Os transparentes
Ondjaki
| Angola |
junho de 2023
trecho de Os transparentes
(Caminho, 2012)
*
com esse jovem, é na conta do gesto dele, quase meu sobrinho ou poderia ser filho também, e no cheiro das conchas que ele apanha e vende, que eu lhe respeito nessa profissão de pedir ainda no mar e na Kianda para retirar as conchas... que são como brinquedos da Kianda... mas de falar assim, falo mesmo é de ver... quer dizer, de ouvir e de sentir as coisas... hoje mesmo vi este cinema com a distribuição das cadeiras e estou a lhe gostar muito... até porque...
o Cego desmanchou-se numa gargalhada tão minúscula que realmente parecia o contraexercício de um ator profissional, um riso bonito e sem som, como vulto ou sombra de sol nenhum
— eu até nunca vi desses filmes de malcriado que vão passar aqui com estrangeiras a gritar e tudo... já ouvi assim de estar longe num bairro... mas dizer que vi, nunca vi mesmo!
o Cego voltou ao lugar, abanando a cabeça de um lado para o outro, de um modo contente, ainda inacreditando nas palavras que acabara de proferir, a postura dos outros era de maior respeito, e, ao regressar, o VendedorDeConchas ajudou-o a sentar-se
— Paizinho — João Devagar falou forte —, sigas para o palco!
— mas eu, tio João...?
— sigas, aqui não há discriminação de mais-novo!
largou os panos e sentiu claramente que não sabia onde pôr as mãos, evitou estar de pé, tentou sentar-se, sentiu um ardor nos olhos que o levou a buscar o céu, olhou para cima, estendeu a pausa do seu silêncio pesado e, quando finalmente deixou a audiência, era outra pessoa:
— se for de falar assim — a voz era outra — então mesmo é só no assunto da guerra e da minha mãe... que a guerra quando ela me assustou de cair eu já tava a correr — no ar dançavam ruídos — e eu que nem deu de voltar em casa para ver se os meus irmãos tinham quê... — a voz, que era outra, falhava —, de correr mesmo com a fome e a sede e as feridas nos pés, que depois andámos com um comandante até hoje que nem me lembro de quantos quilómetros, só de dias, que foram muitos...
o tom que era desconhecido tornava-se demasiado próximo
— e que até para dizer a verdade que de noite ainda estou a sonhar com esses dias de uma coisa que sempre me acontece de repetir no sonho, quando eu lhe sonho à noite... — no ar, os ruídos cessaram a sua dança. — e que é... assim de falar nas palavras... a coisa que eu não consegui de gritar... eu não consegui de gritar o nome da minha mãe... que até hoje ando a lhe procurar...
voltou a pegar no seu pano de limpar as coisas, sentou-se lá atrás, recuperando a respiração, voltando do lugar de onde ainda não tinha conseguido regressar
— a mim me chamam só de VendedorDeConchas, para falar aqui assim, de falar mesmo, não é de abuso nem de falar à toa... é que eu ando a aprender muito com o mais-velho Cego. uma pessoa, quer dizer... nunca se ajuda sozinha, se tem um outro próximo dele. uma pessoa às vezes não é só de ser ajudada, é que também faz bem no coração ajudar o outro, não estou a falar da minha boca, estou a falar coisas que o mais-velho Cego é que me falou, é que às vezes ele também não sabe que fala de noite, a dormir... então a cidade de Luanda é isso, que uma pessoa assim anda a se desenrascar na venda das conchas, a atacar as madamas que têm mais dinheiro, se não tem dinheiro a gente pode ainda fazer negócio de trocas... e nas moças bonitas é mesmo de oferecer... mas a pessoa... o que é importante mesmo assim é estar bem, feliz... coisa que eu lembro desde o início, é que gosto de mergulhar e vender conchas... a Kianda é que me protege...
Odonato sentiu que teria de falar
levantou-se devagar mirando as suas próprias mãos e deslocando-se com a lenta velocidade de um condenado tímido, havia entendido e incorporado as regras do jogo, e na curta caminhada procurou tirar da mente a ideia da profunda apreensão que sentia em relação ao filho
ajeitou-se na cadeira e continuou a mirar as mãos, levando a assistência a fazer o mesmo
ergueu-as, ambas, virando-as para a plateia como quem exibe parte da sua intimidade, uma leve brisa fez dançar as antenas mais antigas e despertou o galo zarolho no outro prédio
— shiu... dorme lá, pá, ainda não é de madrugada, ó vizinho, queira lá desculpar as intromitências do GaloCamões, nossa mascote cinematográfica — e JoãoDevagar calou-se
— primeiro foram as mãos, as pontas dos dedos... não é que fosse assim de ficar transparente no corpo como eu agora estou mesmo a tocar, e vê-se... no início, as mãos é que ficaram mais leves... e as dores de estômago desapareceram...
