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Desafiando o bem viver

Ensaio Fotográfico: Esboços dos bem viveres de Pioyá, Cauca

Vilma Almendra
Manuel Rozental
Edwin Pipicano
Ángela Gutiérrez
Jorge Sarria

| Colômbia |

julho de 2019

traduzido por Charlotte Broadhurst

O movimento indígena de Cauca na Colômbia tem sido historicamente caracterizado pela multiplicidade de resistências que emergiu, desde a luta armada até a negociação. Seu maior reconhecimento nacional e internacional vem como consequência das recuperações de terras realizadas entre os anos 1970 e os 1990, e pela criação do Consejo Regional Indígena del Cauca (Conselho Regional Indígena de Cauca, CRIC), uma das primeiras organizações indígenas do continente. É um processo de luta que também promoveu a própria organização nas áreas indígenas da Nasa, entre elas a Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca (Associação dos Conselhos Indígenas do Norte do Cauca, ACIN),1 Organização zonal afiliado ao CRIC com sede em Santander de Quilichao, Cauca. Isso representa 19 Conselhos e 15 Resguardos (territorios) indígenas localizados em 8 municípios no Norte do Cauca, no sudoeste do país. que surgiu na década de 1990.

Embora a recuperação de terras e a criação de organizações próprias já fossem uma bandeira de resistência dos indígenas de Cauca, a transformação fundamental que veio das comunidades foi a consolidação dos Planos de Vida, que são definidos comunitariamente como Sxa'w (ou o “sonho coletivo”, em Nasa Yuwe, a língua do povo da Nasa) que procura caminhar em equilíbrio e em harmonia com Uma Kiwe (Mãe Terra),2 Em outras palavras, é o equivalente ao que tem sido conhecido nos últimos anos pelos povos indígenas do Equador como o Sumak Kawsay, o Bem Viver. contra o Projeto da Morte, que é entendido coletivamente como o modelo econômico transnacional.3Nas comunidades Nasa no norte do Cauca há mais de uma década, começamos a nomear o modelo econômico do capital, particularmente em sua fase neoliberal, como um Projeto da Morte, precisamente por causa de todas as consequências que surgem em nossos territórios..

Na realidade, o que estava acontecendo era a revitalização da autonomia e a emergência de alternativas que são baseadas em princípios ancestrais e guiadas por nosso senso de Wët wët fxi`zenxi (Bons Viveres), em contraste com os ideais de “desenvolvimento” e "progresso”, que o Estado tem imposto há mais de dois séculos. Precisamente por isso, a ACIN foi projetada nos anos 2000 como uma das organizações indígenas mais reconhecidas na Colômbia. Da mesma forma, adquiriu visibilidade internacional, por promover grandes mobilizações,4 Além do processo interno autónomo para o Bem Viver, a ACIN foi projetada externamente por mobilizações como: A Minga pela Vida, Justiça, Liberdade e Autonomia (2004), que foi mobilizada em uma marcha desde Santander de Quilichao para Cali, Valle, deixando o Mandato Indígena e Popular como caminho da luta; o Referendo Popular contra o Acordo de Livre-Comércio com os Estados Unidos (2005), em que 98% dos participantes rejeitaram o Tratado; a Cimeira Itinerante dos Povos (2006), que trabalhou dinâmicas de unidade e mecanismos de articulação e coordenação entre as organizações sociais e populares no país; a Liberação da Mãe Terra (2005-2007) em vários municípios do Cauca que promoveu também a expulsão de monoculturas; a Visita Pelo País Que Queremos (2007), que negou o governo como um interlocutor legítimo e abraçou os povos para compartilhar a dor e a resistência ao Projeto da Morte; e finalmente, a Minga de Resistência Social e Comunitária (2008) que, durante um mês e meio, convocou o país inteiro para uma mobilização em que já estabelecia uma agenda para trabalhar: Diga não ao modelo econômico transnacional representado no livre-comércio. e simultaneamente, por fortalecer economias e outras organizações subordinadas à promoção e à defesa da vida. Outras formas que ultimamente vêm rachando, justamente porque, ao revelar sua resistência e lutar contra políticas estatais que só beneficiam as transnacionais, foram desencadeadas estratégias de captura para neutralizar e desmobilizar a construção de governos autônomos para os Bons Viveres, com a cumplicidade de alguns líderes e setores da comunidade que foram convencidos pelas promessas de acordos de “paz” que só beneficiam o livre comércio”.

Levando em conta os problemas anteriores, neste texto ilustraremos em termos gerais: alguns fundamentos do Bem Viver propostos pelos povos indígenas; o significado e a prática de Wët wët fxi`zenxi para algumas comunidades indígenas no Norte de Cauca, na Colômbia; as características que diferenciam e marcam importantes distâncias entre o Bem Viver e o Desenvolvimento; e algumas reflexões básicas.

