narrativas

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

Futurismo Mathare

De pedintes a mestres do nosso próprio destino

por Kanyi Wyban

| Quênia |

11 de agosto de 2020

traduzido por Jackson Schmiedek

Mathare, Nairóbi | Foto: Kongo Peter

Boa parte dos meus amigos que têm minha idade em Mathare pode ser distinguida por um denominador comum — uma história de mendicidade e dependência absoluta. Ao longo dos anos, isso prejudicou minha geração e invalidou a libertação da comunidade de maneiras substanciais. Fomos moldados a uma geração sem voz de vítimas dependentes, aguardando constantemente ajuda externa para mudar nossas circunstâncias. Como em guetos de todo o mundo, as ONG parecem ser o único alívio em Mathare para questões estruturais. Elas dão a impressão de que o vácuo criado por um Estado que retrocede está sendo preenchido. E às vezes está. Claramente, o Estado tem  abdicado completamente de seu dever tradicional e continua a negligenciar essas áreas urbanas em condição de extrema desigualdade. Mais frequentemente, no entanto, a verdadeira contribuição das ONG tem sido neutralizar a raiva política e distribuir como ajuda ou benevolência o que as pessoas deveriam ter por direito. Assim, acabamos nos tornando uma geração de ONG, a qual a sociedade prefere rotular como preguiçosa e beneficiada.

Uma tentativa de traçar o pedigree de dependência traz memórias de como milhares de nós fomos ensinados a ser pedintes  profissionais antes que estudássemos o alfabeto! Na época, eu era um mero garoto de três anos de idade com o mundo inteiro a minha frente. As mães e tias eram as melhores professoras para esse conjunto de habilidades. Elas discerniam cuidadosamente os alvos em potencial de longe e depois nos pediam para fazer "cara de coitado”ao realizar nossa abordagem. Pelo menos era assim que minha família fazia e muitas outras famílias ao redor. Também nos pediam para que estendêssemos a mão para um estranho qualquer da mesma maneira que um cliente faz quando pede troco. Esse estender das mãos deveria então ser seguido juntamente das palavras:

Anko saidiaa, saidiaa anko …!  

Me ajuda, tio. Por favor, tio, ajuda …!

Essa era a maneira mais segura de conseguir algumas moedas necessárias do bolso deles. Por alguma razão, essas táticas tinham uma boa taxa de sucesso, uma vez que voltávamos para casa com bastante dinheiro para comida e algumas outros utensílios. O filho que conseguia levar para casa a maior quantia era recompensado com pequenos favores aqui e ali. Naturalmente, por mais ingênuos que fôssemos, ficávamos com inveja e tentávamos "trabalhar" para ganhar as vantagens extras da nossa tarefa. Depois a Missions of Hope International (MOHI), uma ONG de caridade veio para o nosso bairro oferecendo educação gratuita, um programa de alimentação e, peguem essa, alimento espiritual. 

Os pais não podiam se dar ao luxo de perder um lugarzinho para os filhos. Foi assim que uma multidão de meus colegas deixou as ruas em busca de novas possibilidades. Agora, mais crianças tinham uma chance razoável de acessar a educação, ao contrário de antes, quando se podia contar o número de pessoas que eu conhecia que tinham passado da escola primária! Com o tempo, no entanto, mais e mais organizações foram criadas à nossa volta, tentando abordar questões como a conscientização sobre HIV/AIDS para o empoderamento feminino, insegurança alimentar e assim por diante. Um bom número dessas organizações,  obviamente num perfil de fachada, tiveram como finalidade o desvio de verba ou formas  para se conseguir isenção de impostos.

O lado sombrio da caridade é que nunca fornece soluções sustentáveis ​​para a desigualdade sistêmica. Oferece tanto sensação gratificação instantânea àquele que doa quanto àquele que recebe, mas suas implicações podem ser terríveis. Esse zelo missionário só é capaz de amortecer a angústia do povo, alterar a psique pública e cortar as asas da consciência e resistência política.

Portanto, não – eu rechaço que minha geração seja composta simplesmente por preguiçosos e beneficiados. Tem sido hiper normalizado que os jovens dos assentamentos pobres do Quênia sejam educados, mas desempregados, deliberadamente violados e, de preferência, silenciados. 

Aliás, uma equipe de colegas com quem trabalho no Mathare Green Movement, o Movimento Verde de Mathare está impetuosamente determinada a acabar com esse propósito. Estamos focados em estabelecer ligações diretas entre as desigualdades sociais e econômicas em Nairóbi com uma genealogia do apartheid ambiental, um pensamento que brota profundamente do reflexo de porquê  não haver árvores em Mathare enquanto que, do outro lado do rio, o bairro de classe alta de Muthaiga está repleto de vegetação. Parte de como Mathare é tratado é por conta de seu ambiente desgrenhado. Alguém me disse que, se os movimentos sociais não tiverem a dinâmica da juventude, certamente morrerão. Eu não poderia concordar mais.

Tendo em vista o atual cenário político, os jovens, especialmente os jovens do sexo masculino, continuam sendo perfilados e vitimizados todos os dias sem que suas vozes sejam ouvidas. É uma guerra que o Estado parece decidido a travar contra a minha geração; o próprio Estado que nos tem negligenciado e abafado nossas tentativas de falar. 

Em seu artigo “Assassinatos extra judiciais em Nairóbi e as respostas de base comunitária", Brice Jacquemin (estudante de mestrado belga que conheci em janeiro de 2018) argumenta que a polícia não realiza um trabalho policial. Pelo contrário, é uma força de controle social. A polícia desempenha o papel do homem "racional" em uma guerra injusta e irracional. Percebo que é fácil contorcer essa afirmação em uma acusação sobre toda a  instituição policial. Isso seria falsidade. Nas águas turvas do policiamento urbano brutalmente corrupto, é claro que há alguns policiais que realizam um trabalho valioso. Sim, a força policial também é uma instituição confrontada com uma infinidade de questões, como financiamento inadequado, repressão, entre outras coisas. Mas é necessário desviar nossa atenção do trabalho positivo realizado por alguns policiais individuais e examinar a cultura do policiamento em um contexto político muito mais amplo.