Odonato virou as mãos para si mesmo e falava olhando só para elas
— um homem, para falar dele mesmo, fala das coisas do início... como as infâncias e as brincadeiras, as escolas e as meninas, a presença dos tugas e as independências... e depois, coisa de ainda há pouco tempo, veio a falta de emprego, e de tanto procurar e sempre a não encontrar trabalho... um homem para de procurar para ficar em casa a pensar na vida e na família. no alimento da família. para evitar as despesas, come menos... um homem come menos para dar de comer aos filhos, como se fosse um passarinho... e aí me vieram as dores de estômago... e as dores de dentro, de uma pessoa ver que na crueldade dos dias, se não tem dinheiro, não tem como comer ou levar um filho ao hospital... e os dedos começaram a ficar transparentes... e as veias, e as mãos, os pés, os joelhos...mas a fome foi passando: foi assim que comecei a aceitar as minhas transparências... deixei de ter fome e me sinto cada vez mais leve... estes são os meus dias...
e voltou a olhar cada um nos olhos, incluindo o Cego
— este é o corpo que eu agora tenho — levantou-se para voltar ao seu lugar
fez-se sentir o silêncio
— meus amigos — JoãoDevagar não conseguia esconder a emoção — não sei como agradecer... não é da ajuda de virem aqui arrumar o nosso cinema da oitava arte... é mesmo do contributo de gente humana, o mundo há de saber que aqui, no terraço do nosso querido prédio, em Luanda, hoje, a esta hora, um grupo de homens testemunhados por um galo que não vê lá muito bem... hoje, esse grupo de homens fez teatro! teatro à moda antiga, à moda dos duros!, porque... só os grandes homens choram na companhia solitária de outros homens — cruzou as mãos no peito —, fim de citação, meus amigos, boas noites e sejam felizes!
sem tocar na geografia das cadeiras ou das antenas, Odonato deixou-se estar longas horas na berma do prédio observando a azáfama de carros circulando pelas artérias vastas ou apertadas da cidade de Luanda
um brilho de saudade interna iluminou-lhe o coração e o homem cedeu à tentação de abrir a sua camisa para espreitar desajeitadamente o seu próprio peito, mas a transparência ainda não permitia que Odonato observasse com os olhos o que lhe invadia as veias
— Nato? é o quê? — Xilisbaba estranhou o gesto
– é o quê o quê? — Odonato fechou a camisa
— dores no peito?
— dores no coração
— a sério?
— dores no coração de sentir. deixa lá, minha mulher, os médicos já me garantiram, sofro de saudades acumuladas
Xilisbaba sorriu e afastou, como fazia há anos, o marido da berma do prédio
— sofro de uma desorganização de saudades
— não me faças rir, Nato
— é verdade, hoje é que entendi bem isso. Tenho saudades em todas as direções, não tenho só saudades do passado. tenho saudades até de coisas que ainda não aconteceram
— agora pareces a minha mãe a falar
— pareço mesmo... mas diz, o que foi?
— telefonou o Gadinho
— e então?
— localizou o Ciente numa esquadra, deixou indicações, mas...
— diz
— ele disse que é uma esquadra muito complicada e que ele já teve makas com o comandante de lá, não te pode ajudar
— bom, ao menos sabe-se onde está o Ciente, ele disse mais alguma coisa?
— disse que conseguiu falar com um dos guardas que dorme lá
— e então, querem dinheiro?
— não, parece que não
— querem quê?
— amanhã eu falo com a MariaComForça, para ela te preparar uma cesta
— mas os guardas querem quê?
— bife com batata frita! disseram que se levares a mais, eles dão o resto ao teu filho
— filhos da puta!
— é a vida...! ainda bem para nós, porque bife com batata frita acho que consigo arranjar. agora se pedissem dinheiro era bem pior
— tens razão
Odonato encostou o seu corpo ao de Xilisbaba
ela sentiu-se mais a si do que a ele
— também estás mais leve?
— estou
— Nato... tens de comer, filho – Xilisbaba suplicava
— não tenho de comer, Baba... não comer só me tem feito bem, já te expliquei. deixei de sentir dores no estômago, sinto-me melhor, penso melhor, talvez vocês também pudessem experimentar
— já falámos sobre isso, Nato, todos menos as crianças
— está bem
Odonato voltou à berma do prédio, olhou o céu de Luanda, viu o galo esconder-se, depois ficou imóvel de corpo suado e hirto, como uma estátua bem esculpida
— a verdade é ainda mais triste, Baba: não somos transparentes por não comer... nós somos transparentes porque somos pobres.
Ondjaki | ANGOLA |
Ele estudou sociologia em Lisboa e possui doutorado em estudos africanos em Nápoles. A sua obra inclui cinco novelas, cinco colectâneas de historias curtas seis volumes de poesia, duas peças de teatro e nove histórias para crianças; os seus livros estão traduzidos em várias línguas. Em 2010, recebeu o "Prémio Jabuti" brasileiro, em 2013, o "Prémio José Saramago" português e, em 2016, o "Prix littéraire du Monde". É também proprietário de uma livraria e de uma editora em Luanda.