ensaios

periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

Trabalhadores nas terras mais baixas

Os desafios dos migrantes egípcios no Vale do Jordão e do espaço cívico jordaniano

Ayman Halaseh, Rawan Rbihat e Hala Abu Taleb

| JORDÂNIA |

agosto de 2023

traduzido por Giuliano Guiari

King Hussein Foundation

Grandes fazendas se situam entre 50 e 133 quilômetros de Amã, capital da Jordânia, no Vale do Jordão, que se estende do Mar da Galiléia, ao norte, até o local onde o Rio Jordão desemboca no Mar Morto, ao sul. É nessas terras férteis, que são a espinha dorsal do setor agrícola da Jordânia, que se realiza um dos trabalhos mais insalubres, em sua maioria por trabalhadores imigrantes egípcios.

Conheci Tawfiq e seus colegas de trabalho egípcios na parte mais baixa da superfície da terra. A maioria veio de zonas rurais no Egito e sempre trabalharam na plantação.

Para Tawfiq e seus colegas, a labuta começa por volta das 5h30, antes do nascer do sol, e vai até as 15h, podendo se estender dependendo da safra e da altitude trabalhada no dia. Quando chegamos, por volta das 10h, eles estavam tomando café da manhã à beira da estrada. A refeição havia sido preparada por uma das famílias paquistanesas que mora na fazenda que migrou para a Jordânia nos anos 70.

Era época de colheita das frutas, que começa com a primeira colheita, depois a segunda e assim por diante. A maioria dos trabalhadores têm um breve intervalo a cada duas horas, aproximadamente. Os empregadores preferem contratar trabalhadores egípcios e pagar uma remuneração mais alta para eles do que para outros trabalhadores, devido a uma série de fatores, que vão desde o fato de eles estarem sempre próximo às fazendas, em virtude da região onde moram, até a sua força física e resistência superiores à de outros trabalhadores.

Apesar dos esforços, trabalhadores agrícolas migrantes se deparam com uma série de obstáculos que limitam seu acesso a alguns direitos básicos. Um dos maiores obstáculos é o Sistema de Apadrinhamento (Kafala).

Apesar dos esforços, trabalhadores agrícolas migrantes se deparam com uma série de obstáculos que limitam seu acesso a alguns direitos básicos. Um dos maiores obstáculos é o Sistema de Apadrinhamento (Kafala)

Assim como a maioria dos trabalhadores egípcios, Tawfiq está vinculado ao seu padrinho por meio do sistema kafala, ainda que seu padrinho não seja seu contratante. Esse sistema permite que os contratantes tenham um elevado grau de controle sobre a situação jurídica de seus contratados, deixando os trabalhadores suscetíveis a exploração e abuso.

Tawfiq nos conta que ele não consegue visitar sua família no Egito porque seu contratante se negou a dar a autorização necessária e que ele está pedindo mais dinheiro sem justificativa legal. Além disso, o passaporte e o visto de trabalho de Tawfiq estão retidos com o contratante — uma prática comum na Jordânia — e isso reduz sua possibilidade de locomoção.

Durante o verão, as temperaturas no Vale do Jordão podem chegar aos 50 °C, expondo os trabalhadores como Tawfiq ao risco de insolação e picadas de serpentes. Segundo um dos trabalhadores que nos recebeu, o Ministério da Agricultura não fornece nenhum equipamento protetivo — sequer protetores contra serpentes — e, mesmo o contratante podendo fornecer esse tipo de material, isso quase nunca acontece porque, para eles, as terras são grandes e difíceis de administrar. 

Eu não consegui encontrar uma unidade de pronto atendimento ou um kit de primeiros socorros dentro das terras da fazenda. Quando perguntei para Tawfiq e um trabalhador paquistanês quem poderia auxiliar nessa questão, eles disseram que, aqui, os trabalhadores se curam com misturas naturais ou abrindo cápsulas de antibióticos e colocando o pó no ferimento ou área inflamada.


Redes solidárias informais

De acordo com a Legislação da Jordânia, é proibido aos estrangeiros formar associações ou sindicatos. A embaixada egípcia não presta assistência adequada nem informações para os trabalhadores. Para piorar o problema, muitos trabalhadores não conhecem seus direitos ou não têm acesso a assessoria jurídica. Alguns trabalhadores foram inclusive vítimas de práticas exploratórias, como ter o passaporte retido pelo contratante ou ser forçado a trabalhar sem receber. Nessa situação, foi por meio das redes sociais que surgiram redes solidárias informais entre os imigrantes egípcios. Tawfiq me explicou que eles se consultam regularmente com o líder tribal “Sheikh Al Ashera". Já outros trabalhadores recorrem ao líder egípcio conhecido como "Al Umda" para a mediação de conflitos. Uma vez que não é disponibilizado plano de saúde para todos os trabalhadores agrícolas, incluindo os egípcios, Al Umda também assessora quem precisa de ajuda financeira ou assistência médica.

