Mulheres em outras moradias
Lógica institucional versus benefícios inesperados das situações de moradia "atípicas"
Luna Lyra
Silke Kapp
Grupo MOM
| Brasil |
julho de 2019
Uma pergunta e um caminho
Como mulheres lidam com o trabalho de reprodução em situações de moradia instável, temporária, provisória? Esta foi a pergunta definida coletivamente pelas autoras deste texto em uma pesquisa que visa ampliar o conhecimento acerca das lutas sócio-espaciais na perspectiva feminista e, ao mesmo tempo, repensar criticamente algumas práticas de pesquisa em arquitetura, urbanismo e planejamento.1 Concepção, pesquisa empírica, análises e discussões que resultaram no presente texto foram realizadas no âmbito uma disciplina optativa do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais intitulada Mulheres em luta pelo território: reflexões sobre métodos de pesquisa. A coleta de dados foi realizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte no primeiro semestre de 2019. Apesar dos avanços das últimas décadas, essas áreas ainda se fundam em paradigmas de traços machistas, elitistas e racistas, em que os problemas das mulheres são secundários ou invisíveis, resultando em políticas públicas que privilegiam o provimento de "elementos infraestruturais e institucionais [...] em detrimento da infraestrutura urbana voltada para a reprodução social"(Costa e Magalhães, 2011, p. 11). Persiste o pressuposto tácito, sedimentado na história das sociedades capitalistas (cf. Federici, 2017), de que as mulheres darão conta de manter a vida doméstica funcionando, sejam quais forem as condições. Se os expedientes necessários para isso são "trabalho de sombra" (Illich, 1981), fora dos radares do campo do poder, o que dizer da domesticidade sem domus?
Procuramos aprofundar a compreensão das implicações desse cenário para as mulheres, explorando a entrevista como método de coleta de dados. Entrevistas possibilitam decifrar, mediante uma "escuta em dois canais" (Anderson e Jack, 1991), as experiências subjetivas e coletivas que, nas próprias falas das mulheres, costumam aparecer apenas entremeadas e subordinadas aos discursos dominantes. Esperávamos alcançar aspectos que os métodos usuais de coletas de dados em diagnósticos e de planos urbanos (observação direta, questionários, estatísticas etc.) negligenciam ou ignoram, e que também não se revelam em procedimentos ingênuos de entrevista, isto é, emulações de formatos consolidados sem uma reflexão contundente de objetivos, possibilidades e limitações. A pesquisa foi então estruturada em quatro momentos: definição da referida pergunta de pesquisa; elaboração de procedimentos de entrevista que possibilitassem obter ou construir dados relevantes a tal pergunta; realização e transcrição das entrevistas; e análise e discussão dos dados.
As entrevistas foram conduzidas, via de regra, por uma dupla de pesquisadoras e na forma de entrevista guiada (não semi-estruturada; cf. McIntosh e Morse, 2015), explorando um conjunto de tópicos a partir dos contextos e das falas. Demos ênfase ao caráter narrativo (cf. Schütze, 1983; Elliot 2005), não apenas porque a contação de histórias favorece aquela escuta em dois canais, com expressões que dificilmente surgiriam em respostas a perguntas diretas, mas também porque histórias sempre se passam em algum espaço (físico e social) e levam como que naturalmente à menção das percepções e representações a ele relacionadas. Além disso, procuramos manter um foco: as implicações de uma circunstância específica num determinado momento ou período, não toda a história de vida de cada entrevistada. Para a seleção das entrevistadas, recorremos a contatos anteriores em situações de provisoriedade, como desalojamento forçado, ocupações urbanas em edifícios do centro da cidade ou em terrenos na periferia, abrigos para mulheres em situação de violência doméstica, favelas não consolidadas, aluguel social, migrações em busca de trabalho e atendimento médico. Um requisito fundamental foi que as entrevistadas vivessem ou tivessem vivido a experiência de instabilidade de moradia com dependentes, isto é, filhos ou outras pessoas sob seus cuidados.
