percorriam como zumbis as concessões de mineração que possuíam aos montes, acabando-se nas noites no Tram 83 para refrescar a memória. Isso dava ao lugar toda a aparência de um verdadeiro teatro. Se não, de um circo imenso, com um barulho de fundos como este: "Eu quero te massagear nas preliminares, então te chupar devagar, chupar seu corpo todo, chupar você até minha boca secar."

Não apenas no Tram 83, mas até na universidade e nas minas, mulheres não-casadas não evitavam abordar potenciais clientes com o mesmo salmo. 

Músicos inadvertidos e putas mais velhas e ilusionistas e pastores Pentecostais e estudantes com aparência de mecânicos e médicos dando diagnósticos em clubes noturnos e jovens jornalistas já aposentados e travestis e ambulantes de calçados de segunda mão e fãs de filmes pornôs e assaltantes de beira de estrada e cafetões e advogados destituídos e trabalhadores braçais casuais e ex-transsexuais e dançarinos de polka e piratas do alto mar e requerentes de asilo político e fraudadores organizados e arqueólogos e caçadores de recompensa e aventureiros modernos e exploradores em busca de uma civilização perdida e traficantes de órgãos humanos e filósofos de quintal de fazenda e biscates de água mineral e cabeleireiras e engraxates e técnicos de peças de reposição e viúvas de soldados e maníacos sexuais e amantes de livros de romance e rebeldes dissidentes e irmãos em Cristo e Druidas e shamans e vendedores afrodisíacos e escrivães e fornecedores de passaportes reais falsos e pistoleiros e porteiros e vendedores de brechó e garimpeiros de minério sem ativos líquidos e irmãos Siameses e Mamelucos e ladrão de carros e infantaria da colônia e arúspices e falsificadores e soldados estupradores-famintos e beberrões de leite falsificado e padeiros autodidatas e marabus e mercenários metidos a ser um dos Bob Denard e alcoolicos escavadores inveterados e milicianos autoproclamados "mestres do mundo" e políticos posers e soldados crianças e ativistas do Peace Corps resolvendo mil pesadelos de projetos de ferrovia ou operações de menor escala de cobre e manganês e frangotes e traficantes e ajudantes de garçonete e entregadores e pizza e vendedores de produtos de crescimento hormonal, todos os tipos de tribos invadem o Tram 83 em busca de bons momentos baratos.

“Os cavalheiros querem companhia?” Catorzinhas, apertadas em dois corpetes minúsculos, as duas miúdas receberam-nos com sorrisos inescrutáveis. Requiem decidiu-se pela do cabelo como savana de madeira. “Os teus peitos matam a minha sede.” “Senhor.” “Quanto por uma sessão de massagem?” A miúda disse um número. “Sabias que a bolsa de Tóquio está em queda livre?”  Ela segurou-o pelos pulsos. “ Lucro é igual a preço de venda mais preço a grosso menos embalagem.”  Um sinal enorme na fachada do Tram dizia: DESACONSELHA-SE A ENTRADA DOS POBRES, DOS MISERÁVEIS, DOS INCIRCUNSISOS, HISTORIADORES, ARQUEÓLOGOS, COBARDES, PSICÓLOGOS, SOVINAS, PARVOS, INSOLVENTES E TODOS COM O AZAR DE TEREM MENOS DE CATORZE ANOS, SEM ESQUECER OS MEMBROS ELEITOS DA DÉCIMA SEGUNDA CASA, CAÇA-FORTUNAS SEM UMA QUINHENTA, ESTUDANTES SÁDICOS, POLÍTICOS DA SEGUNDA REPÚBLICA, HISTORIADORES, SABE-TUDOS E BUFOS. Requiem ficou com o número de telefone da miúda. Eles entraram no estabelecimento. Tram 83 não tinha nada de especial. Era escuro à toda volta, como as Lascaux Caves. Homens. Mulheres. Crianças. Todos com copos e fumos. Atrás, uma banda massacrava desavergonhadamente um número de Coltrane, “Summertime”, sem sombra de dúvidas.

Eles dirigiram-se para o bar.

Duas miúdas com enormes seios papaia seguiram-nos imediatamente; chama-se “sombrear.”

“Tem as horas?”

