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periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

A Epistemologia Periférica e o Acesso à Justiça

Teoria crítica conceitualizada a partir do território e suas dimensões corpóreas, subjetivas e físicas

Jailson de Souza e Silva, Fernando Lannes Fernandes e Heloisa Melino

| Brasil |

setembro de 2023

A epistemologia periférica (EP) é referência no campo da produção de conhecimentos que direciona a atuação da UNIperiferias em todas suas frentes, em pesquisa, formação e difusão. Na pesquisa realizada pelo Centro Migração para o Desenvolvimento e Igualdade (MIDEQ) sobre a migração haitiana no Brasil; em Relações étnicos-raciais e de gênero no ensino médio — pesquisa realizada em parceria com o Instituto Unibanco  em oito unidades de ensino nos estados de Goiás e Piauí; na Escuta — formação voltada para a formação da curadoria popular, em parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS) —; no Seja Democracia — frente de formação política direcionada para a pessoas das periferias, em 131 núcleos e sete pólos presentes em oito estados e 65 municípios.

Por efeito, a epistemologia periférica é a eixo editorial da Periferias — editora que em quatro anos tem 25 publicações no catálogo, além de nove edições da Periferias — revista digital e impressa que teve sua primeira edição publicada em 2017 — ano em que a UNIperiferias iniciou sua atuação na Maré, Rio de Janeiro. Em 2018, o IMJA realizou a cerimônia Mestre das Periferias, premiação que homenageou Ailton Krenak, Conceição Evaristo, Nêgo Bispo e Marielle Franco (em memória). Essas pessoas são mestras a partir de outras premissas, paradigmas e territórios — favelas, aldeias indígenas e quilombos. Reconhecê-los e construir esforços conjuntos com organizações diversas da sociedade civil foi a materialização da essência proposta pela EP. Em 2023, cinco anos após a primeira edição, o Mestre das Periferias será novamente a celebração da principal proposição da instituição: difundir o paradigma da potência das periferias. A cerimônia acontecerá em novembro, no Rio de Janeiro.

O adjetivo periférica compõe o conceito por uma razão que não é trivial: a epistemologia tem como ponto de partida estes territórios, em suas dimensões corpóreas, subjetivas e físicas. Um projeto em construção, a EP é uma iniciativa de pessoas com históricos de vida, tempos de carreira, interesses e corpos diferentes, relacionadas a partir de uma mesma crença de que as revoluções possíveis no contemporâneo têm como núcleo os sujeitos e espaços constituídos externamente à dinâmica central privilegiada pelos poderes dominantes. Neste quadro, a EP é uma caixa de ferramentas para que possamos conhecer e apreender, e ao mesmo tempo propor e (re)construir novas formas de vida, tanto no plano singular/subjetivo quanto no social, de forma geral.

O adjetivo periférica compõe o conceito por uma razão que não é trivial: a epistemologia tem como ponto de partida estes territórios, em suas dimensões corpóreas, subjetivas e físicas

As desigualdades sociais são históricas, sofrendo transformações em relação aos sujeitos e nações em posições hegemônicas de poder. Todavia, desde a criação das bases históricas do ciclo de desenvolvimento do capitalismo como um sistema-mundo, são os mesmos grupos de pessoas que são explorados, expropriados, precarizados e tidos como descartáveis. Muito pouco mudou nos últimos cinco séculos, e parte do problema reside na forma como ele próprio é concebido e nas premissas que sustentam a busca de soluções.

A fim de lidar com esta realidade, a EP tem autoras/es, referências ontológicas e epistemológicas distintas, seja em termos corpóreos, geográficos e/ou sociais. Elas/es estão em diferentes partes do planeta, e nós, do Brasil, nos sentimos parte dessa imensa rede, marcada por um alto grau de espontaneidade e um pressuposto fundamental: a crença na dignidade plena da humanidade e o trabalho sistemático, cotidiano, para visibilizar e fortalecer esta potência. 

A EP é uma forma de pensar, de organizar e de agir. Não somos os únicos neste caminho nem professamos uma verdade absoluta – longe de existir. Caminhamos, muitas vezes, sem saber aonde chegaremos, mas na direção de um mundo em que a vida plena, amorosa e solidária seja realidade alcançável para o conjunto das populações, em especial aquelas que se tornaram descartáveis no sistema capitalista. Reconhecemos a necessidade de ser flexíveis e abertas/os às alterações de rotas nos caminhos escolhidos, como parte da instabilidade de sonhar/projetar mundos existentes apenas nos planos do desejo, do pensamento, do simbólico ou na materialidade de pequenos grupos dispersos pelo planeta. 