Cada entrevista foi transcrita e então analisada por duas pesquisadoras diversas daquelas que participaram de sua realização. O compartilhamento das perspectivas que emergiram dessas primeiras análises nos levou a elencar três temas recorrentes, que denominamos contrastes espaciais, responsabilidades maternas e relações com macroestruturas. Eles certamente não esgotam as experiências que nos foram narradas, mas circunscrevem alguns de seus aspectos mais relevantes. A partir deles, analisamos mais uma vez cada uma das entrevistas, procurando construir hipóteses que poderão servir à continuidade da investigação. O material produzido muitas vezes nos surpreendeu, contrariando expectativas e pressupostos até então irrefletidos. Os itens seguintes apresentam os três temas e um breve balanço, sempre tendo em vista a pergunta de pesquisa: Como mulheres com dependentes e em situações de moradia provisória, temporária ou instável dão conta das estruturas e tarefas do trabalho de reprodução? Cabe antecipar que a própria pergunta nos pareceu limitada ao final desse processo. Em vários casos, a situação de provisoriedade representou, em vez de uma corrida desesperada atrás das incumbências convencionais, uma mudança radical quanto à submissão feminina em espaços privados, coletivos e públicos.
Contrastes espaciais
Situações e relações sócio-espaciais são temas que pessoas 'leigas' não costumam analisar espontaneamente, de modo que perguntas diretas a esse respeito resultam quase sempre em respostas pobres, repletas de chavões. Por isso, tentamos compreender configurações e apropriações dos espaços pela maneira como apareceriam nas narrativas das entrevistadas acerca de seu cotidiano e sua trajetória. Em muitos casos, eram apresentados por contrastes, tanto entre espaços urbanos como entre os espaços domésticos estáveis – passados ou futuros, reais ou imaginados – e os instáveis das situações de provisoriedade. Algumas vezes, o polo da instabilidade correspondeu à representação negativa e o polo da estabilidade, à positiva. Mas também houve representações ambíguas e até opostas, isto é, falas que desmontaram enfaticamente a associação de casa própria, família e felicidade, e se referiam à situação provisória como a mais aberta, livre e potente.
As trajetórias narradas por T. e R., bem parecidas, pertencem a esse último grupo: vítimas de violência doméstica, essas mulheres deixaram moradias de padrão relativamente alto de conforto e consumo, passaram por delegacias e abrigos, ficaram alguns meses numa casa de apoio a mulheres, até chegarem a uma ocupação urbana no centro da cidade. Ambas contrapõem a moradia convencional, onde foram agredidas e abusadas, à ocupação, que é mais precária, mas representa um lugar de "segurança, apoio, fortalecimento" (R.). A casa antiga "era um lar todo certinho, tudo bonitinho e planejado, mas você não encontra paz" (T.).
Chegando [na ocupação], eu me empoderei. E depois disso, eu aprendi a conviver com as pessoas no coletivo, que era uma coisa que eu não tinha costume. Porque a gente é, na casa da gente, muito individualista. [...] Eu aprendi a dividir [...] dividir o espaço, dividir o alimento, dividir a roupa, inclusive.
(R.)observa que mudou visões racistas, classistas e sócio-espaciais que tinha – "Eu julgava as pessoas que adentravam numa favela [...] percebi na ocupação que isso era puro preconceito". Hoje ela questiona o ideário da família nuclear e diz que, quando resolver a divisão de bens com o ex-marido, pretende vender sua antiga casa e doar o dinheiro para a ocupação.
É, mudei muito. Porque a gente é livre. Eu faço o que eu quero, na hora que eu quero [...] Aquela visão da maioria das pessoas que ficam trancadas num lar e que considera um lar todo certinho, pra mim não é mais [...] Eu não quero retornar pra minha casa nunca mais. Eu pretendo continuar por aqui, não quero sair.
Já T. encontrou um novo companheiro e se mudou com os filhos para sua casa, mas a passagem por uma moradia mas a passagem por uma moradia coletiva a fortaleceu no estabelecimento de relações domésticas bem mais igualitárias do que antes.