Bem Viver: buscas para equilibrar e harmonizar a vida com a natureza

Nos últimos anos, o conceito de Bem Viver, como foi proposto pelos povos indígenas do Equador e da Bolívia, nomeado em Kichwa como Sumak Kawsay e em Aymara como Suma Qamaña, refere-se à vida digna em plenitude, constituída por vontades e práticas políticas cotidianas. Privilegia uma relação diferenciada com a natureza e busca garantir a sobrevivência dos povos. Isso é reiterado por um dos líderes Kichwa mais reconhecidos no Abya Yala:

O Sumak Kawsay, da tradução literal, seria a vida em plenitude, excelência, o melhor, o belo. Mas já interpretada em termos políticos, é a própria vida, uma mistura de tarefas e vontade política que significam mudanças para que as pessoas não percam o pão do dia e que não haja desigualdades sociais entre homens e mulheres. O Sumak Kawsay é o sonho não só dos índios, mas também de todos os humanos. Quando falamos sobre o Sumak Kawsay, não se trata de voltar ao passado, porque não podemos dizer que isso foi perfeito, mas nós tivemos e vivemos o Sumak Kawsay (Chancoso, 2010: 456).

Conceito em torno do qual várias discussões, reflexões e debates ocorreram. Embora o significado e a prática do Bem Viver emerjam de dentro das comunidades andinas e sejam nutridos e enriquecidos com contribuições de intelectuais comprometidos com as lutas indígenas. Porém, infelizmente os intelectuais orgânicos ao serviço do Estado-nação, principalmente no Equador, se apropriaram do Bem Viver como um discurso para legitimar as políticas neoliberais. Na prática, o conceito foi totalmente esvaziado do seu significado, enquanto no discurso eles ainda estão falando sobre a vida em sua plenitude (Plan V, 2014).

Carlos Pérez Guartambel, como presidente da Confederação Kichwa do Equador (Ecuarrunari), afirmou que, para sustentar uma relação diferente com a natureza, devem ser levados em conta alguns elementos básicos para o Bem Viver. Indicou o que esses representam e implicam:

[...] o ar, a terra, a água e o fogo. E, por sua vez, cada representa reciprocidade, complementaridade, integralidade e proporcionalidade. Reciprocidade com solidariedade, a Minga [mutirão]; a complementaridade com o que está contido na representação, de que não há competição, não há dominador ou dominado, o homem e a mulher se complementam, branco preto, o de acima e o do baixo, o fogo e a água. A integralidade é a visão holística que liga tudo. E a proporcionalidade é a questão da justiça, o dar e o receber. (Pérez Guartambel, citado no Plano V, 2014)

Assim, o Bem Viver é relevante não apenas pela sua natureza filosófica que os povos indígenas utilizam para orientar as suas ações que os envolvem com a natureza, mas também é pertinente pela orientação das práticas coletivas de vida comunitária. Claramente, a reciprocidade envolve o cuidado e a proteção da Mãe Terra, para que ela continue a fornecer a comida necessária e, ao mesmo tempo, implica ser solidária e participar nas várias tarefas comuns que beneficiam a todos. Neste sentido, consideramos que todos os princípios explicados por Pérez Guartambel são manifestados na Minga. A Minga é uma prática ancestral e cotidiana, que ainda existe hoje, em que os homens, mulheres, idosos e crianças se juntam; se trata de

[...] um esforço coletivo organizado com o propósito de alcançar um objetivo comum. Quando uma Minga é convocada, tem prioridade sobre outras atividades, que são adiadas para cumprir o propósito comum.

Os resultados da Minga não têm donos. As conquistas são do coletivo e ninguém, de nenhuma maneira individual, pode se apropriar delas. As Mingas mostram a maturidade das comunidades. A disciplina; a capacidade de agir em comunidade; a humildade; a contribuição do esforço individual máximo para uma realização coletiva; a consciência de que o comum excede o particular, mas que cada esforço particular é essencial, são todos elementos que demostram a qualidade exemplar de uma Minga. (ACIN, 2008)

O Bem Viver é a base do pensamento dos povos indígenas que emana de uma relação harmoniosa e equilibrada entre os seres humanos e a Mãe Terra. Por isso, não admite o domínio nem a destruição dos bens comuns. Isso contraste à função do estado-nação, como “ordenamento jurídico que tem como objetivo geral o exercício de poder soberano sobre um determinado território, e ao qual os indivíduos, que lhe pertencem, estão subordinados de forma necessária” (Bobbio, 1989). Esta posição do estado-nação intensificou a implementação de um modelo extrativista transnacional que, na verdade, destruí a natureza (Zibechi, 2010).