A EP se insere em um quadro de teorias de mundo críticas e descoloniais que pretendem ser uma fonte desestabilizadora das leituras hegemônicas. Como todo pensamento que se assume crítico, são atravessadas e conduzidas por preocupações éticas, políticas e teóricas que desejam contribuir para a transformação social emancipatória. Ela pressupõe que traçar diálogos a partir de uma perspectiva eurocêntrica no Brasil, mais do que nunca, não coloca em questão o status quo em nenhum campo, em particular o racial. Além do prejuízo político, há o dano para a compreensão adequada dos processos da realidade social brasileira. Reconhecemos e dialogamos com os saberes estabelecidos pelos autores europeus, em especial os críticos da ordem hegemônica, mas eles são insuficientes para entendermos o nosso país e os vizinhos. Cabe, então, um processo de reapropriação, quando for o caso, das categorias conceituais e críticas europeias a partir das territorialidades do Brasil e da América Latina.

A EP se insere em um quadro de teorias de mundo críticas e decoloniais que pretendem ser uma fonte desestabilizadora das leituras hegemônicas. Como todo pensamento que se assume crítico, são atravessadas e conduzidas por preocupações éticas, políticas e teóricas que desejam contribuir para a transformação social emancipatória

Nessa direção, temos realizado, na Uniperiferias, diálogos com autoras e autores implicadas/os com processos de emancipação social, que também denunciam os efeitos do colonialismo, do imperialismo e da colonialidade do poder e do saber, ainda que, eventualmente, não usem esses termos. Os diálogos são possíveis a partir das perspectivas das margens e do borramento de fronteiras, invocando subjetividades aptas e dispostas a se sustentarem no limite da estrutura da língua e com a inquietação provocada por estar nesse lugar, suportando tensões desestabilizadoras na busca ativa por mundos que possam significar novas línguas e novos sentidos. Buscamos desafiar os pressupostos tradicionais do “conhecimento”, dos “saberes” e da “razão”, inclusive “desaprendendo” e nos “deseducando” do tradicional, para propor novas formas de pensar e de compreender.

 

Conversas sobre periferias

Iniciamos a discussão a partir da reinterpretação e reconceituação da periferia, a exemplo de como a favela tem sido reinterpretada e reconceituada pelo reconhecimento da solidariedade, sociabilidade, do uso comum do espaço público, na construção de um conjunto de atividades, principalmente culturais, mas também arquitetônicas, sociais, a partir da construção de festas, do experimento e valor da abundância, do comum. A favela, neste lugar, é reconhecida e afirmada, em primeiro plano, por seu lugar de potência e inovação de um modo de viver. 

A representação hegemônica sobre a favela se associa à de periferia, tendo a mesma conotação: ideia de ausência, precariedade, falta, principalmente, de acesso a equipamentos, serviços e renda. Tradicionalmente, a ideia de periferia está diretamente relacionada à de um centro. Assim, ela seria, por definição, um lugar subalternizado, provisório, cujo sentido deve ser buscar o centro como modelo, inspiração e porto de chegada, quase como um processo evolutivo. 

Neste contexto, buscamos uma perspectiva sustentada no esforço de ressignificar o conceito, mantendo o termo “periferias”. Porque as pessoas no Brasil, das periferias, especialmente as mais conscientes de sua origem e lugar na cidade, valorizam o termo “periferia”. Entendem que são da Periferia e usam o termo em um processo de construção de identidade política. Assim, compreendemos que não podemos simplesmente dizer que somos “apenas uma humanidade” ou “apenas uma cidade”. Essa abstração ignora a existência de um processo socioterritorial de desigualdade e diferenças, que tem como base material o acesso desigual a equipamentos urbanos, a serviços e a renda, e gera novas materialidades e referências no campo do simbólico.

Nosso conceito de periferia pressupõe, como nas favelas, que existem outras possibilidades de vida na cidade que derivam de formas alternativas de convivência em relação aos bairros com maior acesso aos bens materiais urbanos

Nosso conceito de periferia pressupõe, como nas favelas, que existem outras possibilidades de vida na cidade que derivam de formas alternativas de convivência em relação aos bairros com maior acesso aos bens materiais urbanos. Essa é a ideia fundamental.

