Bem viver e autonomia nos territórios indígenas latino-americanos
Bem viver: linguagem, criatividade e criticidade
Salvador Schavelzon
Thea Pitman
| Brasil | Reino Unido |
julho de 2019
Durante 2018, um grupo heterogêneo de pessoas – de comunidades indígenas localizadas no nordeste do Brasil e no sudoeste da Colômbia, de grupos mais ou menos formais do terceiro setor com foco no empoderamento indígena, e de universidades no Reino Unido, Brasil e Colômbia – juntou-se para trabalhar em um projeto de “rede de pesquisa” cuja proposta fora explorar as maneiras em que o discurso do ‘bem viver’ circulava nas comunidades indígenas em questão.
Na Colômbia, o projeto envolveu comunidades Nasa do norte do departamento do Cauca, particularmente do território indígena autônomo de Pioyá; iniciativa de comunicação; e ação Pueblos en Camino e a Universidade Autônoma do Ocidente (UAO), de Cali. Do Brasil, participou uma rede de comunidades indígenas dos estados de Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco; comunidades Pankararu, Kariri-Xocó, Karapotó Plak-ô, Tupinambá de Olivença; comunidades Pataxó do sul da Bahia as quais trabalham com a ONG Thydêwá (Bahia); e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já no Reino Unido, o projeto envolveu acadêmicos das Universidades de Leeds e Bristol e foi apoiado pelo Global Challenges Research Funddo Arts and Humanities Research Council- uma iniciativa que busca alinhar suas prioridades de financiamento de pesquisa com as dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
O tema do ‘bem viver’ foi inicialmente sugerido pela ONG e adotado por outras pessoas envolvidas na rede como uma área onde a pesquisa poderia ser realizado em conjunto com iniciativas comunitárias existentes para promover valores, crenças e práticas indígenas; iniciativas que são particularmente importantes dado os contextos políticos volátiles em ambos os estados e nação que ameaçam seriamente a sobrevivência dessas comunidades, assim como suas propostas alternativas para a organização social humana e sua relação com o meio ambiente (Colômbia; Brasil).
Tais debates procuraram examinar criticamente o conceito do “bem viver” seguindo sua cooptação na última década pelos governos de outros estados-nação na região (Equador e Bolívia), e sua crescente cooptação por políticos, tanto na Colômbia como no Brasil, bem como por outros intervenientes não-indígenas, por exemplo, a igreja Católica no Brasil (para um contexto mais completo, consulte Schavelzon, também nesta edição). A rede de pesquisa também procurou explorar o que está em jogo na potencial conflação de entendimentos indígenas da sustentabilidade que são parte integrante do “bem viver” e a promoção de cima para baixo da sustentabilidade como algo alcançável no marco de desenvolvimento patrocinado pelas Nações Unidas através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (para detalhes, ver Almendra e Rosental, também nesta edição).
Assim, o projeto patrocinou uma série de eventos nas comunidades indígenas envolvidas, bem como três simpósios internacionais para compartilhar conhecimentos e perspectivas através de tantos membros da rede quanto possível. A lógica por trás das atividades em comunidades indígenas era deixar espaço para que a investigação fosse dirigida pelas próprias comunidades através do uso de fundos para apoiar eventos e/ou projetos que já estavam em andamento e que poderiam fornecer fóruns adequados para a discussão do ‘bem viver’ e termos relacionados.
Para a ONG Thydêwá, por exemplo, o “bem viver” tornou-se um tema transversal pautado em praticamente todos seus projetos durante 2018, desde as discussões diárias na sua rede de Pontos Cultura Indígena e na sua rede de mulheres indígenas (Pelas Mulheres indígenas), até ser um tema proeminente nos projetos mais focados nas artes e cultura voltados para a melhoraria das relações entre gerações, por meio da partilha de memórias e conhecimentos (Memória Viva) e para criar Arte Eletrônica Indígena (AEI). Para Pueblos en Camino, o financiamento foi usado para apoiar uma ampla gama de eventos, a maioria dos quais tiveram como foco a conscientização e/ou mobilização política sobre como praticar o ‘bem viver’ em comunidades indígenas autônomas no contexto de uma Colômbia pós-Acordos de Paz; ou se relacionaram a temas específicos, como o impacto projecto de construção da barragem Hidroituango para seres humanos e meio ambiente.