Da mesma forma, o Bem Viver como uma categoria estabelecida não é um conceito acabado ou fechado. É como a vida em comunidade, é como as relações cotidianas, é como deveria ser a natureza dos costumes: reprodutiva, construtiva e em transformação de acordo com a necessidade comum e o contexto. Ou seja, é o oposto de o que impõe o sigilo do modelo econômico transnacional com as políticas de desapropriação e exploração. Nessa maneira,

[...] fica claro, portanto, que o Bem Viver é um conceito plural (seria melhor falar de “bons viveres” ou “bons conviveres”) que emerge especialmente das comunidades indígenas, sem negar as vantagens tecnológicas do mundo moderno, nem as possíveis contribuições de outras culturas e conhecimentos que questionam diferentes aspetos da modernidade dominante. Como explicam os zapatistas, a tarefa é construir um mundo onde todos os mundos se encaixem, sem ninguém viver mal para que outro viva melhor. (Acosta, 2013)

Wët wët fxi`zenxi como o horizonte do povo Nasa

O Bem Viver, além de ser um conceito recentemente visível, é uma prática cotidiana que tenta tecer desde as comunidades com a Mãe Terra e que se transforma de acordo com a dinâmica da comunidade e os contextos históricos. Desta forma, o Bem Viver para o povo Nasa do Norte de Cauca tem o mesmo nome que na Bolívia e no Equador, o Wët wët fxi`zenxi (Bons Viveres), que na língua Nasa Yuwe significa:

(viver e estar bem, coexistir em alegria) e define as orientações de um modo de vida harmonioso entre todos os seres da vida. [...] O que prejudica o Wët wët fxi`zenxi, é o capitalismo, o “mal viver”, que degrada o coração humano e rompe as relações na comunidade. (Tejido de Educación ACIN, 2014)

Para compreender a experiência comunitária e prática do Wët wët fxi`zenxi, é necessário reconhecer breves traços do caminho ancestral dos Bons Viveres que vinha tecendo dos povos indígenas do Cauca. Isso contém pelo menos quatro momentos históricos:

A fase da resistência, liderada pela Cacica Gaitana no século XVI com a luta armada (Conquista Espanhola); por Juan Tama e Manuel de Quilos-Ciclos no século XVII, através da negociação (Colonia Espanhola); e por Manuel Quintín Lame nos séculos XIX e XX com o despertar de consciência e ações concretas (Período Republicano). A fase de recuperação, reconhecida pelas aquisições de terras lideradas por indígenas e camponeses com o slogan “Terra para o povo” e o nascimento do Consejo Regional Indígena del Cauca-CRIC [Conselho Indígena Regional de Cauca] em 24 de fevereiro de 1971,5 O CRIC foi criado na cidade de La Susana, no município de Toribío, com a participação dos povos indígenas de Cauca, mas também de representantes de outras cidades do país. que alcançou uma das reformas agrárias mais reconhecidas na América Latina e a maior da história da Colômbia.

A fase da autonomia, motivada por Padre Álvaro Ulcué Chocué de Toribío Cauca na década de 1980, com a criação de projetos comunitários na região norte do Cauca, que continua sendo uma das experiências práticas. A fase da alternativa, semeada pelo Congresso Indígena e Popular realizado em 2004, quando quase 60 mil indígenas do Cauca caminharam em direção a Cali, pedindo a unidade do povo para rejeitar a agressão sistemática através do  TLC com os EUA, a reforma constitucional e para exigir respeito pela vida. (Tejido Comunicación ACIN, 2009)