Nós queremos, efetivamente, nos apropriar da ideia de periferia em uma perspectiva revolucionária e romper com a ideia de que é o “centro” o ideal da construção e convivência em/com a cidade.

Em verdade, afirmamos que as periferias são cada vez mais “centrais”, borrando barreiras dicotômicas entre periferia e centro, reconhecendo que as periferias são, por excelência, espaços com grande potência de (re)construção da vida na cidade, ou de formas de vida mais plurais e igualitárias. 

 

Conversas sobre epistemologias

No âmbito da EP, falamos agora do nosso conceito/termo “epistemologia”. A epistemologia tradicional se baseia em conceitos – basicamente, ideias sistemáticas ordenadas no plano do pensamento, dirigidas para aspectos particulares da realidade. Esta é, em si, um conjunto caótico, com imensas e plurais possibilidades de ser apropriada, das formas mais variadas. Os conceitos ordenam esse processo de “acercamento” do real, permitindo que as impressões e as percepções sejam ordenadas de formas específicas, de acordo com sistemas de teorias estabelecidas. 

O desafio primeiro da epistemologia é discutir quais são os elementos que baseiam o processo de construção do conhecimento sobre a realidade. Historicamente, a epistemologia parecia algo estabelecido, que não poderia ser diferente do modelo criado pelos pensadores que a sistematizaram no contexto hegemônico da sociedade europeia. Esse modelo se sustentava na forte valorização da racionalidade clássica, que divide corpo, mente e espírito, ao invés de reconhecer a integralidade da experiência humana; na crença na neutralidade dos conceitos e das teorias; na definição de objetos de estudos estanques; na linguagem matematizada como forma primordial de expressão; na camuflagem de aspectos éticos e políticos os chamando de “universais” e na desvalorização de saberes ancestrais ou derivados da experiência. 

Temos, então, um desafio fundamental quando pensamos em uma nova epistemologia, que é desnaturalizar e historicizar as formas usuais de construção dos conhecimentos, e fazer a devida crítica do modo como as instituições se comportam em relação a eles. Para isso, cabe trabalhar na elaboração de uma episteme baseada em outras referências, ainda que crie diálogos com a racionalidade clássica.

 

O que constitui a Epistemologia Periférica? 

Em primeiro lugar, a EP tem a tarefa de nos ajudar no processo de desnaturalização das formas instituídas pelo pensamento e estruturas materiais coloniais. Cabe historicizá-las e territorializá-las, revelando assim o seu real estado de construção social, humana.

A seguir, cabe reconhecer que a realidade é inesgotável. Porque quando a estamos interpretando, a nossa própria interpretação interfere na construção desse “real”. Por isso a impossibilidade de atingir a realidade de forma totalizada. O que podemos fazer é um permanente processo de aproximação dessa “realidade”, sabendo que esse processo é permanente; não tem ponto de chegada. A EP compreende sua contingência e convive com a certeza de que o “não saber” plenamente faz parte da busca de uma realidade que tem apenas como permanente a sua impermanência. 

Outro ponto é o reconhecimento de que o simbólico institui o real e vice-versa. As formas de representação do real, como nos relacionamos com ele, interferem na construção da realidade que experimentamos. Por isso é fundamental reunir um conjunto amplo de sujeitos, representações e práticas na construção de um processo de pesquisa. Isso significa reconhecer e valorizar outros saberes e fazeres, principalmente de sujeitos que historicamente não foram reconhecidos nas maneiras como vivem e (re)criam suas vidas. 

Em se falando das pesquisas de migração, por exemplo, reconhecemos que as pessoas migrantes também fazem parte da produção de saberes, também são sujeitos que produzem saberes próprios. Por isso, em nossa equipe do MIDEQ no Brasil, nossa primeira ação foi contratar pesquisadoras/es haitianas/os, pois reconhecemos a inadequação epistêmica, ética e política de produzir conhecimentos efetivos da migração haitiana sem levar em conta os saberes objetivos e subjetivos que os sujeitos concretos do país aportam quando se instalam na realidade brasileira. 

Outro aspecto fundamental da epistemologia periférica é a superação da centralidade dos elementos cognitivos na produção do fazer/saber. As habilidades cognitivas nos ajudam a construir todo o processo de apreensão racional, então as habilidades de identificar, relacionar, comparar, classificar, analisar, sintetizar e muitas outras devem ser desenvolvidas. Mas não completam o processo do saber/fazer.