O que quero focar aqui é na importância da linguagem – tanto no uso de terminologia específica nas línguas europeias dominantes em questão, como na utilização das línguas indígenas em si – como um componente essencial para uma abordagem crítica e criativa para o ‘bem viver’ que procura evitar a cooptação. A comunidade Nasa tem uma longa história de resistência à cooptação pelo estado e uma das características desta resistência se evidencia, não só na preservação de sua língua indígena, Nasa Yuwe, mas na sua determinação de usar o espanhol de uma maneira que resiste à fácil assimilação nas estruturas dominantes. Isto é evidente na maneira em que a Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca divideseus diferentes “grupos de trabalho” em “tejidos” (‘tecidos’), um termo deliberadamente estranho ao que diz respeito a sua relação com estruturas organizacionais convencionais, mas que se posiciona como especificamente indígena através de sua referência à tecelagem, uma faceta extremamente importante da vida cultural dos Nasa.
O uso de termos incomuns e neologismos como ‘pervivir/pervivencia’e ‘sentipensar’ também é importante de mencionar: embora não sejam de origem indígena, têm sido adotadas como características distintivas do léxico do discurso indígena na Colômbia durante as últimas duas décadas. A expressão popular ‘caminar la palabra’ (‘caminhar a palavra’) também dá uma idéia da auto-consciência na comunidade Nasa sobre a importância das palavras e como elas podem ser mobilizadas.
Quando se trata da discussão do ‘bem viver’, o termo usado em Nasa Yuwe é wët wët fxi’zenxique é traduzido para o espanhol com mais frequência não como buen vivir, mas como buenos vivires(‘bons viveres’), um conceito plural. É essa pluralidade que me parece crucial: ela sempre deixa um espaço para que o ‘bem viver’ seja algo mais do que a parte que pode ter sido cooptada e fixada no discurso oficial. Como Vilma Almendra observou durante um de nossos seminários internacionais, ‘eu acredito que não há conceito ou definição exata ou concreta do que são os bons viveres’. Em vez disso, os ‘bons viveres’ são ‘iniciativas e práticas que estão além do institucional’; ‘Não é uma fórmula, não é um conceito fechado, mas uma prática concreta em um determinado momento que temos que assumir para sobreviver’ (para mais detalhes, ver Almendra, 2017: 249-59).
No caso das comunidades indígenas no Brasil envolvidas na rede de pesquisa, todas foram oficialmente declaradas extintas pelo governo brasileiro no final do século XIX. Elas foram ‘incentivadas’ a se assimilar cultural e racialmente com outros grupos, a deixar para trás as crenças tradicionais e adotar a fé católica, e a deixar para trás suas línguas nativas, já que foram educadas através do Português. Embora ao longo dos últimos cem anos essas comunidades têm feito progressos significativos em reafirmar suas identidades indígenas e a conseguir demarcação oficial de seus territórios, na maioria dos casos, era tarde demais para salvar suas línguas. No entanto, há evidências de uma ‘reinvenção’ lingüística que está ocorrendo atualmente em algumas dessas comunidades.
Mais estudado até à data, são das comunidades Pataxó no sul da Bahia/norte de Minas Gerais e sua (re)criação da linguagem Patxohã (para detalhes, ver Bomfim e Franchetto). Mas dentro da rede de pesquisa, os Kariri-Xocó também estão envolvidos em um processo semelhante para reanimar/reinventar criativamente uma língua conhecida como Dzubukuá Kipeá. Eles têm uma escola de idiomas para crianças da comunidade e também usam WhatsApp como um meio para distribuir listas de palavras e outros materiais para adultos interessados em desenvolver as suas competências linguísticas. Um dos principais resultados da rede de pesquisa foi identificar essa prática como um exemplo concreto do ‘bem viver’ – de ‘kanewiá’ em Dzubukuá Kipeá – e começar a procurar formas de apoiar este processo de empoderamento da comunidade através da ‘retomada’ linguística.