Neste caminho, vale a pena focar nas duas últimas fases, nas quais consideramos o fortalecimento do Wët wët fxi`zenxi desde as formas de sua própria organização política e as ações coletivas internas e externas. Após as grandes recuperações de terras ocorridas em Cauca, reconhecidas como uma das reformas agrárias mais extensas e eficientes da Colômbia,6Em 1970, as comunidades indígenas Nasa em Cauca tinham apenas 200 hectares de terra e tinham seis conselhos como formas apropriadas de organização. Duas décadas depois, já havia 122 conselhos com 570 mil hectares de terra. Para mais informações, consulte (Verdad Abierta.com, 2014). um processo de autonomia foi iniciado, com o fortalecimento da autoridade tradicional e suas diferentes formas de organização. Mas, além dessas estruturas organizacionais, o fundamental para a busca da autonomia foi a recuperação da Assembleia, como a instância mais alta da decisão coletiva da comunidade,7Nas Assembleias comunitárias, todos têm o direito de falar e devem contribuir. Estas são convocadas quando necessário, para resolver problemas, planejar ações diretas e abordar todas as questões que exigem decisão na comunidade. Elas também são realizadas para eleger as autoridades do conselho, os coordenadores dos projetos comunitários, os representantes da ACIN e todos os cargos de responsabilidade e autoridade necessários. Consequentemente, o caráter das Assembleias pode ser resumido com o conceito Zapatista de "Ordenar Obedecendo".  e a Minga como ação coletiva dentro do território. Sem a Assembleia ou a Minga comunitária, não seria possível defender nem cuidar das nossas territorialidades. Além dos Cabildos (conselhos) indígenas,8No Norte do Cauca existem 19 conselhos indígenas, cada um dos quais é constituído por uma ou um governador principal, vice-governador, capitão, secretário, tesoureiro, promotor e deputados, embora existam conselhos que tenham outros cargos. Em essência, sua função é exercer o “ordenar obedecendo” das comunidades. que funcionam como a autoridade de cada um dos Resguardos (territórios indígenas), e que são compostos de homens e mulheres de base que formam um corpo comunitário eleito coletivamente e sem remuneração econômica, temos os Planos de Vida, ou projetos comunitários, que recolhem sonhos coletivos incorporados em apostas concretas de sobrevivência nos territórios; e os Tecidos da Vida como instrumentos técnicos operativos para priorizar e articular pontualmente o trabalho político organizacional em diversas áreas territoriais nos anos 2000 da ACIN.

Simultaneamente a esse processo político organizacional, eles estavam restabelecendo e recriando os Tul, que são jardins comunais nos quais semeiam plantas para garantir alimentos e saúde, e excedentes dos quais são vendidos nas localidades; o escambo, onde as comunidades de climas frios encontram aquelas do clima quente para trocar comida; o Banco de Sementes, que é um mecanismo para que os agricultores economizem as melhores sementes de cada safra, para garantir as próximas plantações; fundos rotativos, com os quais várias famílias estão associadas para trabalhar em projetos agrícolas, pecuários, produtivos e de industrialização; e as lojas comunitárias, encarregadas de comercializar os produtos para gerar recursos que sustentam os Planos de Vida.

Em resumem, as formas comunitárias anteriores que estávamos recriando – junto com outras que não conseguimos nomear – estavam renovando o caminho da Wët wët fxi`zenxi como constitutivo do pensamento Nasa, expressando que: “a palavra sem ação é vazia, a ação sem palavra é cega, a palavra e ação fora do espírito da comunidade, são a morte”; ou seja, tornar prático o discurso do Bem Viver. Deste modo, as comunidades em meio das agressões permanentes e guerras contínuas estavam fazendo todo o possível para caminhar estes oito princípios que coletamos para o Wët wët fxi`zenxi, e que Hugo Blanco Galdós nomeia como:

Amor pela Mãe Terra e mandato da sua preservação, proteção, porque ela é SAGRADA, 2. Economia e condições materiais são sujeitas à vida. A vida é sagrada, não “economia”, não acumulação, 3. Enraizamento na memória e no passado, lembrando e aprendendo das experiências e da sabedoria dos mais velhos, assim como do compromisso com o futuro (7 gerações futuras). O presente é um momento. Re-apropriar e re-trabalhando, 4. O coletivo e a comunidade: forjadores de comunidade, 5. Bem Viver. Ter para ser. O sagrado é o gozo da vida em harmonia. A sabedoria é o legado e o maior recurso. Viver a sabedoria. Acumular não é um valor, mas um erro, 6. Ordenar obedecendo. A autoridade está no coletivo e no debate. A representação não é delegada, 7. Democrática e participativa. Ao contrário do poder. Áreas de debate e reflexão coletiva. Desentendimentos e diferenças são bem-vindos. Escutar é um privilégio, uma oportunidade. Não se trata de acumular conhecimento como mercadoria, mas de compartilhá-lo e construí-lo coletivamente. Desprezo por hierarquias, 8. Amor pela diversidade. (Pueblos en Camino, 2013)

O Wët wët fxi`zenxi é, portanto, uma teleologia, uma busca coletiva permanente, em um contexto novo e cheio de contradições e demandas internas e externas. O caso acima, obviamente, significa que as relações da comunidade não são harmoniosas, embora o que é procurado seja precisamente a harmonia e o equilíbrio entre homens e mulheres e Uma Kiwe. A dinâmica dessas outras relações, portanto, é atravessada por fatores externos, como a guerra, a desapropriação, o deslocamento, as leis que favorecem as transnacionais, a propaganda midiática, entre outros. Da mesma forma, eles são afetados por contradições internas e lutas difíceis de lidar quando autoridades indígenas e setores da mesma comunidade foram capturados pela ambição e ganância do capital. É difícil falar de Bons Viveres no meio da guerra e dentro dos territórios que estão sendo reconfigurados pela máfia e pelo extrativismo capitalista da acumulação. Mesmo assim, nós existimos, nós re-existimos e queremos sobreviver, e é por isso que, no meio da morte, os Bons Viveres se tornam horizontes concretos para defender toda a vida.