Assim, ousamos falar que nossa EP tem, pelo menos, sete dimensões que devem ser levadas em conta em seu processo de constituição, em formas e graus distintos de acordo com o processo de construção da investigação proposta: os aspectos cognitivos-racionais; o compromisso político; o rigor ético; a visibilidade estética-corpórea; o valor da experiência do afeto, da amorosidade; a abertura para a intuição, para um saber que não se esgota na mirada racional, que exige o reconhecimento da ancestralidade, da experiência telúrica, a conexão que domina as relações subjetivas, interpessoais e dos seres humanos com a natureza; e a isenção na busca das verdades possíveis emanadas do estudo e acercamento do objeto.

A primeira dimensão, a racional, diz respeito ao que estamos conversando até aqui. Precisamos da razão para construir nosso processo de conhecer e de conhecimento. Embora não seja a única, a racionalidade cognitiva é, sim, importante. A segunda envolve o compromisso político. Somos sujeitos situados, territorializados, periféricos. Produzimos conhecimentos a fim de fortalecer a agenda dos direitos da população periférica, para revolucionar a realidade capitalista, o nosso tempo, e contribuir para que toda a humanidade se emancipe das formas de violência que limitam as suas possibilidades existenciais. A seguir, temos a dimensão ética.

A separação entre sujeito e objeto, alardeada pela racionalidade eurocêntrica, não existe. Nós precisamos, especialmente nas ciências humanas e sociais, sempre colocar o que é chamado de “objeto da pesquisa” na condição de produtoras/es do conhecimento, sem hierarquias. Assim, todo conhecimento na perspectiva da epistemologia periférica é construído sempre com sujeitos; não há objetos de estudo, simplesmente sujeitos que participam juntos de um processo de construção de um conhecimento implicado.

Produzimos conhecimentos a fim de fortalecer a agenda dos direitos da população periférica, para revolucionar a realidade capitalista, o nosso tempo, e contribuir para que toda a humanidade se emancipe das formas de violência que limitam as suas possibilidades existenciais

A quarta dimensão fundamental da nossa EP é a dimensão estética. São corpos efetivamente físicos que estão conhecendo, não são cérebros simplesmente; são corpos negros, corpos periféricos, corpos brancos, corpos de homens, de mulheres, de pessoas não binárias, de pessoas cis-heterossexuais, de LGBTQIA+. Nós conhecemos e produzimos conhecimento com os nossos corpos. Mais ainda: as pessoas com quem lidamos na pesquisa nos reconhecem e categorizam a partir dos nossos corpos particulares, concretos.

Reconhecer isso é vital para democratizar o saber e permitir que corpos tradicionalmente fora do campo do saber tradicional tenham as condições devidas de produzir conhecimentos social e cientificamente reconhecido. Quando definimos que queremos, por exemplo, corpos haitianos na pesquisa do corredor migratório Haiti-Brasil, na produção dos conhecimentos que buscávamos, sabemos que essas pessoas vão se relacionar com outros corpos haitianos e vão fornecer suas informações de outra forma do que faria um corpo de uma pessoa brasileira. Os corpos falam na epistemologia periférica. A dimensão corpórea materializa a vida, em seu permanente ser/fazer.

A quinta dimensão é a do afeto, que é mais do que a capacidade de se afetar. Falamos da dimensão da amorosidade, da empatia e identificação na construção de um conhecimento que quer melhorar a vida, melhorar o mundo. Para isso, precisa-se de uma dimensão generosa e amorosa, em seu sentido mais humano, de comunhão, que busca, efetivamente, ajudar a transformar a realidade para melhor. Isso não é só uma dimensão ética, pois é assumir o compromisso radical com a transformação da realidade em uma perspectiva amorosa. 

O sexto elemento fundamental é a dimensão da intuição, que vai além do insight ou do tipo de intuição reconhecido pela ciência tradicional. Significa sentir-se em conexão com outros seres, sentir conexão com nossas/os ancestrais, com a força telúrica. Produzimos conhecimento também a partir do reconhecimento de outras forças, de outras energias, de outros saberes que não conseguimos acessar racionalmente. Há muitos saberes carregados de ancestralidade, da energia que domina as relações humanas e as relações dos seres humanos com a natureza como um todo, que foram historicamente perseguidos pelas classes dominantes. O que buscamos é o oposto do desencantamento do mundo, abrindo caminho para a inteligibilidade de muitas possibilidades de apreender e se conectar com o mundo. 

