Narrativa cigana: diálogos com pastora Filigrana
Sonia Sahli
Natalia Caballos
| Espanha |
dezembro de 2018
traduzido por Mariana Costa
A chegada de pessoas ciganas à Espanha está documentada desde 1425, uma vez que integram historicamente a população do pais. Estima-se que ciganos e ciganas alcancem entre 700.000 e 1.200.000, das quais em torno de 40% vivem na Andaluzia. Esse número impreciso deve-se ao fato de não haver recolhimento de informações étnicas, raciais ou religiosas em pesquisas censitárias.
Nesta narrativa, conduzimos um diálogo com Pastora Filigrana, sevilhana, advogada de 38 anos e ativista cigana de direitos humanos. Filigrana atua contra a violência policial e a repressão e mantém um importante compromisso político no Sindicato Andaluz. Suas reflexões sobre o imaginário social em torno do povo cigano nas periferias, suas representações nos meios de comunicação, o racismo sistêmico ou o papel dos movimentos descolonizadores - não deixarão ninguém indiferente.
“Não se trata de que se integrem a nosso modelo, mas sim de que façamos um mundo em que caibam outras formas de organização.”
Como definiria a situação das pessoas ciganas no contexto espanhol geral e em particular no Polígono Sul (periferia de Sevilha)?
Pastora Filigrana: Ainda que não tenhamos dados oficiais (porque não há censos baseados em perfis étnicos ou raciais) há uma parte importante das pessoas ciganas que vivem em situação de exclusão social ou em risco de exclusão social. Entretanto, é importante destacar que, quando digo “uma parte importante”, não quer dizer que seja toda a população cigana, porque existe um imaginário em que todos os ciganos são sinônimos de marginalização ou exclusão. Ainda que saibamos que historicamente aconteceu assim, atualmente existe, sim, uma população cigana que tem condições materiais melhores. Mas claro que existe uma parte considerável de ciganas e ciganos que seguem engrossando as bolsões de pobreza do estado espanhol. Aqui, em Sevilha, no Polígono Sul, as pessoas ciganas representam uma porcentagem importante do bairro (umas 25.000 das 50.000 pessoas que o habitam). Vivem em uma situação de carência de recursos, de precariedade na moradia, de desemprego estrutural, com importantes carências higiênico-sanitárias e com problemas de segurança.
Já sobre as causas dessa situação de exclusão social, no imaginário coletivo as pessoas ciganas são acusadas de serem responsáveis pela própria pobreza, assim como faz o capitalismo com todos os pobres e excluídos. Mas na realidade existe uma história de perseguição e discriminação legal que é a que explica a situação atual.
Quais representações costumam existir sobre as pessoas ciganas?
Pastora Filigrana: A Federação de Mulheres Ciganas realiza uma pesquisa muito interessante sobre o tratamento das pessoas ciganas na imprensa de Andaluzia e conclui ser possível classificá-las em duas únicas categorias: delinquência (notícias em que aparecem delitos e em que se especifica que terem sido cometidos por pessoas ciganas) ou artistas (flamencos principalmente). Ou seja, no imaginário e nas representações coletivas, o cigano ou é um delinquente, ou é um artista.
Quais representações têm sido fomentadas por parte das entidades públicas? E das entidades ciganas?
Pastora Filigrana: As representações dos ciganos a nível de entidades públicas não é causal, existe uma vontade política por detrás. O sistema capitalista precisa de grandes bolsas de pobreza, de um substrato sistemático de riqueza de uma parte da população a outra. Os ciganos historicamente ocuparam a situação da pobreza, da exclusão. Para poder justificar esta violência sistêmica contra os pobres se cria toda uma série de relatos e estereótipos em torno dos ciganos: não querem trabalhar, são perigosos, são machistas. O que fazem é tentar justificar o lugar socioeconômico que ocupam na ordem vigente e, assim, justificar a pobreza que o sistema socioeconômico reproduz. Ou seja, a necessidade da pobreza surge antes que a criação do estereótipo. E como isso ocorre? Com os meios de comunicação e as entidades públicas, claro. A administração tem sido em grande parte responsável por perpetuar este relato. Se revisamos as leis desde 1492 até a última lei anticigana (abolida em 1986, já no começo da democracia), observamos que o papel da Administração tem sido o de representar o cigano como o excluído, mas responsável pela sua exclusão por ser preguiçoso ou criminoso. Desde a criação das entidades ciganas nos anos 1970, tenta-se subverter o imaginário na representação social. Todavia, muitas das entidades ciganas que vivem de verbas públicas propõem soluções que não possuem a radicalização e profundidade que se requer para desmontar todo este imaginário. E a discussão se limita às políticas sociais, ao invés de ir à raiz dos problemas políticos que originam a desigualdade.
Como foram e têm sido organizadas as políticas públicas voltadas para as pessoas ciganas?