Salvador Schavelzon
tradução
Charlotte Broadhurst
Avaliação de 40 anos de política indígena na América Latina
O avanço impetuoso das lutas indígenas, nas últimas décadas, coincide nos países latino-americanos com o processo aberto de democratização ocorrida na maioria dos países. Neste momento, a partir da década de 1980, a necessidade de novos direitos e a consolidação de territórios fora estabelecida como uma das agendas pendentes para a classe política. As políticas de subordinação, etnocídio e assimilação gradual ou forçada, foram visivelmente revertidas para a opinião pública “progressista” e, mais além, abriu possibilidades políticas que seriam expressas na legislação estadual da maioria dos países, em sintonia com o trabalho promovido pelas Nações Unidas.
No território, o assédio e os saques continuariam, ou mesmo aumentariam. Mas não seriam naturalizados ou vistos como inexoráveis, pelo menos para grande parte da opinião pública e especialmente para as próprias comunidades. Encontrariam novas ferramentas para evitar o etnocídio, organizariam-se e encontrariam aliados, onde antes só se podia mudar ou aceitar a lógica de subordinação ao capitalismo e suas dinâmicas de expansão e exploração.
Nessa época, os povos indígenas seriam vistos como possuidores de modos de vida com o direito de serem preservados, e os governos começariam a reagir nessa direção, pelo menos formalmente, ao mesmo tempo em que a organização indígena estava se estabelecendo fora das comunidades, abrindo canais de comunicação com o resto da sociedade. Nessa mesma época, emergiria o “terceiro setor”, que seria permeável à agenda indígena, e desenvolveria um trabalho de formalização legal de direitos relacionados a essa categoria de pessoas e grupos. Falariam assim na linguagem dos brancos e codificariam na língua das instituições as reivindicações que buscam reconhecer e preservar modos de vida e resquícios de civilizações antigas, dizimadas e desarticuladas pelo mundo moderno.
Um novo sentido comum em que se deixava para trás a ideia da necessidade de trazer progresso para as populações que careceriam de tudo, seria expresso em estruturas legais, políticas públicas e tratamento do tema na imprensa. Enquanto as antigas lógicas sociais que estavam por trás do modelo de bem-estar - a produção fordista e a sociedade de classe ou de massa foram desarticuladas juntamente com o avanço neoliberal da subjetividade e da vida. Haveria lugar para um mundo de formas e diferenças autônomas, desconectado do capitalismo mas operando em seu quadro com poder simbólico para questionar sua lógica fundamental e encontrar uma maneira de sobreviver na era do colapso da soberania nacional e das bases ideológicas da modernidade.
A poderosa metáfora do progresso, desenvolvimento e civilização domina a sociedade latino-americana e sua classe política. Porém, formalmente, os povos indígenas seriam depositários de uma aceitação contrária a essa lógica, que prevaleceu como a norma nos séculos anteriores que remetem à colonização. O direito de existir favoreceria a busca de autonomia, a garantia de propriedade coletiva de seus territórios e a autorização para sistemas alternativos de saúde e direito. Os povos indígenas estariam preparados para criar expressões culturais inspiradas em rituais e estéticas tradicionais, destinadass à sociedade dominante, que aceitaria os indígenas como produtores de conteúdo cultural.
Na medida em que o colapso mundial de industrialização e promessas da sociedade burguesa encalhava, a existência de povos indígenas mostrava sua validade em alguns lugares como os Andes, com suas dinâmicas comunitárias ativas, ou na Amazônia, com a resistência de formas de vida que ainda estavam ligadas à selva. Essas resistências e alternativas também mostravam certo brilho desde a lógica de uma nova sociedade, em que novas formas de vida também teriam lugar na reformulação da imaginação da esquerda. Em vez de considerar a possibilidade cada vez mais distante de reorganizar um movimento operário ou esperar o retorno do Estado e sua presença salvadora, é preciso entender as buscas comunitárias para além do Estado, na margem da reprodução de uma sociedade que, nos séculos anteriores, conduziu o processo de colonização e civilização dos territórios, o que resultou no confinamento ou desaparecimento das formas de vidas indígenas.
Nesta nova era, na maioria das vezes o reconhecimento das reivindicações indígenas seria interpretado pela perspectiva do multiculturalismo, que seria adotada pelos que estariam dispostos a incluir os indígenas, desde que essa inclusão não interferisse nos assuntos comuns. Portanto, são inclusões limitadas que marginalizavam o povo indígena, como se fosse incluído apenas quando dizimado e considerado inofensivo. A verdade é que o capitalismo industrial e o neoliberalismo, comandados por grandes corporações, e o surgimento da lógica da competição e valorização capitalistas, cada vez mais em aspetos da vida e territórios, ainda permaneceriam. No entanto, sua crítica e exaustão seriam visíveis na opinião pública e nas modificações estruturais dos governos nos momentos de redefinição.