D. foi desalojada quando, depois dos desastres de Mariana e Brumadinho, a mineradora Vale decidiu evacuar a região do vilarejo de Macacos por risco de outro rompimento de barragem. Quando a sirene tocou de madrugada, ela e o marido largaram tudo o que tinham: objetos pessoais, móveis, casa, quintal, horta, pomar, o restaurante que era seu sustento, o berço que o padrinho havia confeccionado, e uma rede de vizinhos, amigos e serviços de confiança. Desde então, foram instalados num hotel de executivos na área nobre de Belo Horizonte, com a mãe de D., o bebê e dois cachorros. Antes, D. passava o dia no restaurante, "ali na beirada da rua, olhando o povo passar, [...] conversando com o pessoal, e trabalhando, atendendo as pessoas". Agora, ela diz que se sente aprisionada e "muito sozinha, como se eu tivesse numa bolha à parte"; "ficamos sem renda, vivendo só aqui do hotel mesmo – comer aqui, beber aqui". D. tem procurado recriar o que ela chama de "meu mini-mundo, igual eu tinha lá em Macacos". Fez amizade com os funcionários do hotel, vai à praça com o bebê, tenta não morrer de tédio. Mas ela perdeu a possibilidade de decidir e agir no próprio espaço, que se manifestava em coisas como usar o ateliê do quintal, que construiu "com as próprias mãos", colher mexericas no pomar ou chamar os amigos para uma fogueira. Também apropriações simbólicas, rastros e memórias não cabem no espaço estéril do hotel ou no seu contexto urbano, todo pré-determinado. Se a situação de D. parece, em princípio, confirmar a valoração positiva da estabilidade (a casa) contra a valoração negativa da provisoriedade (o hotel), ela também pode ser interpretada no sentido oposto: a antiga casa era um espaço aberto a transformações (menos estável nesse sentido), enquanto o hotel é engessado e imune a ações dos hóspedes (mais estável, portanto).
Também o relato de Dona C., uma senhora de mais de oitenta anos que migrou do meio rural para Belo Horizonte na década de 1960, é significativo como contraponto entre o que ela pensa e sente e o que técnicos e órgãos públicos consideram adequado. Dona C. e seus filhos moraram em vários assentamentos informais, foram removidos por enchentes e obras públicas, até que ela conseguiu uma casa numa vila, "parede e meia" com uma amiga. Mas a situação era provisória, pelo menos do ponto de vista da política urbana; tanto que Dona C. foi obrigada a deixar a casa e ir para um apartamento numa área próxima: "tem treze anos que eu moro aqui e nunca gostei de apartamento não. Lá eu tinha minhas plantas e aqui não tem jeito de fazer planta". O tipo de convívio e os arranjos cotidianos que eram possíveis nos espaços da vila estão interditados nos "predinhos", embora estes substituam moradias supostamente precárias por outras, ditas dignas.
Para além das moradias em si, os contrastes de estrutura urbana foram mencionados de maneira mais ambígua do que supúnhamos. Entrevistadas que vieram da periferia para o centro ou vice-versa viram diferentes vantagens numa e noutra situação. O centro facilita o acesso a trabalho, escolas e serviços, ao mesmo tempo que restringe a relação entre vida doméstica e espaço público: "Eu não sou camelô, eu não quero ficar no centro. Vou ficar no centro fazendo o quê? Ficar presa dentro de casa, com esse barulho de ônibus na minha cabeça? Não! [...] Tem bairro também que você nem precisa ir no centro, porque o bairro já é um centro, né?" (G.). Outra entrevistada (A.) resolveu a questão desdobrando sua moradia: durante a semana fica numa ocupação vertical do centro e, nos finais de semana, numa ocupação horizontal da periferia.
P., uma mulher de classe média que em poucos anos se mudou diversas vezes entre uma capital européia e Belo Horizonte, fala do contraste entre formas de viver e organizar a rotina nos respectivos contextos. Isso se refere, por um lado, à infraestrutura urbana para a reprodução social, que era bem melhor na Europa. Por outro lado, P. deixa entrever o contraste entre um meio em que se sentiu inferiorizada e discriminada, e um meio em que tem certo privilégio social. Na Europa conseguia resolver as incumbências rotineiras perto de casa, a pé ou com transporte público, mas tinha que assumir tudo sozinha: "babá e empregada não existe [...] a vida fica presa muito pelos horários das crianças". Em Belo Horizonte sua rotina está menos rígida, mas depende a todo momento da ajuda de outras mulheres (incluindo aquelas que a desigualdade social torna disponíveis e que, aqui, são efetivamente inferiorizadas e discriminadas). Nenhuma das duas situações lhe parece ideal. Ela pensa em ficar no Brasil, mas morar numa cidade menor.
