Alvorada do amanhã
Ishmael Beah
| Serra Leoa |
junho de 2023
traduzido por Sandra Tamele
trecho traduzido de Radiance of Tomorrow, A novel
(Farrar Straus & Giroux, 2014)
*
É o fim, ou talvez o princípio, de outra estória.
Toda estória começa e acaba com uma mulher, uma mãe,
uma avó, uma menina, uma criança.
Toda a estória é um nascimento…
Ela foi a primeira a chegar onde parecia que o vento já não exalava. Há vários quilômetros da vila, as árvores entrelaçavam as mãos. Os braços delas cresciam em direção ao chão, enterrando as folhas no solo cegando-lhes os olhos para que o sol não lhes prometesse o amanhã com os seus raios. Só o caminho estava relutante em encapar completamente a sua superfície com capins, apesar de prever terminar em breve a sua míngua do calor de pés descalços que lhe dava vida.
Falava-se dos caminhos longos e tortuosos como de “cobras” que se devem pisar para se encontrar a vida ou chegar a lugares onde a vida vivia. Tal como as cobras, os caminhos agora estavam prontos para trocar as peles velhas por novas e, tais ocorrências levam tempo com as necessárias interrupções. Hoje, os pés dela iniciaram uma dessas interrupções. Podia ser que aqueles cujos anos têm muitas estações são sempre os primeiros a reatar a amizade cortada com a terra, ou pode ter só acontecido desta forma.
A brisa acotovelou-lhe o corpo ossudo, coberto por um pano desfiado gasto e desbotado de muitas lavagens, na direcção da que tinha sido a vila dela. Ela tinha tirado os chinelos, posando-os na cabeça e, cuidadosamente pôs os pés descalços no caminho, despertando a poeira compacta com os seus passos leves. De olhos fechados ela conjurou o cheiro doce das flores que passariam a grãos de café, que o esporádico bafo de vento abanava para o ar. Era uma frescura que costumava transpor a floresta e abrir caminho até aos narizes dos visitantes há muitos quilômetros de distância. Para o viajante este cheiro era uma promessa de vida adiante, de um lugar para descansar e matar a sede e, talvez pedir orientações, se estivesse perdido. Mas hoje o aroma fê-la chorar, começando lentamente primeiro, com soluços que se transformaram num choro de passados. Um choro, quase uma canção, para fazer luto do que tinha sido perdido enquanto a memória recusa-se a partir e, um choro para celebrar o que tinha restado, não importa o quão pequeno, para infundi-lo os seus resíduos de conhecimento ancestral. Ela balançou ao som da própria melodia e o eco da sua voz primeiro encheu-a, fazendo-lhe o corpo estremecer, e a seguir encheu a floresta. Ela lamentou por quilômetros, arrancando os arbustos que a força lhe permitia e atirando-os para o lado nas bermas do caminho.
Por fim, ela chegou à vila silenciosa sem a saudação do canto dos galos, das vozes das crianças a brincar, do som de ferreiros a bater no ferro vermelho-quente para fazer uma alfaia, ou o subir do fumo das lareiras. Mesmo sem estes sinais de um tempo que parecia há muito ido, ela estava feliz por estar em casa e deu por si a correr para a casa dela, as pernas repentinamente a ganhar mais força para a idade dela.
A luz da fogueira pintava as sombras escuras de todos nas paredes das casas atrás deles. Os jovens não eram tão numerosos e, alguns estavam relutantemente sentados à volta da fogueira. Os mais afoitos eram a geração de Oumu e Thomas, que tinham ouvido os pais falarem de momentos como estes e, alguns excepcionais como Hawa e Maada que, apesar do que tinham passado, tinham uma alegria dentro deles atiçada ainda mais por uma tradição destas. Os outros poucos, que tinham chegado à vila sem pais e deambulavam por aí, ajudando aqui e ali para arranjar comida, estavam sentados sozinhos. Eles escutaram a estória com um ouvido focado no ajuntamento e outro de guarda.
Não importava quem estava presente nem porquê, a vila toda tinha de vir escutar uma estória da Mama Kadie e de quem mais se emocionasse para contar. Esta era a tradição — os anciãos, na maioria mulheres, contavam uma estória e os outros anciãos juntavam-se depois. Algumas noites continuava até mesmo as crianças serem chamadas a recontar as estórias que tinham escutado. Hoje, Mama Kadie estava de pé dentro do círculo e caminhava à volta da fogueira enquanto contava a estória, ajustando a lenha de quando em quando para avivar ou esmorecer a chama dependendo de se a lenda estava ao rubro ou não. Alguns rapazes sentados mais afastados gradualmente foram-se aproximando.
