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A Garganta Poderosa

Das villas argentinas para o mundo

| Argentina |

julho de 2019

traduzido por Gabriele Roza e Andressa Oliveira

Somos um movimento revolucionário latino-americano, nascido das entranhas das vilas de Buenos Aires, na Argentina, há mais de 15 anos e que hoje articula 120 assembleias territoriais em 12 países da América Latina.

Por que La Poderosa? Pela importância que a palavra "poder" tem para todos os membros da organização, embora esteja carregada de uma conotação negativa por seu uso em benefício de interesses individuais, de forma autoritária e violenta por aqueles que fazem da política uma mera administração de interesses para concentrar  arrogância e riqueza, o verdadeiro "poder" para aqueles cuja principal urgência é comer é o encontro, a discussão e o fazer coletivo que transforma nossas vidas e a de toda a comunidade. Esse poder popular que reivindicamos vem desde nossa base, sem grandes transações monetárias ou cotações financeiras, construímos todos os dias em cada bairro onde nos organizamos, em cada minuto compartilhado com nossos vizinhos e vizinhas, cada conversa e em cada assembleia. Este verdadeiro poder não depende de milhões ou da publicidade em horário nobre na televisão aberta, por isso, cada vez que que nos unimos eles têm medo de nós porque não podem compreender, muito menos permitir que qualquer expressão de liberdade e dignidade nasça da imensa potência criativa da humanidade.

Mas não só deste poder que significa saúde para o povo que vem nosso nome, mas também daquela moto com a qual Ernesto Guevara e Alberto Granados partiram para visitar a América Latina, a fim de conhecer as diferentes realidades do povo. É por esse aprendizado internacionalista e pela migração que constitui nossa realidade que decidimos viajar pelas veias do continente para atender as necessidades além das fronteiras de nosso país.

Educação popular

A La Poderosa começou na Villa Zavaleta, localizada na Cidade de Buenos Aires, por meio de rodadas de futebol popular com um grupo de jovens que decidiram se unir para defender seus direitos e os direitos do bairro. Uma partida com regras próprias, adaptada às necessidades de quem o pratica. Desde o início, a identidade Poderosa era latino-americana, porque nessas rodadas antes e depois dos jogos de futebol mistos, havia jovens de diferentes origens, nascidos em outros países, ou filhos de migrantes. Nas vilas da Argentina existem diferentes culturas, vizinhos e vizinhos que vieram em busca de melhores condições de vida. Esses laços familiares, de amizade, entre aqueles que deixaram seus países, aqueles que ficaram para trás e aqueles que receberam os que partiram são a chave para que La Poderosa conquiste o poder em toda a América Latina. Depois de muitos anos de viagem, hoje são aqueles que começaram com o futebol popular anos antes, os que treinam os novos que estão somando. E aí reside a transformação e o empoderamento com as quais tentamos construir o poder que entendemos que é construído de baixo para cima e sempre com os pés no chão.

A partir deste ponto, surgiram cooperativas de trabalho, têxteis, carpintaria, serralharia, construção, gastronomia e design, entre outras. E também a Casas das Mulheres e Dissidências.

Nossas atividades, voltadas para crianças e jovens, estão orientadas para que eles percam o medo de falar, pensar e participar, além de incentivar e fortalecer sua escolaridade, acompanhando-os com oficinas de apoio escolar, recreativas, culturais e esportivas, servindo como espaços de apoio muito importante para eles, suas famílias e meio ambiente. Única propriedade do público e do bairro, o Futebol Popular avança para o desenvolvimento comunitário, somados do futebol, da arte, dos jovens e da luta. E assim, esse grupo de companheiros que se lançaram em sua utopia não parou de crescer em todo o continente.

Confrontados com a constante ausência do Estado e tentando lidar com a fome, em todos os bairros temos áreas para piquenique e cozinhas onde muitas famílias comem. Isso não nasceu de qualquer cor [ de partido ou bandeira] a favor da política tradicional, nem de qualquer patrocinador daqueles que apostam em bairros, como a televisão, para vender produtos. Foi gerado pelos vizinhos comprometidos com as necessidades e injustiças mais essenciais que não podemos mais suportar.