Responsabilidades maternas
Na família nuclear que historicamente constituiu a célula estruturante da sociedade burguesa, cada mãe carrega, quase sempre sozinha, a responsabilidade por aquilo que os filhos se tornarão e por toda a energia e paciência que isso implica. Suas possibilidades de formação, trabalho, engajamento político ou lazer se restringem na mesma medida. "Quando você tem filho, você tem que priorizar. Ou pensa em você, ou pensa nos seus filhos" (R.). Nas experiências de moradia temporária das entrevistadas, essas rotinas de cuidado, sua lógica e seus pressupostos foram alterados – às vezes drasticamente e nem sempre para pior.
A responsabilidade individual do cuidado marca a narrativa de P., que vem se esforçando em suavizar a transição de moradias para as filhas. Nas mudanças entre Europa e Brasil, levava os pertences das crianças e deixava os seus para trás: "com esse tanto de mudar, ir pra um lado e ir pro outro, eu fiquei muito menos apegada nas coisas, eu não guardo coisa mais, vou guardar por quê?". Ela tenta reproduzir aqui os espaços domésticos e a rotina urbana a que a filhas estavam acostumadas, "imitar um pouco as condições" do exterior.
Várias entrevistadas assumiram as situações de moradia provisória com o único objetivo de melhorar a vida dos filhos. Dona C., que migrou para Belo Horizonte em busca de tratamento médico para uma filha, é o exemplo mais extremo nesse sentido. Dos dezesseis filhos que teve, apenas quatro estão vivos: "morreu um bocado lá na roça e, depois que eu tô aqui, morreu também quatro aqui". Ao mesmo tempo que Dona C. indica que cuidar dos filhos seria uma obrigação intransferível da mãe ("Graças a Deus que eu nunca deixei menino nas costas de ninguém pra poder olhar"), ela parece não ver a maternidade e seus sofrimentos como destino compulsório: "Agora [...] todo mundo abriu os olhos pra esse negócio de remédio de evitar filho". Fato é que, para ela, cuidar de crianças foi a única forma de viabilizar a subsistência.
Eu não tinha serviço e não tinha costume de trabalhar, e era muito menino miúdo. E aí eu peguei a olhar menino pros outros, pra ganhar um troquinho. [...] Minha casa ficava assim [faz um gesto indicando que a casa ficava cheia de crianças]. Do dinheiro que eu olhava eles dava pra eu comer e eu pagava o INSS. Aí, agora eu aposentei com esse dinheiro do INSS que eu paguei. (Dona C.)
G. foi para uma ocupação porque, depois que largou o emprego para cuidar de um filho com epilepsia, não conseguiu mais pagar o aluguel: "se não fosse meu filho, eu também não ficava não". Sem outra fonte de renda, ela acabou assumindo a frente da creche comunitária da ocupação. Ela acha que “a maioria das mães lá [na ocupação] gostava de ficar longe dos filhos. Não queria saber o que o menino estava fazendo não. No começo, até os meninos que estudavam na escola era eu que levava.”
Como indica essa última fala, nem todas as mulheres em situações de moradia e organização sócio-espacial atípicas se aferram ao papel feminino tradicional. Já mencionamos os casos de R. e T., que na ocupação (que, diga-se, não é a mesma de G.), experimentaram um compartilhamento de tarefas e responsabilidades que antes nem sequer imaginavam. A ajuda mútua possibilitou atividades que seriam inviáveis na situação convencional, como estudar e trabalhar fora com certa flexibilidade de horários.
Não existe 'eu' aqui, não existe meu vizinho, existe nós. Então, é uma segurança muito grande. Eu saio pra trabalhar tranquila, deixo ele [o filho de três anos] na escola e eles [aponta dois vizinhos, homens, que estão lavando roupa perto do local da entrevista] buscam pra mim. E aqui ele pode ficar em qualquer lugar e ele está seguro. Qualquer família aqui dentro, se pegar ele descendo a escada, cuida. Então, tem uma pessoa específica, mas não precisa ter só essa pessoa específica, porque onde ele ficar, ele está bem cuidado. [...] Você encontra apoio pra te ajudar em relação aos seus filhos. (R.)
