Resenha

periferias 3 | experiências alternativas

ilustração: Juliana Barbosa

Carolina Maria de Jesus, uma escritora presente

Revisitando vida e obra da escritora

Tom Farias

| Brasil |

julho de 2019

Refletir sobre a memória escrita da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) torna-se um exercício que nos impõe certo esforço e igual cuidado. Para alguém que minimamente não conhece ou nunca ouviu falar sobre a autora do livro Quarto de despejo – diário de uma favelada”, publicado em agosto de 1960, precisamos logo dizer que Carolina nasceu em Sacramento, uma pequena cidade no sul de Minas Gerais, originária de uma família de negros da última escravização de africanos e afrodescendentes trazidos à força ou nascidos no Brasil. Ela mesma denominava o avô, o alcunhado Sócrates Africano, como sendo “soldo da escravidão”, não só pelas suas características físico-mentais, conquanto pela sua adequação ao sistema que o impôs o conformismo de ser negro, pobre e analfabeto de pai e mãe.

Carolina Maria de Jesus tinha tudo para seguir este caminho traçado pela casa grande e pelos senhores donos de terras e do poder, resquício do ciclo bandeirante, do mandonismo gerido pela violência e pelo coronelismo rural galopante. Moldada no barro que originou toda a sua família, barro da cor de bitita – palavra originária do termo feminino “mbita”, da língua xichangana, falada em Moçambique, ou “bita”, em corruptela, que significa “panela de barro”, induzindo a pensar que, como atesta o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, o “diminutivo feminino singular desse termo gera a palavra “bitita”. Logo, “bitita” (apelido de infância da escritora) é, portanto, designativo de algo vindo do barro, cuja cor é ocre ou preta.

A ancestralidade escravizada e o destino forjado para a subserviência, ao contrário, deram cara e coragem para Carolina, desde os dois anos frequentados nos bancos escolares de um colégio calcado numa pedagogia espírita. Determinação e sonho além da medida levaram a menina pretinha a ir além de todo imaginário, pensado e possível – e a persistência em aprender a ler e a escrever deram-lhe a alcunha, desde pequenina, de “louca” e nessa tenra idade de menina a levou a prisão.

Carolina Maria de Jesus tem sua jornada associada à desordem social, pois não aceita para si o rumo de vida orientado pelos outros – sua vida de trabalhadora braçal, que vai de babá a empregada doméstica, de cozinheira a operária de fábrica – a faz tornar-se uma peregrina, com suas longas andanças a pé de cidade em cidade, em busca do pão e de dignidade.

Na cidade grande, no entanto, é que encontra a dor e a glória inesperada. Na São Paulo dos idos dos 1940/1960 tem tencionada a sua existência, como prova madura do seu “desvio de função”: uma negrinha pobre e semianalfabeta jamais podia se meter a intelectual. Escrever, mesmo em cadernos velhos, encontrados no lixo – ou escrever nos jornais – era coisa para ser “letrado” ou douto (nunca douta, no feminino, seja dito), acadêmico. Mas Carolina força a porta, besunta o corpo de coragem e ousadia, se reescreve magistralmente no palimpsesto do DNA que a constituiu. Das ruas da cidade grande como um “objeto exótico”, habitando os cortiços ou as marquises de viadutos, na calada da noite fria, passa à condição de objeto “fora de uso” – aquele a ser descartado, direcionado para o monturo, para o “despejo”.

Dessa lama impura é de onde ela retira a flor mais preciosa – suas ideias e pensamentos sobre o Brasil subterrâneo – onde está incurso o grito da favela, da gente favelada. “Quarto de despejo”, livro de estreia, demarca um novo cismo na vida intelectual brasileira – que não é sentido desde o romantismo, abalo que é fator, em literatura, do nosso rompimento colonial.

Sua literatura traz o dom da revolta, e da revolução. Esta estética, do ponto de vista do conceito: o cânone é rompido como a parte de uma encadernação imprestável. Carolina de Jesus – não só com “Quarto de Despejo, mas com seus outros livros, mesmo os até hoje inéditos – reverbera a “torre de marfim”, ponta de lança entre o velho e o novo, o modernizante, mas ultrapassado, por seu conservadorismo, nas nossas letras.

Com sua escrita impõe um novo código de conduta literário: é mulher do povo que escreve, literariamente, fabularmente, poeticamente, as angústias do povo. No plano estético, sai da condição de “iletrada” para escritora; da condição de invisibilidade para a fama. Parelha, no viés das letras, com Jorge Amado, Clarice Lispector, Dinah Silveira de Queiroz, Raquel de Queiroz, na órbita nacional; internacionalmente, rompe todas as barreiras possíveis e inimagináveis. O ponto de confluência estabelece-se: Carolina é o novo cânone. A retórica elitista é a do contraponto a esta nova realidade. Racialmente agressivo. Sua narrativa é pungente, discursiva, moderna, ao mesmo tempo toca a realidade e está dentro dos anseios da virada de consciência nacional – os tempos a política e da consciência nacional. Em ficção, fala através dos seus romances – especialmente “Pedaços da fome”, na poesia, basta lembrar a força de “O colono e o fazendeiro”, ou nos contos – a exemplo de “Onde estaes Felicidade?”.

Juliana Barbosa

Carolina é este fator que rompe com o neocolonialismo literário vigente desde a Semana de Arte Moderna, em 1922. Seu legado e sua presença cada vez mais presente residem na força da natureza do seu pensamento escrito e ainda bastante atual e contemporâneo, subversivo e revolucionário, rebatizado de alternativo, marginal, periférico.

Nascida há 105 anos, deixou além de muitos livros não publicados, sonhos e a sua resiliência. Revisitá-la é cada vez mais uma urgência emergente. Lê-la é, grosso modo, uma necessidade imperiosa. Carolina ainda se encontra amordaçada pela ameaça surgida em 1964. Sua voz se calou nos calabouços da consciência nacional. Falar, ler Carolina se tornou algo perigoso, arriscado, ameaçador. Assumi-la como escritora, pensadora, intelectual é um vitupério, uma afronta a casta encastelada na “torre de marfim” da academia das letras e do alto saber.

Esta é uma estrada longa e pedregosa. Este é um trabalho ainda por fazer – mesmo com a dor e o sofrimento provados por Carolina Maria de Jesus, esta preta escritora presente.


Carolina Maria de Jesus, nasceu na cidade de Sacramento, no dia 14 de março de 1914 e faleceu em São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977. Teve 3 filhos - João Jose, José Carlos e Vera Eunice (a única viva). Publicou quatro livros, sendo os mais conhecidos "Quarto de despejo - diário de uma favelada(1960)" e "Diário de Bitita(1977)".

Tom Farias | Brasil |

Tom Farias é jornalista e escritor, autor de “Carolina, uma biografia” (ed. Malê, 2018, 402 págs., ilustrado).

uelintonfariasalves@gmail.com

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