Uma sétima dimensão de nossa perspectiva epistemológica passa pela verdade e a isenção na investigação científica. Verdade, no sentido clássico, seria o grau de consonância possível entre o sujeito que busca conhecer o objeto e o objeto em si. Reconhecemos, no entanto, que a verdade está sempre vinculada ao poder. É o poder que define quem é que pode, de fato, afirmar o que é verdadeiro. Quanto maior o poder que o sujeito tem de afirmar sua narrativa, maior o grau de conhecimento da verdade que ele propõe. A discussão da verdade, então, é fundamental. A ciência só tem sentido se buscar a verdade de forma isenta, reconhecendo seus plurais condicionantes. 

A epistemologia periférica se propõe como realista, pois se sustenta na relação com a realidade, em vivências concretas. Ela é objetiva, pois seus contornos e conteúdos estão explicitamente definidos. Enquanto as epistemologias clássicas mascaram seus contornos políticos e sua finalidade com a universalidade, a epistemologia periférica trabalha com as experiências concretas como foram e são vividas pelas pessoas humanas em todas as suas diferenças. Ao mesmo tempo, a EP é um pensar-fazer, porque borra fronteiras do que a epistemologia clássica separa como dicotomias – o teorizar e o agir. 

Esperamos que as considerações preliminares sobre epistemologia periférica que trouxemos aqui possibilitem a compreensão do projeto político, pedagógico, metodológico, ético e estético com o qual temos buscado construir nossa atuação, enquanto parceiros/as do MIDEQ no Brasil. Vale ressaltar que a EP, como epistemologia decolonial, está sempre aberta a contestações e a desenvolvimentos e elaborações. Dado que vivemos um mundo que busca silenciar e apagar diversidades e histórias, a abertura para os diálogos se faz mais do que fundamental na busca por mundos outros.

 

Acesso à justiça para além de mecanismos formais institucionais 

O acesso à justiça no contexto das migrações é tratado pela UNIperiferias não a partir dos mecanismos formais, do judiciário e do legislativo apenas, mas a partir do reconhecimento da potência das periferias e da pedagogia da convivência para construir mundos alternativos em que a diversidade de formas de vida seja validada como um atributo positivo da pluralidade humana.

No âmbito das migrações no Sul Global, a necessidade de construção de pontes para combater os estigmas e discriminações da sociedade brasileira é uma prerrogativa. Essas pontes são a potência da construção de alianças/coalizões, ou confluências, para que possamos conquistar uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas.

O sistema jurídico brasileiro, Civil Law, significa que, prioritariamente, são as leis, normas, portarias, regulamentos, atos administrativos e outros instrumentos normativos, que vão significar “o Direito”. Os costumes, tradições, hábitos sociais e sistemas de exploração históricos, no entanto, moldam essas estruturas normativas e também a aplicação da lei, assim como as normas influenciam ou têm potencial de modificar as relações sociais. É um sistema complicado, porque transforma “o Direito” em um sistema defasado, quando na verdade precisa ser dinâmico e estar atento ao tecido social para que possa ser usado no combate de injustiças sistêmicas. 

Na sociedade contemporânea, é humana toda pessoa que nasce com vida e, ao nascer, diz-se que já temos um sem-número de direitos e deveres, como a própria Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB ou CF) sustentam. Essas normas, assim como tantas outras que existem no Brasil e no mundo, no entanto, não garantem a igualdade que preceituam, nem os acessos a direitos que dizem garantir, mas são importantes de existir porque são instrumentos para o acesso efetivo a direitos. 

Ressaltamos que nenhuma das normas existentes, ou seja, nenhum dos direitos reconhecidos pelo Estado e por mecanismos internacionais, é “concedido”. Não há concessões por parte do Estado, há conquistas sociais que são frutos de lutas históricas de diversos povos e de pessoas, organizadas ou não. Do ponto de vista de uma teoria crítica, os direitos são o resultado provisório dessas lutas que são colocados em prática para acesso aos bens necessários para a vida.