Não estamos contentes por ter mais salas de jantar, pois representa que as coisas se complicam diariamente, mas, temos de nos alimentar. Portanto, grupos de vizinhos colocam em seus ombros essa tarefa que beneficia em média 200 famílias em cada bairro.

Controle popular das forças de segurança

Um exemplo da luta contra os abusos diários das forças de segurança é a pequena praça "Kevin", localizada no coração da Villa Zavaleta. De dia, local de jogo para crianças. À noite, uma área liberada pelas Forças de Segurança, onde as gangues se reuniam para acertar as contas. Esta ação das Forças tirou a vida de Kevin, um menino de 9 anos, vítima de uma daquelas "balas perdidas" que sempre encontra seu caminho para nossos filhos. Neste caso, aquela bala foi um dos 105 disparos de armas de guerra registrados naquele dia, que duraram mais de quatro horas, após 9 chamadas para o número de emergência 911 sem obter outra resposta que não "nenhuma detonação é ouvida, a área está controlada."

Kevin ainda estaria vivo. Desesperados pelo abuso daqueles que deveriam cuidar de nós, decidimos criar o Controle Popular para as Forças   de Segurança, um dispositivo pensado, criado e executado pelos vizinhos que fazem parte da assembléia. A função deste dispositivo é garantir que todos os procedimentos realizados pelas Forças de Segurança sejam executados de acordo com a lei, para garantir, nada mais ou nada menos, que os direitos das pessoas que vivem lá sejam respeitados. Com o passar do tempo e vendo que essas situações foram replicadas em todos os territórios, decidimos que toda Assembléia da La Poderosa terá esse dispositivo para a proteção de nossos filhos e de nossos vizinhos. No início do ano de 2018, todas as assembléias da Argentina realizaram uma pesquisa de casos de repressão estatal. Em um mês, mais de mil casos que não chegam às delegacias de polícia ou promotores e, portanto, permanecem como se nada tivesse acontecido. O dispositivo é efetivo na vizinhança porque controla aqueles que teoricamente deveriam cuidar de nós, garante a redução da violência pelo Estado para nunca mais tenhamos notícias de uma criança morta por um bala paga com os nossos impostos, para não tenhamos mais invasões ou operações ilegais e, para o que acontece no bairro, não fique somente no bairro, permitindo a impunidade da todas as práticas ameaçadoras, as torturas, e a violência tanto física como verbal, exercidas cotidianamente pelas forças de segurança.Entre a comunidade organizada, o grito coerente e constante de todas as assembleias em defesa dos direitos das crianças, adolescentes e jovens, em 3 de outubro de 2017 La Poderosa chegou à ONU, Genebra, Suíça, para descrever perante o Comitê de Direitos da Criança, a escalada de violência e casos de testemunho de tortura nas mãos do Estado. Produto desta queixa que fizemos a ONU interpelou o Estado argentino para responder ao que expressamos.

Frente de gêneros

A violência do sistema de saúde nos desumaniza por sermos mulheres pobres, ainda mais se somos migrantes ou pertencemos ao coletivo LGTBIQ. O sistema de justiça cego e surdo ignora as mulheres vítimas de violência de gênero ou não chega aos setores empobrecidos. Mas, à violência institucional e econômica, soma-se a violência simbólica, produto da estigmatização dos meios massivos de comunicação para as mulheres de bairros humildes por serem mulheres e pobres, reforçadas pela discriminação cultural que nos perpetua à exclusão.

Ao abrir os olhos para essa realidade, começamos a nos perguntar como melhorar a qualidade de vida de nossos vizinhos. A resposta depois de horas de choro, riso e coragem foi a criação de uma Frente de Gênero que se encarrega de dar respostas exigindo que o Estado esteja presente por meio de políticas públicas eficazes. Dessa forma, a Frente de Gênero materializou a construção de várias Casas de Mulheres e as Dissidências, um espaço físico que reúne todas as atividades que a Frente realiza de forma autogestionada desde seu início. Este espaço de mulheres para mulheres é composta por 6 pilares: trabalho, educação popular, recreação, saúde, violência de gênero e diversidade.