Nesse caso, o cuidado com os filhos deixou de ser visto como uma tarefa materna e individual, e as mulheres abriram mais espaço para sua vida pessoal e pública, incluindo o engajamento político. K. passou por uma ocupação no centro que foi removida e hoje mora de aluguel num bairro mais distante do centro. Mas o processo da ocupação, onde assumiu papel de liderança, a fez descobrir uma vocação política maior do que a vocação para cuidar de crianças. Da mulher que coordenou a creche comunitária, K. diz, "tiro o chapéu, porque menino não é comigo". Hoje ela continua ativa em movimentos por moradia e, para assumir tais compromissos sem levar os filhos, fez um arranjo com uma vizinha. Para A., outra entrevistada muito engajada nos movimentos por moradia, os finais de semana na periferia se tornaram um tempo de descanso das incumbências de mãe. Sem constrangimento, ela conta que vai para a ocupação da periferia enquanto "eles [os filhos] ficam aqui [...] eles não gostam de lá não [...] ia ter uma briga pra ir embora".
Relações com macroestruturas
Macroestruturas e instituições – tais como prefeituras, serviços públicos, polícia, ministério público, a empresa de mineração, igrejas, organizações não-governamentais e movimentos sociais – determinam a vida das mulheres entrevistadas de modos muito diversos. Como era de se esperar, todas elas dependem da proximidade de serviços de saúde e de escolas, e orientam suas decisões territoriais pelo acesso a eles (Dona C. foi morar próximo a um grande hospital quando veio do campo em busca de tratamento para a filha; G. alugou casa num bairro em que os filhos podem ir sozinhos à escola; P. matriculou as filhas numa escola a que pudesse chegar a pé, etc.). Mas macroestruturas e instituições também são causadoras de despejos e situações de provisoriedade, assim como instâncias de apoio mais ou menos eficazes em momentos críticos. Evidente nas narrativas foi que tais estruturas muitas vezes passam ao largo daquilo que as mulheres consideram suas necessidades mais prementes, ao mesmo tempo que atribuições e hierarquias institucionais nebulosas para elas dificultam questionamentos nesse sentido. Muitas entrevistadas usam a palavra eles para designar instâncias de poder (públicas ou não) que não identificam com clareza, mas que as afetam. Dada a assimetria de forças, contornar taticamente os problemas do cotidiano lhes parece preferível a confrontar tais instâncias.
A discrepância entre a lógica institucional e as demandas das mulheres é drástica no caso de D. Talvez a companhia Vale tenha instalado a família num quarto de hotel no centro de Belo Horizonte com a convicção de que, comparada à casa num vilarejo, essa seria uma condição favorável ou até luxuosa. Na verdade, foi uma perda total de autonomia e identidade. Tudo passou a depender das benesses da empresa, que paga a hospedagem, mas não restitui a renda do casal ("se quiser ir na esquina comprar um absorvente, não tem como") nem oferece meios para que se estabeleçam em outro lugar. Mais absurdo é que, agora, a Vale quer que voltem para a antiga casa, pois um laudo técnico atestou que, se a barragem romper, a lama 'apenas' deixará a casa ilhada, sem cobri-la. Evidentemente, D. não quer correr esse risco, mas tampouco consegue imaginar um enfrentamento ou uma alternativa.
A gente ainda fica tentando se sentir grato, porque tá vivo, tá junto, tá abrigado, entendeu? [A gente] não sabe por quanto tempo, não sabe se a Vale vai tentar... Tá uma briga danada com o Ministério Público. Toda hora tem que intervir, porque eles ficam tentando tirar da gente algum benefício... 'Benefício' – eu nem sei se é isso, porque a gente fica se sentindo tão mendigo, sabe? Eu não tô pedindo nada a mais do que eu tinha na minha casa. Vivo aqui de comer, tomo café, almoço e janto no hotel, durmo, tomo banho, e não faço mais nada. A vida parece que fica em suspenso durante um tempo. Você não sabe muito bem o que planejar. (D.)