Bons Viveres diante do desenvolvimento

Há contradições e contraposições entre as culturas indígenas que reivindicam e lutam pelo Bem Viver, e a cultura ocidental que impõe o desenvolvimento desde os estados para benefício das empresas transnacionais e das elites econômicas nacionais. Desenvolvimento definido “às vezes como um estado, às vezes um processo, ambos relacionados às ideias de bem-estar, progresso, justiça social, crescimento econômico, expansão pessoal e até equilíbrio ecológico” (Rist, 2002, 19), foi uma categoria criada em 1949, quando o Presidente Truman lançou o Plano Marshall, particularmente o ponto IV do plano, para transferir ciência e tecnologia para os países “pobres” e “atrasados”.

Ao mesmo tempo, tornou-se necessário criar subdesenvolvimento como oposição ao desenvolvimento para consolidar a perfeita dicotomia que lhes permitiria executar seus planos. Eles também definiram o “‘subdesenvolvimento’ como um estado de carência, e não como o resultado de circunstâncias históricas, e estabeleceram os ‘subdesenvolvidos’ como pobres, sem pedir as razões de sua indigência”, portanto, de acordo com esse argumento "o crescimento e a assistência – concebidos em termos tecnocráticos e quantitativos – se tornam a única resposta possível” (Rist, 2002: 94). Na realidade, o que foi buscado era acesso aos mercados, investimento capital y exploração de matérias-primas e povos em nome do “progresso” e do “bem-estar” dos países empobrecidos. Com este objetivo estratégico em mente, a razão da pobreza não é questionada, nem o porquê são chamados 'atrasados' em comparação aos EUA e Europa. Consistente com este propósito estratégico, “Truman não hesitou em anunciar um programa de assistência técnica que suprimiria o sofrimento dessas populações, graças à atividade industrial e ao aumento do padrão de vida” (Latouche, 2007: 11).

Como foi considerado até agora, o sentido do Bem Viver está enraizado na comunidade e na busca de um relacionamento harmonioso com a natureza. Isso não significa que as comunidades pretendam um modelo totalizante, portanto,

É verdade que abaixo do conceito de Bem Viver há aspectos compartilhados e também há divergências em algumas ênfases. Mas isso é perfeitamente compreensível, dado que responde a diferentes contextos culturais, históricos e ambientais. Portanto, não é uma proposta essencialista. Por sua vez, há muitas coincidências do que poderíamos definir como Mal Viver, é dizer o que não é desejado. Nesse caminho, a ruptura com a ideologia do progresso é fundamental. O Bem Viver propõe uma “dissociação” entre a qualidade de vida e progresso, e sua expressão atual no desenvolvimento econômico. […] O Bem Viver, por estas razões, deve ser construído a partir de concepções de relacionalidade e não de uma dualidade natureza / sociedade. (Gudynas e Acosta, 2011: 109)

Levando em conta o significado e a prática que estavam se transformando no Wët wët fxi`zenxi como compromisso ao Bem Viver no Norte de Cauca, consideramos que os conceitos e práticas que o definem, colocam em xeque as ideias de desenvolvimento, dado que

em muitas cosmovisões indígenas, não há conceito de desenvolvimento entendido como a concepção de um processo linear, como uma sucessão de estados anteriores e subsequentes. Não defende a visão de um estado de subdesenvolvimento a ser superado, nem a visão de um objetivo de “desenvolvimento” a ser alcançado, forçando a destruição das relações sociais e a harmonia com a natureza. […] nem há uma concepção de pobreza como falta de bens materiais; ou riqueza entendida como a abundância deles. Em outras palavras, o Bem Viver questiona a validade da própria ideia de progresso [...]. (Gudynas e Acosta, 2011: 105)