A Garganta Poderosa

No dia 1º de janeiro de 2011, a revista cooperativa, braço literário da organização, saiu às ruas pela primeira vez. O nascimento da revista é consequência de mais de 7 anos de organização e mais de 500 anos de não ser ouvido. 

Historicamente, os bairros empobrecidos do mundo nunca falaram em primeira pessoa, mas os interlocutores que passavam, no melhor dos casos na calçada da frente, se encarregaram de transmitir o que nós, que vivemos lá todos os dias, pensamos e o que não pensamos, sem nos consultar. Essa fórmula, longe de favorecer a mudança de nossos bairros e as soluções para diversos problemas, nos levou a viver sob um manto de preconceito instaurado pelos meios de comunicação de massa.

Essas narrativas que sempre omitem valores como a solidariedade e a cultura do encontro, não só permanecem com a imagem errada que grande parte da sociedade cria sobre a realidade em que vivemos, mas também permite a implementação de intermináveis políticas públicas do Estado que não solucionam nossas necessidades, ao contrário agravam-nas, ou simplesmente servem como remendos temporários.

Cansados dessa situação, em assembleias, decidimos tomar a comunicação em nossas próprias mãos, para mostrar que nossos bairros não careciam de vozes, mas o que lhes faltava eram os meios para fazê-los ouvir. E, claro, não foi fácil! Decidimos fazer um meio de comunicação a partir de bairros empobrecidos, sem diretrizes oficiais ou publicidade, para que cada palavra representasse o que pensamos e o que sentimos sem qualquer compromisso que nos condiciona.

Quatro meses antes do lançamento da revista "Throw-No-Throw", cada assembléia poderosa elegeu dois comunicadores e começou a pagá-los pela capacitação com fundos gerados pelas próprias assembléias. Assim, a cooperativa garantiu ter um grupo de vizinhos e vizinhas no processo de aprendizagem e com melhores ferramentas técnicas para produzir o primeiro número.

O primeiro grito foi Juan Román Riquelme, ex-jogador do Boca Juniors e da seleção de futebol da Argentina, que no camarim saiu pedindo silêncio, percebendo que a partir daquele momento os villeros e villeras começaram a falar por si. Um cara como ele, simples, que não estava acostumado a dar entrevistas, aceitou ser o grito de abertura deste meio villero, e com a revista nas bancas de jornais e revistas em toda a Argentina, ultrapassamos 18 mil vendas. Longe de relaxar, fomos para o segundo número, mas com um compromisso maior: a partir daquele momento abrimos as cooperativas de vendas e distribuição La Garganta em todo o país. Desta forma, ao aumentarmos o número de vendas, geramos uma receita econômica garantindo a impressão da edição seguinte e o pagamento dos salários dos comunicadores. Continuamos arrecadando fundos com os quais imprimimos mais revistas gerando uma nova renda que permite, até hoje, levar adiante o sonho de muitos jovens de conhecer o mar no verão, fazemos acampamentos entre bairros de diferentes províncias, além de solucionar os materiais e ferramentas para espaços de educação popular, ou ter dinheiro para melhorar, através de jornadas de trabalho voluntário, os espaços públicos de cada bairro.

La Garganta Poderosa nasceu com a proposta de expor os paradigmas da moralidade impostas pelos dogmáticos e catedráticos das teorias de ouro que iluminam as condições socialmente determinadas e não socializam as teorias que determinam o condicionamento social. Esses ensaístas solenes dos ecossistemas villeros que nos investigam como fenómenos biológicos rupestres.