A longa história de Dona C. é repleta de violências dessa espécie. Ela passou por diversos episódios de remoção e nunca teve condições de protestar. São nítidos nas suas falas aqueles dois canais, um do discurso convencional e outro da experiência subjetiva contrária a esse discurso. Acatou uma remoção com a justificativa do risco de enchente, para depois retornar a outra casa na mesma vila: "eles quiseram me tirar desse local lá, eu não queria sair, porque eu estava terminando [de construir] os cômodos [do segundo andar]". Ela conta, sem nenhuma exaltação, que quando a cheia do rio inundava sua casa "passava a mão naquela meninada tudo debaixo de chuva e ia lá pra pracinha, inté a água baixar [...] demorava não". Depois, ela fala da canalização do rio pela prefeitura:
Eles deram um jeito nesse rio, e o rio secou também. Aqui assim, no rumo dessa árvore desse quintal, aqui tinha um poço d'água. Era cheio de peixe, era um poção. Daí secou tudo depois que eles arrumaram o rio. A água daqui secou também, acabou, acabou. E isso aqui foi todo tirado. Na época, eles tiraram as casas. Aqui era um favelão. Tirou eu, tirou tudo. (C.)
Expressões como dar um jeito no rio ou arrumar o rio ecoam o desastroso paradigma técnico adotado na maioria das cidades brasileiras para lidar com as águas urbanas (drenar, canalizar e fazer correr), ao mesmo tempo que a lembrança do poção cheio de peixes e frases como "acabou, acabou" e "tirou eu, tirou tudo", ditas em tom de lamento, indicam o oposto.
Relações não propriamente violentas, mas ainda assim dissonantes entre instituições e experiências subjetivas, aparecem na narrativa de R.A delegacia da mulhe,r onde procurou ajuda para se proteger do marido agressor, ofereceu-lhe uma moradia para viver com os três filhos, onde seria obrigada a ficar em casa o tempo todo e abandonar o emprego e a graduação que cursava à época.
Enquanto o agressor deveria ficar preso, quem fica presa é a vítima. [...] Quando você busca um lugar para te proteger, você não pensa que vai ficar lá, trancada. Você não quer esse tipo de proteção. Você quer proteção, mas uma proteção que dê liberdade de escolha, que você possa ir e vir. (R.)
Como, paradoxalmente, a instituição pública criada para apoiar mulheres em situação de violência não oferecia escolhas nem condições para ela manter estudos e emprego, R. acabou indo para uma casa sustentada por um movimento de mulheres (e não pelo Estado que, aliás, mais tem ameaçado do que auxiliado essa casa). Lá encontrou o tipo de proteção que procurava: uma bem articulada estrutura de ajuda mútua e encorajamento, que lhe permitiu prosseguir em atividades não domésticas e que depois estabeleceu o contato com a ocupação onde R. mora atualmente.
Contudo, também as ocupações não estão isentas de hierarquias e disputas de poder. Os movimentos sociais que as organizam são vistos como "as forças que estão ali para ter sua voz e colocar regras, porque é necessário" (K.), criando uma dependência dos moradores em relação às lideranças internas e externas. Na ocupação de que K. e G. participaram, houve também conflitos entre os diferentes movimentos envolvidos: "cada movimento tinha seu jeito, tinha suas regras. [...] A coisa começou a sair da linha quando essas forças passaram a ter objetivos diferente, ou querer ser mais que o outro" (K.). Os "objetivos diferentes" dizem respeito sobretudo a negociações com órgãos públicos, que oscilam entre paliativos (como o aluguel social), promessas e agressões mais ou menos diretas. Uma negociação genuína pressuporia relativo equilíbrio de forças entre as partes, o que não ocorre nesses casos, salvo quando há massivo apoio popular. Ambas, G. e K., relatam a brutalidade dos técnicos da Cohab para acordar a saída do edifício quando a ocupação foi removida. Perderam muitos móveis porque não houve tempo para fazer a mudança de todas as famílias com o único carro que conseguiram disponibilizar.
A Cohab falou assim: 'Não, vocês não vão poder ficar no prédio. [...] Querem um acordo, não querem? Então nós vamos dar um mês pra vocês saírem de lá. Depois que vocês saírem, a gente deposita o dinheiro do aluguel. Se passar do dia, perdem o acordo e vão ter que sair do prédio à base de porrada'. (G.)
Tinha uma negociação, não tinha a necessidade de fazer [ameaça], sabe? Daquele jeito, como se a gente tivesse sido despejado... numa pressão, num caos total. Foi muito triste ver. Pra mim, eu vi a luta acabar ali. (K.)
Ainda assim, K. diz que a experiência na ocupação a fez ver que poderia, sim, enfrentar estruturas instituídas.