A complexidade das relações comunitárias e a harmonia desejada entre homens e mulheres e com a natureza, e o fato de que na prática existem conflitos, contradições e lutas alimentadas por intervenções externas, mas também por circunstâncias internas (como interesses do poder individual), têm facilitado o objetivo estratégico do desenvolvimento (ver acima) e, portanto, a captura do estado de organizações indígenas, como a ACIN, e suas comunidades. As promessas de “progresso”, “bem-estar” e “desenvolvimento”, que aparentemente as tirarão da “pobreza” e do “atraso”, em um contexto adverso caracterizado pela guerra e o aumento de dependência e de empobrecimento, resultam em confusão e cooptação. Essa cooptação está se tornando mais evidente porque o Estado oferece vantagens para que organizações e processos entrem em ciclos entre as lutas das mobilizações e as mesas de negociação com representantes do governo, sob a agenda da demanda do estado. Sem mencionar as políticas de assistência com vários projetos, aos quais as comunidades de base estão se tornando dependentes. Mas não entra na lógica do desenvolvimento; é pago com violência ou com a exclusão de recursos e programas de assistência.

Este foi o caso da maior mobilização que ocorreu em 2008 com a liderança da ACIN, chamada a Minga de Resistência Social e Comunitária, que resultou em uma instalação de mesas e comissões que, na prática, não responderam à demandas estruturais do movimento, como a rejeição de acordos de livre comércio (Rozental, 2009). O regime conseguiu neutralizar a resistência e condicionar as mobilizações, na medida em que a ACIN excluiu o ponto fundamental de sua agenda: os acordos de livre comércio de sua agenda de luta. A partir dessa mudança de agenda, as autoridades indígenas estão trabalhando lado a lado com o governo, para submeter os territórios autônomos à economia do “livre comércio”, através de inúmeros projetos de cadeia produtiva promovidos por agências e instituições como o Banco Mundial, as Nações Unidas e Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID),9 Agência que foi criticada e denunciada em vários países pelo impacto negativo que teve na agenda política dos movimentos. Infelizmente há vários anos, ele tem estado em Cauca e além de financiar vários projetos, faz parte do programa de planejamento da ACIN. que continuam entrando em nome da paz. Onze anos depois, vemos a luta das organizações indígenas contra o Estado mais difícil. Por exemplo, acaba de ser visto como a Minga do Sudoeste paralisou a estrada pan-americana por 26 dias e finalmente os líderes indígenas e camponeses cancelaram a greve, aceitando a promessa em recursos econômicos; um acordo que não desestabilize ou ameace as políticas estruturais que estão matando a vida em territórios com todos os tipos de atividades extrativistas e com o assassinato de líderes sociais que optaram por ficar fora do desenvolvimento e progresso.10Para obter mais detalhes, consulte Comunicação CRIC (2019), onde você também pode acessar a Ata do Acordo

Talvez o resultado mais determinante da guerra, e particularmente desta cooptação, seja que as autoridades indígenas mais visíveis colocaram seus interesses individuais acima dos princípios constitutivos do Wët wët fxi`zenxi. O mandato da comunidade, como foi apontado, promove uma relação harmoniosa e equilibrada com a Mãe Terra, tornando a economia sujeita à vida. Atualmente, e contrariamente a este mandato, o equilíbrio e a harmonia com a Mãe Terra estão subordinados à acumulação econômica, que se tornou a medida essencial de gestão na maioria das organizações indígenas, desde a mais local até a mais global.

O que é evidente hoje no norte do Cauca indígena não parece ser exclusivo desse processo. Por exemplo, se observa também nos governos progressistas da região e suas políticas que, no nome de desenvolvimento, focam na exploração dos territórios e saque dos bens comuns; na aplicação de legislação para o benefício de capital transnacional; na propaganda midiática que rompe com os imaginários comunitários do Bem Viver; y em todos os tipos de mecanismo de cooptação, que são orquestrados para inserir comunidades no modelo econômico transnacional. Para alcançar este objetivo, o discurso progressista e indigenista promove estrategicamente a proteção do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas, mas este discurso é desmascarado em pelo menos três áreas:

a legislação ambiental submete as decisões sobre proteção ambiental aos interesses extractivistas y os prioriza; a falta de titulação dos territórios indígenas é dramática e, como resultado, a falta de proteção desses territórios e comunidades e uma falta de respeito pela aplicação da consulta previa, que é um direito e uma obrigação do estado. (Rodríguez, 2014)

Como consequência, e como resultado do processo de cooptação e distorção do Wët wët fxi`zenxi, na experiência recente do processo indígena do norte do Cauca, é evidente nos discursos dos estados e seus governos que as políticas de desenvolvimento para o “bem-estar” e “progresso”, justificam não só a exploração do povo, mas também a destruição da natureza para as corporações transnacionais acumularem. Além de isso, também fica claro nos territórios, particularmente os indígenas, onde se localiza a maioria dos recursos naturais, que o desenvolvimento implementado na realidade “[...] é uma empresa que pretende transformar a relação entre homens entre eles e com a natureza em uma mercadoria. Trata-se de explorar, valorizar, lucrar com seus recursos naturais e humanos” (Latouche, 2007: 22).