Pastora Filigrana: As políticas públicas realizadas costumam ser remendos, não vão à raiz do problema nem da necessidade que tem o sistema socioeconômico de criar estes bolsões de pobreza, de criar sujeitos que são excluídos pela própria idiossincrasia que lhes é atribuída, como é o caso dos ciganos. Eu sempre digo que se não existissem os ciganos, teriam que inventá-los, porque o sistema econômico precisa desta alteridade sobre a qual construir uma contraposição ao estereótipo à normalidade ou à convencionalidade. As políticas públicas não vão à raiz destes problemas. Costumam ser remendos, costumam falar de políticas sociais. Uma de nossas reivindicações é que o problema dos ciganos não se soluciona simplesmente com políticas sociais ou culturais, mas exige uma mudança mais profunda de paradigma. O cigano não é algo cultural, mas algo político, e é a partir desse lugar que temos que abordá-lo.
Faz sentido ter políticas públicas específicas para ciganas e ciganos?
Pastora Filigrana: Sim, é necessário pois existe uma discriminação histórica de séculos em que se diferenciou a pior categoria de cigano, a de sub-humanidade, enfrentada em oposição à de cidadão convencional. Não basta anunciar uma vontade política que se subverta, mas é preciso um compromisso político público. Essas políticas públicas, além de ir ao material (problemas reais de moradia, acesso à informação, a exercer o direito do trabalho, exclusão) devem ser sociais. Mas é preciso ir mais além. Precisamos de políticas orientadas para que a sociedade hegemônica trabalhe todos os estereótipos. E não de forma folclórica, mas aprofundando o porquê de todos estes estereótipos terem sido construídos, e por que a necessidade de subvertê-los. Assim que acredito, sim, que faltam políticas públicas entendidas como uma vontade pública material para subverter esta situação.
Considera que existe um racismo sistêmico ou institucional em Andaluzia? Em que esse racismo concretamente se traduz?
Pastora Filigrana: Eu considero que o racismo sistêmico e institucional existe em Andaluzia e em todo o mundo. A ordem socioeconômica imperante e globalizada em todo o mundo precisa de uma ordem racial para poder organizar seu espólio de uns povos sobre outros, de umas pessoas sobre outras. Ou seja, o racismo é sistêmico e estrutural a um modelo econômico globalizado. É assim também na Andaluzia. Em quê se traduz isso? Em nível mundial, em que algumas pessoas, de acordo com a raça ou o lugar onde habitam no mundo estão em uma situação de sub-humanidade e continuamente lhes subtraem bens materiais, ou recursos, ou bens culturais, ou espirituais, em detrimento da outra parte da população que vive em situação privilegiada (são estes os que subtraem). Isso a nível global. Tratando de Andaluzia e dos ciganos, isso se traduz em uma situação de desigualdade material e em um discurso de culpabilização dos ciganos sobre esta realidade material que padecem. Este discurso se constrói atribuindo estereótipos negativos à comunidade cigana que termina sendo, à luz pública, responsável por todas as calamidades que padece.
Que elementos seriam necessários para que exista uma incorporação e uma participação real das pessoas ciganas das periferias no processo democrático? Para que deixem de ser destinatários de referências sociopolíticas estereotipadas e estigmatizantes e passem a ser protagonistas da produção de normativas, representações e saberes?
Pastora Filigrana: Acredito que o enunciado é uma armadilha. A questão não é o quê é necessário para que as pessoas ciganas se somem a um processo democrático que já existe, mas como organizar esta sociedade para que as pessoas ciganas possam construir seus próprios processos de participação, que já existem. Eles sabem se organizar, sabem falar e resistiram a 500 anos de perseguição. Têm grandes modelos de apoio mútuo, de mutualismo de base, de autogestão dos conflitos. Têm formas e práticas de sobrevivência que são referência. Outra coisa é a completa invizibilização e estigmatização por parte da sociedade hegemônica. Possivelmente em suas formas de comunidade, existam processos democráticos admiráveis para nós, como por exemplo, ter uma segurança social alternativa, caixas de resistência ou fórmulas de resolução de conflitos próprias. É para mim já um modelo democrático. Não se trata de que eles se integrem em nosso modelo, mas que façamos um mundo onde caibam outras formas de organização. Podemos falar, por exemplo, de formas de resolver conflitos. No imaginário coletivo, parece que a única forma que os ciganos têm de resolver seus conflitos é com ajustes de contas e com violência explícita, mas o que grande parte da população desconhece é que existe processos de mediação, conselhos de anciãos e que, quando há problemas entre duas famílias, um grande diálogo prévio é estabelecido antes de qualquer outra resolução violenta. São fórmulas de resolução de conflitos que deveríamos aprender e não fazer com que imitassem as nossas.
Como você vê essas novas vozes e movimentos ciganos de reivindicação e luta que estão surgindo? São ou poderiam ser uma resposta à situação das pessoas ciganas das periferias?
Pastora Filigrana:Imagino que se refira aos movimentos de descolonização de pessoas ciganas. Acredito muito neles, acredito que são muito válidos, ao menos a nível simbólico. A questão sobre como influenciam na parte material, na exclusão social dos ciganos... Isso será um segundo nível. Talvez estes movimentos podem servir para ir mudando os discursos hegemônicos e visibilizando outras realidades que podem ter uma repercussão no material ao longo do tempo. Eu me considero parte de muitos desses movimentos e acredito que precisam agregar valor a uma epistemologia, uma forma de ser e estar neste mundo que tem sido invisibilizada, criminalizada e perseguida. Colocá-la em valor positivo. Nisso andamos.