A validade do capitalismo coexistiria com uma mudança de visão que deixaria para trás a tradicional recuperação folclórica de populações entendidas como “do passado”, com a inevitável aceitação dos povos indígenas como atores políticos contemporâneos. Como pedra no sapato do neoliberalismo, ou mesmo como parte dele, dado que os indígenas não estariam livres de contradições e hibridismos com a nova sociedade, a verdade é que as lutas indígenas cresceriam e se tornariam mais viáveis nas novas conjunturas do que na América Latina; traduziria-se em reformas estatais e mudanças constitucionais aos quais grupos indígenas e aliados aproveitariam para exigir uma mudança na forma como o Estado os conceituava.
Os responsáveis por essa mudança foram os próprios povos indígenas que resistiram ao ataque militar; bem como ao avanço da fronteira econômica, com a expulsão ou destruição de seus recursos e ciclos e lugares de vida. Defendendo-se de um amplo repertório de formas de apropriação indevida, e das ameaças aos mundos e sistemas de vida que não se conformavam à lógica do capitalismo e da civilização moderna, a luta indígena aparecia com força no mesmo momento em que o mundo parecia estar prestes a decretar seu desaparecimento.
O avanço desenvolvimentista e modernizador, que parecia ser inevitável, não se materializou. Em vez disso, sua própria lógica é fraca, quando persistem modos de existência alternativos, resistentes e disputados. Nas últimas décadas, as lutas dos povos indígenas têm se articulado com diferentes resistências que têm surgido a partir dos anos 1980. Pelas marchas que ocorreram em vários países, surgiram as grandes organizações históricas de povos e comunidades. Essas organizações foram criadas pelos que são totalmente excluídos das instituições e que têm apenas mobilização ao seu alcance.
Na década dos anos 1990, haveria reflexos constitucionais do avanço da mobilização indígena. A ONU, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), estabeleceria o caminho para a incorporação de direitos de reconhecimento territorial e direitos especiais nas constituições de países como Brasil, Argentina, Colômbia, etc. A marcha indígena, como expressão de novos atores que se tornam visíveis ao centro do poder governamental, reflete-se em sistemas políticos abertos a incorporar demandas; principalmente quando essas demandas não afetam interesses econômicos; podem, no entanto, ser capitalizados como resposta simbólica a um setor da sociedade que é altamente valorizado na opinião pública progressista.
Entretanto, a influência dessa agenda nos processos constitucionais ou na reforma da Constituição, não impediria que a organização indígena continuasse a ser aliada com quadros provenientes da esquerda partidária e revolucionária da década anterior. Pouco a pouco, resultaria em uma convergência dos programas populares, grandes mobilizações e na consolidação de alianças entre povos indígenas, intelectuais, setores camponeses, movimentos sociais nacionais e internacionais, sindicatos e a população mobilizada contra o neoliberalismo.
Os governos liberais incorporariam os direitos indígenas, mas sem considerar a inclusão das dinâmicas coletivas, comunitárias ou de autonomia, que são típicas dos povos que se buscavam incorporar. Em uma segunda fase da mobilização indígena, que criticou a forma em que os direitos foram incorporados inicialmente e que focou na consolidação de auto-determinação e território, surgiria uma nova geração de lutas, que não considerava o Estado como o fornecedor exclusivo de políticas, títulos da terra e bem-estar. Grupos dos Andes e da Amazônia, o Chaco, a Patagônia e até mesmo nas cidades, começariam a utilizar as novas estratégias de resistência e a construção de uma territorialidade autônoma.
Na década dos anos 1990, o neozapatismo de Chiapas seria uma referência ao pensar em uma política que reunisse os mundos alternativos, em que as comunidades não seriam subordinadas ao capitalismo e à modernidade. Seria uma referência também para o possível encontro dos mundos diferentes, mostrando a finitude de abordagens da orientação política e do pensamento unilinear, homogêneo, hierárquico da sociedade dominante e de suas classes dirigentes.