Reflexões a caminho

Embora o espírito do Bem Viver, ou o Wët wët fxi`zenxi para o povo Nasa, seja uma proposta ética filosófico-prática que determina as relações entre comunidades e natureza; que requer que a economia esteja sujeita à vida; que precisa soldar a divisão entre o político, o social, o econômico; e que necessita recuperar o equilíbrio natural interrompido pelo extrativismo, não pode ser examinado sem se reconhecer que os povos indígenas são simultaneamente submetidos a e resistindo ao modelo econômico transnacional. Neste contexto, é necessário conhecer e entender como as estratégias de dominação e exploração que são impostas, a fim de alcançar resistências e alternativas, funcionam concretamente.

Além de isso, como resultado da conquista e o saque sistemático que culturas indígenas está sofrendo, é necessário reiterar que, na prática, o Bem Viver não é um ideal da sociedade legado dos antepassados, precisamente porque por um lado, os antagonistas das lutas indígenas mudaram ao longo da história, e por outro lado, o Bem Viver é, em princípio e por princípio, uma teleologia em construção coletiva e comunitária permanente, portanto, nunca pode ser uma receita da sociedade ideal sugerida por antepassados vanguardistas ou esclarecidos. Ou seja, que neste momento temos que reconhecer que forjar a vida em plenitude, na alegria, em equilíbrio e harmonia com o território, significa enfrentar desafios complexos e poderosos em um contexto caracterizado pela guerra do capital transnacional contra os povos (Cáceres, 2014).

Da mesma forma, é necessário avaliar, valorizar e validar o caminho percorrido pela ACIN, para retornar aos mandatos coletivos e restabelecer as lutas transformadoras, que agora são distorcidas por promessas de desenvolvimento e progresso. Portanto, é urgente reconhecer os erros que foram cometidos pela imposição de projetos e iniciativas que estão borrando outras formas de economia que transformam os territórios em mercadorias transnacionais. É necessário ter clareza política sobre o que significa o Bem Viver, e defender o território como filhas e filhos da Mãe Terra e não como donos dela. Daí a necessidade de abordas as rupturas, contradições e dificuldades que, por parte das próprias comunidades, são inconsistentes com os mandatos comunitários; mas fundamentalmente, a necessidade de alimentar a consciência que promove uma luta e resistência para a liberdade dos territórios.

Por outro lado, não se pode negar que os princípios e ideais do Bem Viver que aparecem nos discursos que o apresentam de maneira romântica e idealizada como a alternativa ao capital, têm um toque de utopia que colide com os desafios práticos do contexto global e com a concepção e prática do Bem Viver para os povos indígenas. Esta utopia borra e distorce o Bem Viver que faz referência a outras formas de vida, que sobrevivem com um potencial emancipador prático para o futuro e que são “a base para que as culturas indígenas possam resistir mais de 500 anos de colonização e exploração. O Bem Viver, finalmente, oferece uma orientação para construir coletivamente estilos diferentes e alternos ao progresso material” (Acosta, 2013).

Tal como o Bem Viver não é uma receita na experiência contraditória e dinâmica da ACIN, autores, como Latouche, propõem que “o de-crescimento, como tal, não é verdadeiramente uma alternativa concreta; seria, pelo contrário, a matriz que resultaria no surgimento de múltiplas alternativas” ao desenvolvimento económico e sugerem que, além de isso, “[...] o objetivo da boa vida é definido em várias maneiras, consoante os contextos em que está inscrito. Em outras palavras, trata-se de reconstruir (encontrar de novo?) novas culturas [...]” (2007: 66). O “de-crescimento” entendido como uma receita de Latouche, seria uma teoria insuficiente, porque, por exemplo, pode ser lido como propondo que todos, em qualquer contexto e processo, reduzam o consumo e produzam de forma controlada e racional, para respeitar o clima, os ecossistemas e os próprios seres humanos, como se as comunidades e os países empobrecidos também consumissem e produzissem na mesma grandeza que os países ricos. Esta interpretação contra os Planos de Vida da experiência da ACIN seria incompreensível.

Além disso, a proposta de “de-crescimento” é também linear, progressiva e focada na economia de medição, que também rompe com outras cosmovisões, como a dos indígenas, onde a economia é sujeita a vida e não ao contrário, como é o caso com o capital. A flexibilidade da concepção e prática do Bem Viver tem um limite concreto na medida em que o “Bem Viver propõe uma cosmovisão diferente da visão do ocidental, quando surge de raízes comunitárias, não capitalistas. Rompe igualmente com as lógicas antropocêntricas do capitalismo da civilização dominante e também rompe com os vários socialismos realmente existentes até agora” (Acosta, 2013).