Nada. Os olhos de Requiem patrulharam os brassieres. Uma delas era a miúda que o tinha acostado na estação cuja estrutura metálica... “Tem as horas?” martelaram as mães solteiras, inflexíveis e resolutas. Era uma tarefa mastodôntica identificar todas as mulheres que entravam no Tram 83. Elas combatiam o envelhecimento com garra. Difícil aventar uma distinção entre catorzinhas, chamadas borrachinhos, as mães-solteiras ou aquelas entre os vinte e os quarenta e chamadas de mães-solteiras mesmo que não tivessem filhos, e as mulheres sem idade cuja idade fixa começa aos quarenta e um. Nenhuma delas queria envelhecer um dia. Rebocadas de maquilhagem de manhã à noite, usavam mamas falsas, empregavam tácticas de braço de ferro 10 TRAM 83 para aliciar clientes e usavam nomes que soavam a estrangeiros, tais como Marilyn Monroe, Sylvie Vartan, Romy Schneider, Bessie Smith, Marlene Dietrich ou Simone de Beauvoir para deixarem a sua marca no mundo. “Vai ver no relógio do teu pai!” retorquiu Requiem. Eles ficaram com a terceira mesa à esquerda, no canto do bar, que permitia uma vista imbatível para as portas da frente e os jazzistas a prostituírem música e, as casas de banho e o balcão do bar e uma fila de mães-solteiras antipáticas, agressivas e um quanto maduras.

Nos seus momentos de loucura, Requiem dizia a quem quisesse ouvir que para monitorizar as idas e vindas e os álbuns de baptismo, era preferível escolher uma mesa que oferecesse um panorama das áreas supracitadas, recapitulando: o balcão do bar, os sanitários, as mulheres sozinhas, as portas de entrada, os músicos, mesmo quando corriam para os camarins para fumar marijuana, as empregadas de mesa, as empregadas de bar e por aí em diante. Eles permaneceram vários minutos sem falar um com o outro. Foi um feito de coragem tentar um diálogo no meio do pandemónio criado por uma música desviante e os gritos dos turistas e outros arrivistas que se identificavam com a atmosfera, em êxtase crescente, a vibrar, sussurrar, uivar e a tirar dinheiro que atiravam na direcção dos músicos. “Dá me um cafuné de verdade.”

“Tem as horas?”

“Dou-te o meu corpo, acorrenta-me, faz de mim tua escrava, tua propriedade, teu campo de caça privado.”

Tudo isto dava gás ao fervor da banda e, consequentemente ao linchamento daquela bela melodia. Nos labirintos da Cidade-Estado, não se escuta jazz para ter um cheirinho de cana de açúcar ou reconectar-se com a consciência Negra ou saborear a beleza das notas: escuta-se jazz porque se tem de escutar jazz quando se faz a cama de notas de dinheiro, quando se entrega o que se vende diariamente, quando se gere uma central de extracção, quando se é primo do General dissidente, quando se tem uma amantezinha que nos prende à cama num atordoamento estonteante. Jazz é um sinal de nobreza, é a música dos ricos e nos novos-ricos, daqueles que construíram este belo mundo quebrado. Esta gente não escuta rumba, que consideram porca, primitiva e inadequada ao ouvido.

Entre rumba e jazz vai um oceano, dizem eles.

Não se escuta jazz da forma que nos encontramos numa rumba com sabor Zairota.

Jazz está acima do declive precipitoso, uma falésia que só se pode escalar se possuir uma noção das suas origens, do seu desenvolvimento, das suas grandes figuras. O jazz já não é a história dos Negros. Só turistas e aqueles que dominam o dinheiro conhecem as fundações desta música. É a única identificação de uma certa burguesia, a burguesia de última hora. Consequentemente, quando os músicos começam a jazzar, todo o Tram 83 sacode a sua doença do sono. O grande baile de máscaras ao mínimo saxofone. As caça-fortunas e as estudantes adoptam os maneirismos dos turistas. Elas assistem, sorriem, levantam os copos de cerveja, andam, desbravam caminho até a pista de dança, chamam as empregadas de mesa e de bar à maneira dos turistas, assumem o porte soberbo do samurai, os gestos e atitudes do Marajá, a compostura do Dalai Lama. As docinhos, as empregadas de bar e de mesa não se deixam intimidar. Sorrisos como o da Rainha de Inglaterra, elas emulam imperatrizes imaginárias. Jazz é a única alavanca usada por toda ralé do Tram 83 para trocar de classe social como se se tratasse de carruagens do metro.


 

Fiston Mwanza Mujila | RD CONGO |

Escreve poesia, prosa curta e peças de teatro. Em 2009, ganhou a medalha de ouro para a literatura no Festival da Francofonia em Beirute e, em 2010, tornou-se escritor residente em Graz. Vive atualmente na Áustria. Recebeu o prêmio internacional de literatura “House of World Cultures” pela novela de estreia Tram 83 (2015).

Recentemente publicou La danse du vilain (2020) e a antologia de poesia Kontinentaldrift, pela editora Das Schwarze Europa (2021).

@mwanzamujila

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