Do direito à cidade das pontes
Clarice Libânio
| Brasil |
maio de 2018
Termo bonito o tal do direito à cidade! Daqueles que resumem, significam, agregam, condensam uma série de pensamentos, de filosofias e de posições diferentes! Afinal, quem discorda do direito à cidade? O termo é forte, quase atemporal, diriam alguns! Termo composto, conceito síntese! Tão sintético que quase já não se discute mais: seria consenso?
Direito à cidade, para Henry Lefebvre, é direito à festa, à riqueza e ao poder! É na dimensão do encontro (da ponte?), da socialização e da troca que o direito à cidade aparece como condição e realização efetiva da sociedade urbana, como grande transformação − mais do que econômica, mas uma revolução política e cultural permanente.
Mas me pergunto, para as nossas cidades de hoje, esse direito existe de fato? Ou é uma quimera, próxima para poucos? Para mim, direito à cidade pressupõe práticas efetivas de acesso às oportunidades; de compartilhamento e de transformação social. Aqui o acesso é pensado como concretização para os sujeitos - principalmente os pobres - de seu pertencimento e apropriação real do “paradigma da promessa” (FORTUNA, 1995), inscrito no urbano. Sem essa mudança no cotidiano, o direito à cidade é letra morta.
Para Marques (2010), o acesso não se garante apenas com a oferta de oportunidades no território, quaisquer que elas sejam. Acesso é igual à oportunidades mais ativos para acessá-lo. Desprovidos de ativos, os grupos sociais não os têm, e as oportunidades continuam para poucos. Nessa perspectiva, há que se ampliar não apenas a oferta de serviços e oportunidades, mas também e principalmente, dotar os indivíduos de ativos, de condições para usufruir destas oportunidades. Sem os ativos (individuais e coletivos); sem educação, cultura, informação, participação em grupos diversos; sem a formação de redes, indivíduos jamais terão acesso ao que a cidade pode oferecer.
Além de infraestrutura e equipamentos coletivos, é fundamental garantir o direito aos serviços, ao lazer, à cultura, à formação dentro e fora da escola, ao compartilhamento das experiências, ao uso dos espaços públicos, à tomada de decisões, à participação política e à construção simbólica. É preciso, afinal, conciliar a cidade, fazendo pontes entre as diferenças e reduzindo assim as desigualdades.
Sem ingênuas esperanças, não se espera que os conflitos e as diferenças das sociedades se dissolvam, conciliem-se e se harmonizem, e que enfim, tornem-se um só corpo. Por isso a ideia de ponte: ela liga dois lados diferentes - dois territórios que, apesar de contíguos, não estão colados e trazem entre si um fosso, uma barreira, um gap ou hiato a transpor. Para Simmel (1909), a ideia de ponte mais acentua o conceito da reunião, do que o da divisão; supera o distanciamento entre as extremidades, ao mesmo tempo em que as torna perceptíveis e mensuráveis.
É importante ainda lembrar que o hiato não é apenas físico. As barreiras não são somente as naturais ou as construídas materialmente, como um rio para o primeiro caso, ou uma linha férrea, para o segundo. Seria também possível construir pontes que superem ou transponham as barreiras simbólicas?
A construção de uma cidade das pontes necessariamente passa pela garantia do direito à cidade, que hoje penso ser composto por pelo menos seis dimensões: 1) econômica (a qual se refere ao emprego, renda, consumo e reprodução da vida); 2) espacial / territorial (relacionada ao provimento e apropriação dos serviços urbanos, da infraestrutura, da localização da moradia, dos deslocamentos pela cidade e das condições de habitabilidade em geral); 3) política (garantia dos direitos de cidadania, capacidade dos indivíduos de influenciar decisões que lhes afetem e capacidade de construir formas de viver coletivamente; participação efetiva e não apenas formal das populações nas esferas decisórias); 4) simbólica (centraliza os elementos de identidade, identificação, afeto, convivência, aceitação e pertencimento do indivíduo à determinado grupo ou território; discute as barreiras simbólicas, as formas de apropriação do espaço e possibilidade de uma efetiva vida coletiva na cidade); 5) relacional (aponta para a importância da informação e da formação de redes - individuais, pessoais, sociais, informacionais, e outras diversas - para a alterar as relações sociais e de poder na cidade); e, por fim, 6) cultural (que engloba fatores como educação, informação, fruição, produção cultural e acesso ao bem comum do conhecimento).
Aqui defendo esta última dimensão - a da cultura - como elemento fundante e essencial do direito à cidade e, portanto, da minha cidade das pontes. Nos estudos que venho desenvolvendo, nos últimos 20 anos, nas favelas brasileiras, tenho percebido que a cultura parece cumprir alguns papéis importantes na superação dos entraves e dificuldades para que as populações de baixa renda tenham acesso à cidade e busquem a efetivação do direito a ela.