Recuperando formas comunitárias que sempre desfrutaram de níveis de autonomia, desdobraria em um tipo de organização que evitaria a busca de soluções nas mãos do Estado, delegando autonomia e oferecendo a possibilidade de um mundo não subordinado ao mercado e ao estado-nacão. Em Chiapas e outros lugares, seriam construídos repertórios de reivindicação que incluíam cosmologia e modos de vida não modernos como componentes mobilizadores, e como uma presença autêntica da “alteridade” indígena em suas lutas.
Esse novo momento de lutas indígenas, que incorporava críticas da maneira em que a sociedade estatal não era capaz de compreender formas comunitárias e autônomas, resultaria em uma série de reformas do Estado relacionadas a questões indígenas. Depois de uma combinação das agendas multiculturais e dos governos liberais impopulares que as promovia, seria a oportunidade para que os governos de perfil popular e nacional chegassem à presidência entre 1999 e 2005, que adaptariam as propostas políticas para povos indígenas à sua forma de governo.
Entre seus quadros intelectuais e políticos, esses governos tinham setores de esquerda e ONGs, alguns dos quais formaram parte direta do consenso a favor do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas desde a década dos anos 1980. Uma vez que assumiu ao governo, no entanto, essa posição não foi tratada como prioridade e, em vez disso, foi adiada ou abandonada por uma agenda social que negociava com as massas, que garantiriam seu apoio em troca de medidas sociais. Em vários lugares isso foi traduzido como uma explosão de acesso ao consumo para a população pobre.
O gradual abandono da aliança da esquerda ou do progressivismo com as organizações indígenas, que no calor da luta encontraram posições que confrontavam a lógica paternalista do Estado e que buscaram construir possibilidades de desenvolvimento autônomo, resultou em um forte choque político. Em alguns casos, como no da Bolívia e Equador, esse embate ocorreu em um segundo momento, depois de que os direitos vivenciaram um avanço sem precedentes na constituição, em 2008 e 2009. Governando durante um momento de alto valor de commodities, resultou em um programa de obras estaduais de infraestrutura e de projetos de mineração, que em alguns casos impactaram territórios indígenas. Isso criou uma situação em que a ambiguidade inicial de manter a agenda indígena e paralelo com o desenvolvimento capitalista dos países periféricos em busca de qualquer investimento, foi transformado na aceitação pelos progressistas do consenso conservador, capitalista e desenvolvimentista como uma forma de governo.
De acordo com esse contexto, haveria uma ruptura clara do movimento indígena com os setores progressistas que, quando fora do Estado, tinham contribuído com o consenso favorável à introdução de seus direitos. A experiência do governo foi, então, frustrante quanto às expectativas de avanço em tornar os direitos realmente eficazes. Depois de criticar o modo meramente declarativo em que os direitos foram incorporados sem consequências concretas da legislação introduzida nos anos 90, o movimento indígena descobre que o progressismo é mais um jogo de elites políticas que inclui os indígenas apenas simbolicamente.
Diante desse cenário e da evolução da própria luta indígena, a autonomia seria a base para a continuação do caminho. Pode ser visto como o amadurecimento da resistência, depois de que a estrada estadual se mostrou traiçoeira. Os zapatistas chegaram cedo à ideia de autonomia, depois de verem como progressistas e conservadores fechavam as portas dos diferentes poderes do Estado aos acordos assinados para cessar conflitos. O congresso, o tribunal, a presidência - não cumpririam promessas feitas pelos políticos, promessas feitas em troca de se posicionarem bem para aqueles povos que hoje parte da população considerável em seu direito de existir.
Na Bolívia, depois de chegar ao governo e até mesmo liderar diretamente na elaboração de uma constituição, por uma aliança dos indígenas camponeses, a conclusão não seria diferente. Os povos minoritários, de selvas e florestas mais distantes, estão na mesma situação, sentindo a frustração e a necessidade de construir autonomia para defender-se contra os conflitos políticos de nível local. Apesar da abertura histórica do peronismo para a causa indígena, na Argentina os kirchneristas ignoraram os conflitos e demandas que envolviam seus aliados, tanto nas províncias como nos empreendimentos de petróleo e mineração que eles promoviam.