Toda a sociedade que em geral não conhece nada de nossos bairros. Nada é o pouco que mostram na televisão, nos jornais e nas rádios, que dominam as freqüências da comunicação de massa, que sempre falam de longe, quanto muito, de frente, mas nunca com os pés em nossos bairros, muito menos colocam um microfone, um fone de ouvido ou uma caneta para qualquer um dos nossos vizinhos que há mais de cinco décadas tem vindo testar e verificar todas essas receitas mastigadas fora de nossos territórios, onde as políticas que não funcionam são implementadas e não funcionarão porque omitem aqueles que deveriam ser os principais protagonistas, a comunidade a que se destinam.

La poderosa latinoamericana

Não foi um sucesso brilhante de um grupo de argentinos e argentinas iluminados, nem uma grande ideia exportada, muito menos uma receita aplicável a qualquer circunstância. A dignidade não conhece fronteiras e a reunião é uma condição necessária tanto para resolver o urgente como para montar um projeto de sociedade onde bairros, comunidades rurais e povos indígenas sejam protagonistas para que, de uma vez por todas, o destino esteja em nossas mãos. Desde a Terra do Fogo ao Rio Grande, não tivemos outra opção melhor: trabalho de base e organização.

Além da Argentina, onde a organização é mais desenvolvida, no Chile, Bolívia, Peru, Uruguai, Brasil, Paraguai, Equador, Colômbia, Venezuela, México e Cuba há assembleias poderosas, com referências territoriais que pensam no desenvolvimento de cada bairro e que estão progredindo progressivamente no programa de crescimento da organização por meio de: novas assembléias em diferentes bairros, cidades, províncias ou estados; produção de conteúdo para que a Garganta de cada país crie raízes como uma voz legítima em cada realidade com capacidade de desafiar os discursos dominantes; e a construção de laços de solidariedade com outras organizações.

Desde 2017, realizamos reuniões anuais que permitem a troca de experiências entre os vizinhos nos bairros mais humildes do continente, que de outra forma nunca conheceríamos. Através do trabalho coletivo, podemos fazer com que centenas de nossos vizinhos viagem e saibam que existem outros bairros onde os mesmos problemas também são experimentados. A falta de dinheiro nos faz apenas ouvir uns aos outros em alguns informativos amarelistas que sempre falam sobre nós da pior maneira, nós somos os feios, maus, preguiçosos e terroristas. O cerco da mídia imposto às nossas realidades configura uma grande dificuldade para que, mesmo sem poder viajar e nos ver cara a cara, saibamos que existimos, que não estamos sozinhos e que tanto os sonhos como as formas de nos organizar para alcançá-los nos unem.

Ano após ano, centenas de moradores de bairros, periferias, ocupações, favelas, aldeias, cidades, colônias e comunidades indígenas estão consolidando uma plataforma política de base que começou como uma moto na qual duas pessoas viajavam atravessando as veias abertas da nossa América, e hoje é um coletivo cheio de esperança e unidade.

Em julho do ano passado, esta reunião foi em Porto Alegre, devido à grave situação política em que o Brasil esteve envolvido desde o impeachment de Dilma Roussef, e a iminente perseguição que foi anunciada sobre Lula da Silva, o principal líder político do campo popular, e o único capaz de frear a direita por meio do processo eleitoral. A La Poderosa América Latina entendeu que todas as assembleias, de todos os países, devem fazer o máximo esforço para oferecer todo o apoio e solidariedade internacionalista ao povo brasileiro como um todo, quanto às suas organizações sociais. Às 9 da manhã de 27 de julho, uma caravana latino-americana de 30 ônibus de 12 países do continente reuniu-se em Porto Alegre, no II Fórum Latino-Americano de La Poderosa, denominado "Cúpula da Base".

 

La Poderosa Brasil

Vizinhos e vizinhos de diferentes cidades estão construindo este poderoso sonho em Foz do Iguaçu, Porto Alegre, São Paulo, Ceará e Salvador Bahia, no calor da educação popular, trabalho voluntário e cooperativo. Para entrar em contato, escreva para apoderosa.brasil@gmail.com.

La Garganta Poderosa

 

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