A embaixada egípcia não presta assistência adequada nem informações para os trabalhadores. Para piorar o problema, muitos trabalhadores não conhecem seus direitos ou não têm acesso a assessoria jurídica

"Se o contratante não paga meu salário, aqui nessa região é possível informar a situação para o 'Shaikh Al Ashera'. O 'Sheikh Al Ashera' pede o nome do contratante e telefona para ele indagando por que o salário dos egípcios não foi pago. Uma semana depois, o Shaikh dá o dinheiro, pede desculpas e nos informa que é direito nosso, mas se ele não der o dinheiro, não tem mais nada que eu consiga fazer. Eu fico me convencendo de que não existe nenhum problema, de que eu não estou aqui para arrumar confusão." 

O Tawfiq foi nos guiando por entre as casas e comentou, em tom de brincadeira, que todas as organizações de direitos humanos deveriam ir até lá para registrar as casas. Depois, como quem conta vantagem, ele comentou que conseguiu sair dessas casas há pouco tempo e conseguiu se mudar para um quarto no andar de cima com vista para a rua.

Ao que parece, os trabalhadores se acostumaram a esse modo de vida; ainda assim, eles sempre se mostram capazes de suportar essas condições para ganhar dinheiro. Quando se aprofundam mais fundo na questão, no entanto, a maioria afirma que o que a situação que eles estão enfrentando é o oposto da expectativa que tinham quando estavam no Egito. Um trabalhador migrante concluiu dizendo: “Você viu como são as casas. Alguém consegue viver com conforto nessas casas?!" 

 

Na Jordânia, há muitos anos os trabalhadores rurais são relegados da Legislação Trabalhistas e, portanto, não têm proteção salarial, cobertura de previdência social, nem segurança ocupacional nem assistência médica adequadas. Em uma tentativa de melhorar um pouco as precárias condições de trabalho, o Conselho de Ministros publicou a Normativa No. 19/2021 para Trabalhadores Rurais.

A Normativa não aborda a questão da exigência de proteção dos trabalhadores e tampouco reflete o processo de recrutamento desses trabalhadores; ela propõe que trabalhadores rurais tenham um contratante definido, quando, na realidade, esses trabalhadores atuam todos os dias em diversas fazendas via intermediários conhecidos como "Shawish".

Essa mudança impactará na possibilidade de os trabalhadores usufruirem dos seus direitos, tais como licença remunerada, acomodações adequadas e assistência médica em caso de acidente no local de trabalho. No entanto, a normativa apresenta diversas brechas: essencialmente, ela repete o que diz a Legislação Trabalhista e não acrescenta nenhuma proteção significativa com base na natureza do trabalho. Além disso, o contratante não é obrigado a garantir os direitos fundamentais dos trabalhadores caso ele ou ela contrate menos de três trabalhadores.

Esses direitos incluem o limite diário e semanal de horas trabalhadas, horários de intervalo, o direito a receber 150% do salário base ao trabalhar durante dias de folga semanais, feriados oficiais ou religiosos, férias anuais, além da licença médica e licença maternidade. Ela também exclui os trabalhadores rurais da Legislação de Segurança Social, deixando-os sem nenhuma proteção social.

Algumas poucas ONGs locais na Jordânia defendem que essa Normativa seja alterada, de maneira que os trabalhadores possam usufruir da plenitude de seus direitos e receber proteção social, bem como que os contratantes sejam penalizados caso violem os direitos dos trabalhadores. Entre essas organizações, destacam-se: Tamkeen for Legal Aid, Justice Center for Legal Aid e Information and Research Center – King Hussein Foundation. Elas atuam por meio de mecanismos internacionais de direitos humanos disponíveis na Jordânia, como a Revisão Periódica Universal.

O espaço cívico na Jordânia está encolhendo, conforme demonstra o relatório "Jordan: Government crusher civil space [Jordânia: o governo esmaga o espaço civil]" publicado pela Human Rights Watch em 2022. A influência e impacto dos sindicados está em declínio, o que, naturalmente, também traz implicações para os imigrantes egípcios no país.

Devido à vulnerabilidade desses trabalhadores imigrantes, é crucial que aumente a quantidade de ONGs que fornecem assessoria jurídica para trabalhadores imigrantes na Jordânia. Além disso, as ONGs no Egito podem desempenhar um papel crucial de conscientização em relação aos vistos e condições de trabalho da Jordânia nos vilarejos egípcios de onde saem os trabalhadores que imigram, bem como conscientizá-los a respeito de como superar obstáculos na Jordânia. Infelizmente, organizações não governamentais no Egito e na Jordânia não estão colaborando para a melhorar as ações e serviços prestados em defesa dos trabalhadores.


 

Ayman Halaseh | JORDÂNIA |

Diretor do Centro de Informação e Pesquisa — Fundação King Hussein (IRCKHF) e Professor titular de Direito Internacional e Direitos Humanos.

Rawan Rbihat | JORDÂNIA |

Pesquisadora sênior do IRCKHF e pesquisadora no MIDEQ Hub.

Hala Abu Taleb | JORDÂNIA |

Gerente de pesquisa do IRCKHF e pesquisadora no MIDEQ Hub.

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