Governos separados da onda progressiva, como Colômbia, México e Peru, não mostravam uma política diferente. O consenso do desenvolvimento confrontou o Estado com os povos indígenas, gerando uma nova série de protestos, marchas e organização, que pode ser comparada com o surgimento dos anos 80 e dos anos 90, com reivindicações de títulos territoriais e novos direitos. Agora, tratava-se de enfrentar uma ameaça direta aos territórios. Um exemplo notável seria o projeto do Arco Mineiro na Venezuela, onde concessões em imensas regiões foram entregues sem se levar em conta a presença de parques nacionais, reservas ambientais e territórios indígenas. Nesses casos, a propaganda oficial oferecia trabalho, desenvolvimento, crescimento econômico e inclusão do país na economia mundial.
A diferença do progressismo não ocorreria em termos das grande obras de infraestrutura, nem no avanço de fronteiras no agronegócio e na mineração, mas em como esses projetos coexistiriam com secretarias ou ministérios mais ligados à defesa dos direitos indígenas, embora com uma abordagem descendente, multicultural ou clientelista e de fornecimento de assistência social que não respeitava as diferenças e especificidades da sociedade indígena. No Brasil, por exemplo, a introdução de dinheiro e bens pela expansão dos programas sociais durante o governo do PT completava o processo de desestruturação da sociedade nativa, junto à chegada do capitalismo com obras hidrelétricas e a monocultura de soja, que resultou na expulsão ou deslocamento de populações.
Depois da saída do progressismo, governos como o de Bolsonaro no Brasil confrontam explicitamente as comunidades indígenas, aproveitando também a fragilidade do progressismo em termos das suas políticas indígenas e estão alinhadas explicitamente com os setores empresariais interessados nas terras. Além de isso, Macri, na Argentina, alinharia-se com a política chilena contra as comunidades Mapuche, na qual liberais e conservadores criminalizariam os protestos e defenderiam a expropriação territorial em nome de empreendimentos econômicos.
Sem ambiguidade, Bolsonaro declararia que o verdadeiro indígena é aquele que está integrado na sociedade, retornando a um consenso que predominava antes da democratização, mas também expressando um senso comum empresarial que o liberalismo deixa prevalecer em suas alianças e lógicas de governo. O fracasso do progressismo em encontrar um projeto de desenvolvimento nacional que incluísse os nativos além da retórica, daria lugar a uma sinceridade dos interesses capitalistas sem ser capaz de estabelecer um contraste com a política anterior, além de uma ambiguidade tímida em termos do discurso político sobre o assunto.
Autonomia e Bem Viver
Diante do fracasso combinado do progressismo e da direita, duas agendas emergem como uma estratégia indígena e como resultado das buscas políticas de décadas de uma construção territorial com demandas políticas e legislativas apresentadas no espação político dos estados-nacão.
Como políticas das organizações indígenas, e não mais do Estado ou do terceiro setor, o Bem Viver abre um debate relativo ao modelo desenvolvimentista, baseando-se na experiência comunitária de produção e sustento econômico. Em relação a esse projecto de recuperação e reinvenção das formas económicas fora da dinâmica de inclusão no mercado de economia, da proletarização e da dependência de recursos monetários estatais, a busca da autonomia se apresenta como uma reivindicação que procura assegurar controle político sobre o território e garantir a plena vigência das formas indígenas de políticas, de justiça e da própria organização.
Bem Viver e autonomia, como políticas de organizações e não mais do Estado, abrem os desafios da autodefesa e de uma construção que é feita de baixo, sem esperar nada de cima, em uma crítica nascida da experiência contra as formas diretas e sofisticadas de controle e tutela. Com a nova direita no poder, o progressismo é devolvido a uma posição de resistência, que se apresenta com algo de nostalgia e nada de efetividade, na medida em que mantem inalterada sua forma de organizar a mobilização desde cima, característica da fase prévia a sua chegada ao poder. Ademais, não conseguiu fazer a autocrítica adequada sobre os anos de administração em que os confrontos numerosos provaram os limites do progressismo para que se pensasse além do desenvolvimentismo.