Antes de pensar na transformação de direitos em leis, será necessário pensar no acesso aos bens exigíveis para viver com dignidade. Reforçando, os direitos escritos em lei vêm depois das lutas pelo acesso aos bens. E é preciso ter uma visão crítica e transparente sobre quais são as pessoas que têm acesso a essas lutas, ou ao que podemos chamar de arena pública de debates. Não só pela perspectiva da democracia deliberativa, que “cria” representantes do povo para as instâncias governamentais, mas pela perspectiva da real escuta, compreensão e apreensão do que é demandado por pessoas que, em geral, não estão na hegemonia do poder social.

Percepções básicas — elementares para a Vida Digna — como poder se expressar politicamente, ter acesso à educação pelo sistema de ensino público — nos níveis básico, médio e superior —, ter mecanismos para superar barreiras linguísticas e do acesso a trabalho, ter direito a expressar opinião foram amplamente constatadas pelas pesquisa que realizamos com a comunidade haitiana no Brasil. Elas aparecem interseccionadas com o preconceito racial, a xenofobia e a pobreza, as desigualdades sociais entre homens e mulheres, indicando proximidades evidentes entre as populações negras e empobrecidas haitianas e brasileiras. 

A migração entre diferentes estados brasileiros e a inter ou transnacional, não é homogênea, assim como devem ser diversas  as estratégias para se estabelecer redes efetivas — ainda que informais — para acessar direitos e fazer frente ao racismo, a xenofobia e o preconceito de classe que criam dificuldades de acesso até mesmo a serviços que, no Brasil, são públicos e deveriam ser amplamente acessíveis.

Esses são apenas alguns exemplos, a partir de diversos relatos das pessoas participantes da pesquisa no âmbito do projeto MIDEQ que demonstram que, mesmo essas discriminações sendo proibidas pela Constituição Federal brasileira, estão presentes no dia a dia de todas e todos, tanto no contato com as instituições, quanto no âmbito social. É por isso que a Epistemologia Periférica se dirige à necessidade de abandonarmos uma racionalidade eurocentrada, e de buscarmos racionalidades outras, que reconheçam sabedorias plurais, o valor e necessidade de existência de cada uma/um de nós e a potência da diversidade humana.

O acesso à justiça vai além dos mecanismos formais estabelecidos e da importância das lutas sociais para ampliação de direitos e ampliação efetiva do acesso à justiça. Considerando-se isso, demonstra-se a urgência da construção de pontes que permitam a formação de coalizões/alianças entre as distintas populações desfavorecidas pelo atual estado de coisas no Brasil. Sendo necessário reconhecer o poder inventivo de um pluriverso de ideias e sujeitos como forma de construir formas alternativas de vida e interação, tanto interpessoais quanto entre os seres humanos, a natureza e o mundo em que vivemos. É preciso, portanto, borrar fronteiras e superar dicotomias, tanto nacionais quanto de outras normatividades, na defesa de políticas públicas e na ampliação do acesso ao que é necessário para se ter Dignidade de Vida. 

O livro Acesso à justiça: reafirmando direitos para as populações haitianas no Brasil, organizado por Heloisa Melino e Ismane Desrosiers, publicado pela editora Periferias, disponível em versão impressa e digital, aprofunda as discussões e proposições em torno dos desafios de acesso à justiça e direitos para as populações migrantes, especialmente a haitiana.


 

Jailson de Souza e Silva | BRASIL |

Geógrafo, doutor em Sociologia da Educação, fundador do Observatório de Favelas e da UNIperiferias/IMJA e co-investigador no projeto MIDEQ.

@jailson_de_souza_e_silva

Fernando Lannes Fernandes | BRASIL |

Co-diretor (não executivo) do Instituto Maria e João Aleixo (IMJA) e leitor (Educação Comunitária) na Universidade de Dundee. É membro fundador do Observatório de Favelas (Brasil). Fernando trabalha, desde 2001, na interface entre desenvolvimento urbano, violência e direitos humanos, com especial interesse em questões relacionadas ao racismo institucional e atitudes dos profissionais nos serviços públicos. Outras áreas-chave de interesse incluem epistemologias periféricas/Sul Global e abordagens criativas à investigação.

Heloísa Melino | BRASIL |

Jurista Social. PhD, LLM e bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e também mestrado em Políticas Públicas de Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ). As suas principais áreas de trabalho e investigação são Conhecimentos Periféricos; Teorias Jurídicas Críticas; Teorias Feministas; Descolonialidade (estudos latino-americanos); Estudos de Gênero e Sexualidade; e Movimentos Sociais.

@heloisamelino

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