Mathare é cercado e socialmente controlado por uma força não mitigada, o legado da onipresença institucional colonial. Delegacias de polícia estão por todas as entradas do vale: Delegacia de Polícia de Pangani, ao oeste, Delegacia de Polícia de Muthaiga, ao norte, Delegacia de Polícia de Huruma, ao leste e a Base Aérea Militar de Moi, ao sul. De acordo com um relatório de ação participativa documentado e lançado pelo Mathare Social Justice Centre, o Centro de Justiça Social Mathare, entre 2013 e 2016, a polícia matou mais de 800 jovens em Mathare e em outros assentamentos informais em todo o país.

A polícia é predatória. Casos de abuso e extrema brutalidade são desprovidos de qualquer vestígio de humanidade. São o símbolo de uma sociedade que prospera vitimizando uma geração inteira. Uma sociedade que nos ensinou a implorar; entrega-nos migalhas sem oportunidades, mas, no entanto, não condena a injustiça e/ou o fracasso abjeto do Estado na governança.

A necessidade urgente de navegar por duras realidades existenciais, como a da juventude de Mathare, tem-nos forçado a empregar táticas inteligentes sobre como evitar, da melhor maneira, qualquer tipo de encontro desagradável com oficiais em patrulha. E leve sua carteira de identificação nacional toda vez que sair de casa. A não apresentação do documento quando requisitado implica negociações tóxicas que podem levar a assédio sem motivos ou até mesmo à apreensão em nome da apreensão! Ainda mais bizarro é o fato de que o policial assassino mais notório é geralmente conhecido pelo rosto e pelo nome, mas ninguém ousa dizer seu nome em público sem que um sentimento de paranóia corra pelo corpo. É como se ele visse e ouvisse tudo. Muitos acreditam que sim. Imagine só. Ninguém deveria ter todo esse poder — de ter uma comunidade inteira rendida.

Com o tempo, inventamos também um apelido para ele. "Mjamaa". Dessa forma, todos podem dizer o nome dele sem que haja tensão, incluindo mulheres que geralmente são as primeiras informantes sempre quando ele está por perto, aparecendo em um Toyota Probox sem identificação. Isso nos ajuda a cuidar uns dos outros. Mjamaa é famoso por causar confusão nas bases da juventude. Certa vez, apontou a arma e disparou contra um aparelho de som que tocava música durante um funeral de um jovem que ele mesmo havia recentemente executado. Ele imediatamente interrompeu a arrecadação de fundos, lançando inúmeros insultos, dizendo:

— Bandidos merecem morrer e se enterrar depois!

A livre circulação também é muito limitada em nosso próprio bairro. Um jovem não deve andar tranquilamente à noite: se você sair para festas durante a madrugada, simplesmente voltará para casa por própria conta e risco. Para aqueles que usam dreadlocks como eu, o risco é enorme! Os dreads servem como uma das principais características, entre muitos outros códigos de vestimenta, frequentemente usadas ​​para identificar potenciais suspeitos. Segundo a polícia, vestir-se de uma certa maneira só vai colocar você na categoria de “culpado até que se prove o contrário”. Como se houvesse uma assinatura para procurar criminosos.

Isso inclui o uso de cordões de ouro, certos sapatos e, bonés. O raciocínio por trás é assustadoramente perturbador; os policiais estão realmente convencidos de que os jovens desempregados não podem se dar ao luxo de usar cordões e sapatos decentes sem terem cometido algum tipo de crime. E longe de mim está a explicação sobre por que um simples estilo de cabelo  ou uma roupa elegante devam ser usados para distinguir bandidos.

Organizações como o Movimento Verde de Mathare (MGM) nos compeliu  a aplicar diferentes formas de advocacy na tentativa de construir consciência na sociedade. Criamos o termo "Futurismo Mathare" para descrever nossa imaginação de possíveis realidades e nosso trabalho para projetar um novo futuro para Mathare. Como a maioria de nós somos artistas, nossa abordagem usa arte, música, palavras e árvores como símbolos de poder.

Não apenas esverdeamos o meio ambiente, como também alimentamos a comunidade por meio do plantio de árvores frutíferas, fornecemos medicamentos naturais por meio do plantio de árvores medicinais, tornamos a comunidade bonita com flores ornamentais e comemoramos a vida daqueles que perdemos, assassinados por policiais em Mathare, plantando árvores em sua memória. Oferecemos, assim, cura a um povo ferido, às famílias e aos amigos das vítimas. As árvores são um símbolo de regeneração e pretendemos nutrir nossas vidas junto à comunidade, usando as árvores como totens de resiliência. Sua sobrevivência em meio a forças que trabalham contra seu crescimento é uma ilustração de como nós nos elevaremos, não mais como pedintes, mas como donos de nosso próprio destino!


 

Kanyi Wyban | Quênia |

Jovem escritor e músico com base em Mathare, Nairobi, Quênia. Fundou Heros of Mathare, projeto de contação de histórias que busca a contação de belas narrativas que celebram heróis e heroínas da comunidade, por alguns rotulada por "slum". Também é o coordenador  de Mathare Green Movement, campanha de justiça ecológica pelo empoderamento da juventude por meio de ações que reivindique a humanidade ao plantarmos árvores e deixamos verde Mathare.

@matharegreenmvement @wybanmusic @wybanmusic

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