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periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

Explorações criativas sobre Acesso à Justiça

Com música e cantigas, movimento e dança, tecidos e vestes como linguagem, refletimos sobre como testar e comunicar novas perspectivas artísticas no contexto migratório

Gameli Tordzro

| Gana |

agosto de 2023

traduzido por Giuliano Guiari

Cena que retrata a reconciliação durante exibição da P&D transmitida ao vivo no palco do Noyam. Foto: Gameli Tordzro

Chegamos em Dodowa, Gana, em maio de 2022 para atuar no Programa de Trabalho para o Bem-Estar e Resistência Criativa (WP11) do MIDEQ e no programa de trabalho da iniciativa de impacto Acesso à Justiça (WP8) sob o tema de atuação ‘Justiça, Uma Dança Migratória’. Juntamente com o Noyam African Dance Institute (Noyam), realizamos um piloto do projeto de pesquisa e desenvolvimento com duração de uma semana a fim de testar nossos métodos e processos. Métodos artísticos e processos são, por natureza, baseados em interações em camadas, reflexões e exploração conjunta, gerando novas perspectivas, aprendizados e entendimentos, com os quais se criam músicas, movimentos e vestes que geram engajamento. Criamos juntos as primeiras músicas, vestes e danças por meio da atuação no palco que foi transmitida ao vivo para atrair tanto o público que estava no teatro Noyam, em Dodowa, quanto demais pessoas.

 

A importância da linguagem

Cada elemento da atuação era visto como uma linguagem que exprime novas perspectivas artísticas sobre os dados da pesquisa do MIDEQ. A produção permitiu a combinação da linguagem da música, dos movimentos, bem como dos tecidos, vestes e cores em uma única narrativa. Foram utilizados os idiomas Dangbe, Akan, Ewe, Ga, além de outras línguas faladas pelos integrantes da peça teatral, inclusive o inglês. Portanto, a atuação nasce do debate exploratório imersivo, experimentação, interpretação e reflexão a respeito do conceito de ‘justiça’, ‘acesso’ e ‘acesso à justiça’ e das consequências da migração sul-sul, no que diz respeito à desigualdade e desenvolvimento, da perspectiva do conhecimento indígena e do idioma dos artistas participantes em Dodowa. 

Utilizamos discussões em grupo para explorar o significado de acesso e justiça no contexto das culturas tradicionais, por meio de escavação linguística crítica dos significados e valores implicados nas terminologias dos dois mundos. Por exemplo, durante o processo de escavação, descobrimos que a palavra ‘dami’, usada para se referir à justiça no idioma dangbe, é formada por dois conceitos: ‘da’, que significa ficar ou estar, e ‘mi’, que significa ‘representar alguém’, levando, portanto, ao conceito  de ‘Midalor’ ou mediador. Também notamos o paralelismo de significado e fonologia das duas palavras: ‘mida’ e mediar. Isso vai ao encontro de várias terminologias europeias modernas escavadas (que descobrimos em outra pesquisa relacionada) que estão etimologicamente ligadas e enraizadas em Ewe, Ga, Akan e Dangbe (incluindo palavras como conhecimento, perigo, fenômeno, ego e muitas outras).

Esse processo de escavação linguística do significado e o que ele revela traz novos entendimentos para nossos artistas e acadêmicos participantes a respeito de conceitos que surgiram em pesquisas artísticas no que se refere a como o idioma, o conhecimento e o entendimento são tratados. Dá aos artistas criativos participantes a oportunidade de passar a contribuir para o desenvolvimento de um novo entendimento sobre a questão do acesso à justiça, bem como sobre o processo de lidar com a desigualdade e desenvolvimento no contexto da migração sul-sul. Também gerou um novo tema para a peça: Dami, Mini Kuraa Ji Dami?, que significa Justiça? O que é justiça neste mundo?

Nii Tete Yartey, Diretor do Noyam durante uma discussão em grupo ao ar livre retratando aspectos da interpretação do movimento e da dança.

 

A peça concebida em conjunto: etapa de pesquisa e desenvolvimento

A atuação começa com duas novas músicas criadas durante esse processo, começando com a ‘Justice Must Surely Prevail’ (‘A Justiça Tem de Prevalecer’, na tradução livre) e terminando com ‘We Need Justice’ (‘Precisamos de Justiça’, na tradução livre) em dangbe e inglês. Durante a atuação, dançarinos representantes de diferentes culturas viajam a outra parte do mundo. Eles levam consigo vários artigos significativos relativos à sua origem, vivência e visão de mundo. O porongo ou cabaça – objeto central na atuação – está envolto em um pano branco. Ele representa uma ‘fonte infinita’ de justiça, posicionado diante de todos à medida que avançam em sua jornada. 

Com cortinas de pano de fundo para criar o cenário de algum lugar do mundo, os dançarinos criam um acampamento temporário utilizando objetos e itens que estão levando em sua migração na forma e representação metafórica de uma caixa. Eles contrastam com o porongo esférico, ou Ego, como é chamado em Ewe, que representa o mundo e valores de justiça que compartilham. A caixa se torna para eles um “lar” (Ahome, no dialeto Anexɔ de Ewe falado em Togo e Benin), simbolizando também as várias ideias estabelecidas, raciocínios e construções sociais de justiça e as implicadas limitações ao acesso universal.