Da perspectiva das comunidades, constata-se que a esquerda, outra vez fora do poder, convoca de novo as forças sociais, incluído a dos indígenas. Porém, ainda não aborda o problema da crise da civilização, as catástrofes ambientais, a falta de instituições modernas e a sua própria incapacidade de lidar, ou mesmo dialogar com formas coletivas, não modernas e autônomas de representação política. A autonomia e o Bem Viver não ficaram isentos, durante o período das reformas constitucionais promovidas pelo progressismo e sua posterior implementação, de um uso conceitual que aludia a esses termos em um sentido convencional de política pública para as comunidades. O Estado propôs o Bem Viver nas políticas públicas, que costumava chamar de “políticas de desenvolvimento”. Ou apresenta como autonomia, uma legislação multicultural que reconhece, sem permitir controle territorial completo, ou que traduza as formas diferentes do governo para a institucionalidade moderna, sem perceber uma possível ruptura no plano em que essas formas diferentes organizam o mundo.
No entanto, a autonomia e o Bem Viver não cooptados são formas políticas que sempre foram válidas entre as comunidades ameríndias. Nessas comunidades, política, justiça, economia, religião, cosmologia são termos limitados que retalhem o mundo em esferas diversas. Esse mundo retalhado de diferentes esferas mostra seus limites a um mundo de interconexão que questiona não apenas essas formas de discursos políticos, mas também a moderna distinção essencial entre humanidade e natureza. Derivado da experiência política de uma jornada de décadas, que continua a experiência de séculos de resistência e tentativas de construir uma sociedade alternativa, essas formas de resistência são reativadas com três termos que estão ganhando espaço e força política na sociedade nacional, onde os indígenas continuam uma luta em várias frentes: territorial, constitucional, ritual. Não sem diálogo com o mundo circunvizinho e com a modernidade capitalista, a sociedade indígena se propõe a permanecer inteira e não desaparecer diante de contínuos ataques, e é assim articulada como uma luta anticolonial.
Os povos indígenas também desenvolvem uma agenda cosmopolítica, na medida em que se recusam a fazer parte de uma sociedade que oferece exploração e consumo, e buscam construir um lugar de autonomia, onde até o que entendemos por mundo, por natureza, por sociedade, torna-se questão política para opor o mundo moderno e desenvolvimento a uma vida comunitária. Embora esta construção seja ancestral, hoje consegue encontrar formas de tradução política além da sociedade indígena, em que a inclusão de não-humanos e a elaboração de estruturas políticas que representam sujeitos coletivos e territorialidade fazem parte da discussão.
Devido à reinvenção conceitual do Bem Viver e a autonomia como eixos na política indígena latino-americana, é possível vislumbrar o fortalecimento de um novo modelo ou repertório de mobilização e contendas políticas indígenas, estabelecendo novas formas de pensar na defesa do território e outras disputas com os poderes econômicos e com o Estado. A continuidade do colonialismo, o anticapitalismo e a abertura para questionar o corte moderno do mundo (representado pelo agronegócio, e pelas missões evangélicas nas comunidades e as políticas públicas), dão origem a lutas que já não têm como objetivo a propriedade da terra distribuída individualmente ou por famílias, e que também não são orientadas a propor mudanças legais ou constitucionais. É uma luta cosmopolítica que se baseia na defesa de fontes de água, selvas e formas de vida e produção não-agroindustrial, em contraste com alguns movimentos do campo, abrindo também a imaginação política em um mundo aberto a seres não-humanos, à relações com o ambiente conhecidas por serem mais complexas do que as antigas imagens de desenvolvimento, à exploração dos recursos naturais ou ao cuidado com o meio ambiente.
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Thea Pitman | |
Professora e pesquisadora de Estudos Latinoamericanos baseada na Escola de Línguas,Culturas e Sociedades da Universidade de Leeds, Reino Unido. É especialista no estudo daprodução cultural digital latinoamericana, com especial interesse em questões de raça, etnia e gênero, e nos temas da política e cosmovisão indígenas.
t.pitman@leeds.ac.ukSalvador Schavelzon | |
Professor e pesquisador em Antropologia Social na Universidade Federal de São Paulo, Salvador se dedicada ao estudo dos processos políticos dos povos andino-amazônicos; pensamento indígena e cosmopolítica; plurinacionalidade, processos de autonomia, Bem Viver, e alternativas ao desenvolvimento.
schavelzon@gmail.com