“Estória, estória, o que é que eu faço contigo?” gritou ela, o chamado para o contador começar e, a audiência respondeu, “Conta-nos, para podermos passá-la para os outros.” Ela repetiu algumas vezes até todos pedirem para lhes contar a estória.
“Havia um homem que sempre se queixava do seu estado e estava insatisfeito com todos os aspectos da sua vida, especialmente sobre o seu único par de calças, que tinham furos por toda a parte. Dava para ver partes das carnes dele pelas calças, então de longe parecia que ele tinha calças axadrezadas. Quando ele se aproximou, não dava para segurar o riso pelo embelezamento natural das calças dele. Em pouco tempo, todos os jovens de calças furadas referiam-se a elas como um novo estilo, "pele a pano".
“O alfaiate da vila claro que ficou descontente com isto e culpou o homem de calças furadas por estragar-lhe o negócio. Ninguém mais vinha remendá-las; o embelezamento natural tinha virado moda. O alfaiate seguia o homem a toda a parte, esperando pelo momento perfeito para roubar e desfazer-se das calças. No fim de uma tarde, depois de o homem voltar da sua machamba, ele decidiu banhar-se no rio. Ele despiu as calças e lavou-as com cuidado. A seguir estendeu-as no capim para secarem e entrou no rio. Ele submergiu-se na água para molhar-se bem. O alfaiate, que estava escondido no mato, decidiu que esta era a sua chance, mas quando estava a preparar-se para avançar para as calças, outro homem saiu do mato, pegou nas calças e desapareceu. Quando o homem saiu do rio, não podia acreditar que as calças dele tinham desaparecido. Ele gritou, "Se for alguma brincadeira de mau gosto dos deuses ou algum humano, não estou a achar piada." Esperou um bocado, mas não houve resposta. A seguir ele viu as pegadas do ladrão e começou a rir-se tanto que caiu na água e saiu a custo, ainda a rir-se, "Deve haver alguém que está pior do que eu e, se for assim, aproveita o que restou das minhas calças. Obrigado a Deus e aos deuses por não fazerem de mim o homem mais pobre de todos." Ele dançou no capim enquanto o alfaiate observava, ainda descontente porque sabia que o ladrão vestiria as calças. Ele queria que fossem desfeitas.
“Quando o homem foi caminho abaixo até a vila, o alfaiate levantou-se de onde se escondia. Ele queria lavar e refrescar-se. Despiu a roupa e mergulhou no rio. O homem nu ouviu o barulho da água e correu para trás, pensando que poderia ver quem tinha-lhe roubado. Não viu ninguém, só roupas novinhas em folha: umas calças e uma camisa. Ele olhou à volta, mas o alfaiate tinha mergulhado, a desfrutar da frescura das águas profundas — até a superfície do rio tinha acalmado. O homem dançou enquanto vestia a roupa nova, pensando o quão maravilhoso tinha sido aquele dia.
“Quando o alfaiate subiu para respirar, notou que não tinha nada para vestir. Foi uma coisa estranha de ver, um alfaiate a correr nu pela vila.”
O ajuntamento chorou de tanto rir. As crianças da geração de Oumu riram-se puramente e repetiram as saídas mais engraçadas umas para as outras. Os adultos riram-se ainda mais porque sabiam que a estória era verídica. O alfaiate estava entre eles e o homem das calças axadrezadas, também. Mas quem seria o ladrão das calças? Ninguém admitiu, uma vez que normalmente as coisas eram resolvidas em encontros destes. Depois de o riso abafar, os adultos e anciãos formaram o seu próprio círculo, deixando as crianças sozinhas para falarem sobre as estórias. Os adultos iniciaram uma conversa séria. Um silêncio pairava sobre eles, mas as crianças estavam a brincar, rir e bater palmas.
Se Deus podia estar em qualquer parte, ele ou ela estava aqui esta noite.
Ninguém podia prever que este seria o último destes encontros. Senão os anciãos teriam contado mais estórias se pudessem ver as mudanças que o vento traria com o tempo. Mas nestes princípios, era demasiado cedo para mais esperanças; as esperanças deles eram só mudanças incrementais e reintroduções de formas antigas. Não conseguiam pensar tão para o futuro.
Às vezes uma estória não faz sentido imediatamente — temos que escutar e guardá-la no nosso coração, no nosso sangue, até ao dia em que virá a ser útil.
Ishmael Beah | SERRA LEOA |
Depois de ter a família assassinada na guerra civil, Ishmael foi recrutado para guerra com apenas 13 anos. Com ajuda do UNICEF, regressou à vida social e estudou nos Estados Unidos. Sua autobiografia A long way gone: Memoirs of boy soldier (2007) foi best-seller internacional. É atualmente embaixador para o UNICEF. Seu terceiro livro, Little Family, foi publicado em 2020.