Nesta zona de passagem, são trabalhados vários cenários que exploram ideias de gênero, educação, religião, trabalho, economia, cultura, abuso de poder, sofrimento, mediação e abordagens reconciliadoras à justiça. Eles surgem da movimentação por entre, ao redor e dentro das caixas e do porongo Ego envolto em branco. O Ego simboliza a justiça universal incontestada e o acesso livre a ela. Todo cenário termina no Ego e um gole do porongo representa o momento singular em que se consegue justiça. Os dançarinos se afastam do porongo quando não vivenciam ou conseguem obter justiça, ou mesmo quando não enxergam que a justiça está sendo feita. 

A cor, os tecidos, os trajes, o design do cenário e os adereços desempenham um papel importante juntamente com os movimentos e a música na comunicação das ideias, do tom da narrativa e da história da peça. A comunidade é o clímax da peça, para desconstruir sua caixa metafórica e usá-la para carregar os que caíram para um novo amanhã, guiados pelo mundo de valores contidos no porongo.  É importante mencionar que o conceito é o de reavaliar constantemente nossos pontos de vista, conhecimento, cultura, visão de mundo e as políticas que advêm deles. Não devemos ficar confinados em uma caixa, senão acabaremos ficando presos e sem conseguir nos desenvolver. 

A documentação videográfica é um aspecto essencial no nosso método e processo artístico. Filmamos o processo e produzimos breves documentários do processo – ‘Justiça, Uma Dança Migratória’1Disponível em https://vimeo.com/746034280. Também produzimos um jingle para a transmissão matinal para promover a exibição de Dami no Teatro Noyam em  Dodowa.

O curso de fabricação de tecidos foi integrado no processo de design do cenário e dos trajes
Naa Densua Tordzro em uma Discussão de Grupo em ambiente externo com os artistas participantes do Noyam. Foto: Gameli Tordzro
Ruth Osabutey, uma das cantoras participantes, decidiu tentar dedilhar pela primeira vez o corá.
Charlotte Opoku e Mary Sabla no curso de operação de câmeras com Vincent Krah, cineasta de Dodowa.

Processo é fundamental

Como já foi mencionado, discutimos com todos os participantes os conceitos chave de justiça, bem como os de acesso à justiça, de desigualdade e desenvolvimento nos vários idiomas presentes no grupo durante o desenvolvimento da peça. 

Cada sessão de discussão explorou os valores conceituais implícitos nas palavras e expressões utilizados para expressar, executar e entender a justiça e o acesso a ela em cada idioma. Nossa tarefa foi explorar e retratar como a justiça, o acesso a ela, a desigualdade e o desenvolvimento são interpretados, entendidos e vivenciados. Realizamos isso por meio de processos meticulosos de criação de interpretações musicais, por meio de movimentos corporais na dança, bem como por meio de tecidos, cores, panos e estampas. Por fim, filmamos as atividades e a atuação para a criação de narrativas audiovisuais dos métodos e processos da pesquisa artística. 

Por meio de uma variedade de valores culturais e indígenas relativos a roupas, cores, sons, música, objetos, corpo, movimento, lembranças e voz, trabalhamos em pequenos grupos e juntamos todas as partes por meio da experimentação, estruturação dramática, instrumentos de contação de histórias e ensaios.

O desenvolvimento de habilidades e capacidades de todos os participantes foi um elemento importante no processo. Os participantes foram incentivados a explorar novas atividades, como a música, o tie-dye, movimentos e dança, costura e confecção de trajes, bem como desenho e construção de cenário. Organizamos um treinamento especial de filmagem e produção para cinco mulheres jovens, que depois acabou virando o nosso ‘Estúdio na Floresta’. Também enfrentamos e superamos desafios relacionados à gestão empresarial e do setor criativo, habilidades de empreendedorismo e práticas necessárias para conseguir a sustentabilidade do precioso legado que esses projetos deixam para a as comunidades como a de Dodowa. Com isso em mente, criamos um curso informal de gestão teatral e compartilhamento de habilidades para a direção artística do Noyam, a fim de garantir que projetos como esse continuem dando frutos no longo prazo. 

Gameli Tordzro falando com a plateia presencial e online sobre os processos criativos do engajamento de P&D.

Aprendizados

Os pesquisadores de vários grupos de trabalho do MIDEQ e em vários corredores têm a oportunidade de trabalhar com os pesquisadores do WP11 ‘traduzindo’ as descobertas da pesquisa em resultados criativos acessíveis a um público mais amplo do que o que geralmente teria acesso a esses resultados acadêmicos. A intenção é que acadêmicos, parceiros da comunidade na pesquisa e aqueles que vão implementar as políticas e o desenvolvimento comunitário  consigam enxergar esse trabalho como abordagens de interpretação suplementares/alternativas à pesquisa acadêmica e participação comunitária. Esse tipo de engajamento se beneficia e dá a oportunidade de transportar nossa troca de conhecimento de pesquisa para além do âmbito acadêmico, alcançando a comunidade em diferentes idiomas.

Normalmente, espera-se que esse tipo de pesquisa seja realizada em inglês, com textos publicados em inglês e, quem sabe, traduzidos para outros idiomas predominantes. Ao colocar em primeiro plano a artes criativa como o idioma por meio da qual vários idiomas interagem e expandem o escopo da conceitualização e, por meio da exploração de várias conceitualizações culturais no contexto da migração no Hemisfério Sul-Sul, esperamos ampliar a compreensão e o alcance da nossa pesquisa.


 

Gameli Tordzro | GANA |

Multi-artista ganense, pesquisador, consultor e professor na Universidade de Glasgow. É Artista Residente na UNESCO RILA, e pesquisador associado no MIDEQ. Sua pesquisa se concentra em artes criativas, tradução de culturas, linguagem e educação com foco na música, produção audiovisual e contação de história afrodiaspóricas.

@meligkt

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