Finalmente, reconhecendo que os povos indígenas não são a resposta, mas que suas fundações são essenciais para a sobrevivência do planeta, deve ser confirmado que:

Nosso compromisso é converter nossos princípios em conhecimento, no caminho e no futuro para defender a vida. Ter a essência do conhecimento ancestral não significa conhecer tudo e ter soluções para tudo. Significa continuar aprendendo, construir e tecer os indígenas com outros povos e processos organizacionais. As bases do conhecimento ancestral só servem quando são renovadas diante dos desafios do presente, não quando nos acorrentam nostalgicamente e autoritariamente ao passado. Os princípios de nossas raízes, como tecer-nos à vida e reconstruir o equilíbrio e a harmonia, são válidos apenas enquanto nos ajudam a reconhecer e jogar fora as máscaras e correntes. Ser indígena, original, da terra, é ser futuro, liberdade, proposta, desde as raízes, em direção à liberdade em harmonia. (Tejido de Comunicación, 2012)


 

Ensaio fotográfico - um esboço dos bem viveres de Pioyá, Cauca - Colômbia 

Edwin Andrés Rodríguez Pipicano
Ángela María Muñoz Gutiérrez
Jorge Mauricio Escobar Sarria

Grupo de Pesquisa e de Comunicação e Cambio Social, Universidad Autónoma de Occidente, Cali

Assim como os bons vivires propõem maneiras de conseguir uma vida em harmonia, também aninham em si mesmos a identidade, autonomia e força dos povos indígenas da América Latina; e é aqui que vale a pena observar a realidade vivida da comunidade indígena Nasa de Pioyá, no estado do Cauca na Colômbia. O auto-reconhecimento como estratégia de resistência é um ato político e coletivo que homens e mulheres indígenas dessa comunidade praticam como parte integrante de seu modo de vida: no seu sentir, em seu pensamento e em suas ações.

Seu identidade permite que construam e criem memórias para resistir às forças do esquecimento, enquanto no presente seguem um caminho baseado nas pegadas que esse processo consciente de devir passa para eles. Sua autonomia os torna proprietários de sua própria ordem, sua cosmovisão e seus planos de vida, e os torna conscientes de seu território e de sua organização social. Sua força lhes permite sobreviver e imaginar, mas principalmente descolonizar, descivilizar e coletivizar para a vida comunitária e contra sistemas opressivos, ‘modernos’ e ‘capitalistas’ que minam até exterminar os recursos naturais, humanos e sociais.

As fotos deste ensaio visualizam práticas comunitárias, tradicionais e/ou de resistencia. Elas foram tomadas no contexto de um convite formulado pelas autoridades ancestrais da comunidade para uma delegação internacional de mulheres indígenas Pankararu (Brasil) e Q'eqchi (Guatelmala), juntamente com colegas da Universidad Autónoma del Occidente, Cali, da Universidade Federal de São Paulo e da Universidade de Leeds. A visita aconteceu em outubro de 2018.


 

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Vilma Rocío Almendra Quiguanás | Colômbia |

Filha dos povos Nasa e Misak do Cauca, Vilma se envolveu no processo de comunicação indígena como membro do Tejido de Comunicación (Tecido de comuniçacão) da Associacão dos Cosnselhos Indígenas do Norte do Cauca (ACIN) no final da década de 1990. Atualmente integra Pueblos en Camino

vilmaalmendra@yahoo.es

Emmanuel Rozental-Klinger | Colômbia |

Cirurgião, autor e ativista em movimentos indígenas e populares do continente. Fundador do Tejido de Comunicación da Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca (ACIN). Fundador e participante da iniciativa Pueblos en Camino, tecendo resistências e autonomias entre povos e processos.

em_rozental@yahoo.com

Jorge Mauricio Escobar Sarria | Colômbia |

Professor e pesquisador do Departamento de Ciências da Comunicação (Programa de Comunicação Social - Jornalismo) da Universidad Autónoma del Occidente (Cali), e membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Mudança Social

jescobar@uao.edu.co

Edwin Andrés Rodríguez Pipicano | Colômbia |

Estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Comunicação e Ciências Sociais da Universidad Autónoma del Occidente (Cali), e fotojornalista em formação

Ángela María Muñoz Gutiérrez | Colômbia |

Comunicadora social e jornalista, atualmente Jovem Pesquisadora na Faculdade de Comunicação e Ciências Sociais da Universidad Autónoma del Occidente (Cali).

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