Se nesses territórios têm avançado a oferta de serviços e infraestrutura nos últimos 30/40 anos, houve também retrocessos, em especial no que se refere à garantia de permanência no local e à participação na tomada de decisões. Aí também se tem visto a importância da cultura como instrumento de transformação, a partir de fatores diversos, entre eles o aumento da escolarização, o envolvimento – especialmente da juventude – em atividades culturais, a ampliação da visão de mundo – através da educação não formal - o estabelecimento de relacionamentos externos com novos grupos sociais e outros.
Em resumo, o aumento do capital cultural e do capital social tem levado à ampliação do acesso dos moradores das favelas às oportunidades disponíveis na cidade, mesmo sem posse do capital econômico. Especialmente para os jovens das favelas, a cultura tem sido instrumentalizada como oportunidade e fator de transformação. Através da cultura e suas práticas, os jovens encontram novas formas de expressão pessoal, social e política.
Essa transformação vai em três direções principais. Num primeiro nível, gera transformações na esfera pessoal, na identidade daqueles que se envolvem com as práticas culturais. Nesse âmbito, a que chamo “a cultura como recurso” (YÚDICE, 2004), vê-se que a participação na produção cultural contribui para a elevação da autoestima, para o autoreconhecimento e, como consequência, para a construção de uma nova representação do jovem perante a si mesmo, ao outro e ao grupo. O envolvimento (principalmente) dos jovens com a arte, transforma e fortalece sua identidade e gera empoderamento.
Num segundo nível, o envolvimento com as práticas culturais gera mudanças na esfera social, no grupo imediato. Nesse âmbito – que denomino de ”a cultura como ponte” - é possível perceber que o envolvimento com a arte e a cultura transforma as formas de sociabilidade e convivência intergrupal nas favelas. Os envolvidos passam a se relacionar com outros grupos, a formar novas redes, a ampliar contatos e a ter acesso a outros espaços e oportunidades. Também contribuem para a mudança do próprio grupo social e/ou familiar, através da introdução de novos conceitos, experiências, informações, referências, vivências, práticas e outros.
Por fim, com o terceiro nível, o da “cultura como ação” é possível perceber mudanças no nível da micropolítica e da participação. O envolvimento com a produção artística constrói novas formas de mobilização comunitária, em contraponto à queda da participação nos espaços tradicionais, como sindicatos, associações de moradores e partidos políticos. O que se vê é a introdução de novas formas de ação coletiva, via movimentos culturais, cujo resultado é a ampliação dos direitos da cidadania e a emancipação dos sujeitos.
Hoje tenho trabalhado e refletido a respeito das possibilidades de um quarto nível de mudanças introduzidas pelas práticas culturais nos territórios. Para além do âmbito individual e do grupo social imediato, pode a cultura contribuir para fazer efetivo o direito à cidade, em seus vários níveis? Pode ela ser ponte forte o suficiente para contribuir com a alteração dos processos de segregação socioespacial? Em qual perspectiva a cultura pode gerar uma mudança real nos territórios e nas relações de poder que neles se expressam? Como as práticas culturais têm rompido com o planejamento urbano excludente, usado para manter o status quo? Em que perspectivas os movimentos culturais têm contribuído para a emancipação das populações pobres e para a efetivação do direito à cidade?
Na minha cidade das pontes, são a cultura e suas práticas que fazem a passagem entre classes sociais diferentes, entre diferentes modos de vida, entre concepções de mundo aparentemente díspares e entre situações cotidianas, a princípio irreconciliáveis. Minha cidade das pontes é uma cidade onde o encontro, a festa, a socialização e o compartilhamento dos espaços públicos através da cultura geram processos mais duradouros e transformadores do que o mero lazer ou fruição estética. Na cidade das pontes é possível alterar as relações desiguais que se expressam no urbano, iluminadas e apoiadas pela potência da diversidade, da cultura mundo e das identidades híbridas.
As práticas culturais, na minha cidade das pontes, incentivam a ação, movem, tiram da estagnação, dão ânimo, trazem alegria, esperança, energia e acabam por mostrar novas e renovadas possibilidades de uso do espaço, do tempo, do corpo. Através do vislumbre das possíveis pontes, conexões entre diferentes, suscitam o envolvimento, a participação; levam a fazer juntos e congregam. As pontes da cultura geram senso de pertencimento.
Na cidade das pontes os hiatos podem ser transpostos; convergem e divergem, mas não se isolam, não se rompem. Nela a cultura dota os indivíduos de informação, constrói e faz emergir novos conhecimentos, entre eles a consciência da solidariedade, do compartilhamento, da ocupação do espaço público, de que é junto que se consegue fazer algo, de que é preciso ajudar uns aos outros, de que é na festa, na troca, no encontro e no coletivo que se gera energia para a vida e para a superação das dificuldades do cotidiano.
Edmund Ruge | EUA |
Coordena traduções para o inglês e edita a versão em Inglês na Revista Periferias. Com base no Rio de Janeiro, é mestre em Economia Internacional e Estudos Latino-americanos pela Johns Hopkins School of Advanced International Studies (SAIS)
edmundruge@gmail.com