Ela [a ocupação] trouxe pra mim um pouco de conhecimento dos meus direitos, dos direitos do próximo. E me fez ver que nós, quando nós nos unimos para lutar pelos nossos diretos, a gente consegue. [...] Também eu me ponderei da necessidade de sair às ruas e mobilizações, não ficar ali só apoiando no sofá. (K.)
Breve balanço
As lutas de mulheres no e pelo território, sejam concernentes à moradia ou a outros espaços, constituem temas mais amplos e complexos do que refletem as políticas urbanas em curso. Medidas como a titulação preferencial de mulheres nos programas habitacionais podem favorecê-las, mas não deixam de reforçar velhas convicções acerca da unidade doméstica e do respectivo papel feminino. A pesquisa aqui relatada, com todas as suas limitações, oferece algumas pistas concretas nesse sentido. Em primeiro lugar, ela indica que a moradia unifamiliar, isolada de contatos públicos e fontes de renda, com poucas possibilidades de compartilhamento, solidarização e politização, está longe de ser um desejo universal entre mulheres reais (à diferença das mulheres abstratamente supostas por planejadores e projetistas). Situações atípicas por vezes significam experiências de liberdade e potencializam a imaginação para ação.
Em segundo lugar, os dados que obtivemos indicam que o ideal da maternidade é ambíguo. As mulheres se sentem responsáveis pelos filhos, cujo bem-estar lhes importa mais do quea qualidade do espaço da moradia, mas, ainda assim, os filhos não são sempre e necessariamente sua prioridade absoluta. Para além da constatação – nada nova – de que a família nuclear de casal e filhos deixou de ser a forma predominante de coabitação, isso sugere pesquisar em profundidade formas hoje tidas por atípicas ou até 'indignas' de moradia, isto é, compreender, fomentar e experimentar alternativas como moradias coletivas, com gradações diversas de privacidade, intergeracionais, conectadas de diferentes maneiras a atividades de produção e renda, e inseridas de diversas formas em áreas urbanas, rurais e rururbanas.
Um terceiro aspecto a destacar a partir da análise das entrevistas diz respeito ao apoio institucional oferecido a mulheres em circunstâncias de instabilidade. Da forma como é hoje, esse apoio consiste na inserção numa estrutura determinada, rígida, que supre as chamadas necessidades básicas, mas restringe a autonomia e, consequentemente, a reconstrução da própria vida, seja essa estrutura um hotel, um apartamento padrão ou um abrigo onde não se pode ir e vir. A fala de R. sintetiza a questão: "Você quer proteção, mas uma proteção que dê liberdade de escolha".
Finalmente, cabe uma observação acerca da nossa pergunta de pesquisa. Ao indagar como mulheres lidam com o trabalho de reprodução em situações de moradia instável, tínhamos consciência de que a responsabilidade das mulheres por esse trabalho não é um fato 'natural', mas uma construção social. No entanto, partimos do pressuposto de que seria mais difícil dar conta do trabalho de reprodução (convencional) sem uma moradia (convencional). Não questionamos de saída a noção de que a unidade habitacional unifamiliar favorece o cumprimento das tarefas e obrigações que nossa sociedade, tal como ela é, atribui às mulheres. Isso foi desmentido pelos dados que obtivemos nas entrevistas. Por mais que as entrevistadas possam ter eufemizado – para si e para os outros – as precariedades de suas situações, é inegável que em vários casos a instabilidade aliviou o peso do trabalho de reprodução em vez de aumentá-lo. Caberia perguntar em que medida o ideário da moradia, objetiva e subjetivamente determinante de tantos espaços e desejos, é contraditório em si mesmo.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento das pesquisas que deram origem a este trabalho.
Bibliografia
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Grupo MOM | Brasil |
O Grupo MOM (Morar de Outras Maneiras) é um grupo de pesquisa do CNPq, criado em 2004, sediado pela Escola de Arquitetura da UFMG. Objetivo central do MOM é investigar processos de produção de moradias, do seu ambiente urbano e de outros espaços cotidianos, tendo por horizonte a autonomia individual e coletiva de moradoras e moradores, construtoras e construtores, a economia social e processos de impacto ambiental controlado. As pesquisas são destinadas sobretudo a pessoas que, hoje, ou produzem moradias informalmente, com a escassez de recursos financeiros, técnicos e jurídicos nisso implicada, ou se submetem a empreendimentos formais nos quais têm pouco poder de decisão.