ensaios

periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

Mais expectativas, menos direitos

Experiência das crianças etíopes migrantes na África do Sul

Mackenzie Seaman e Henrietta Nyamnjoh

| Etiópia |

setembro de 2023

traduzido por Giuliano Guiari

Dos aproximadamente 100 milhões de etíopes no mundo, mais de 3 milhões moram fora da Etiópia. Tradicionalmente, os etíopes costumavam imigrar para o Quênia e para o Sudão, mas a maioria hoje está indo mais ao “sul”, para a África do Sul. Não há estimativas oficiais da quantidade de etíopes na África do Sul, mas especialistas acreditam que a cifra está aumentando vertiginosamente, sendo que muitos desses migrantes estão chegando ilegalmente e sem documentação.

 

Jornadas arriscadas

O percurso da Etiópia até a África do Sul faz parte da “Rota Sul”, que vai do Chifre da África (nordeste africano) até a África Meridional, passando principalmente por cinco países: Quênia, Tanzânia, Malawi, Moçambique e Zimbabwe. Os migrantes etíopes geralmente realizam esse percurso em busca de melhores oportunidades de trabalho e a fim de alcançar suas ambições migratórias. Mesmo sendo um percurso consagrado, ele não é fácil. Na maioria das vezes, a viagem dos etíopes pela Rota Sul tem como destino a África do Sul e é marcada pelo contrabando e pelo tráfico. A jornada também envolve o risco de prisão, deportação, exploração, estupro e morte. 

Em dezembro de 2022, 27 corpos de migrantes etíopes foram encontrados nas regiões mais afastadas de Lusaka, capital da Zâmbia, somando-se a outros incidentes que já haviam sido reportados. No início de 2022, 30 corpos etíopes foram descobertos em uma vala comum no Malawi. Em março de 2020, 64 homens etíopes foram encontrados mortos por asfixia em um contêiner lacrado em Moçambique. 

Ainda que o que se destaque sejam os perigos da jornada para o norte – que tem como destino as fronteiras do sul da Europa e a União Europeia – esses movimentos em direção ao sul são frequentes e igualmente repletos de riscos. Estima-se que mais de 900 etíopes já morreram em rotas migratórias desde 2014 — uma cifra que, provavelmente, está muito subestimada.

 

Fluxo de crianças

Por trás dessas estatísticas está o que acontece com as crianças. A população da etiópia é consideravelmente jovem. Estima-se que 45% da população tenha menos de 15 anos e 71% menos de 30 — o que vem em linha com as estatísticas dos países da África Subsaariana e do Chifre da África, em geral. 

Boa parte da migração na região se dá entre os jovens. De acordo com as estimativas, a África tem os migrantes com a média etária mais jovem do mundo. Ainda que não haja estatísticas específicas em relação tanto à migração infantil da Etiópia quanto à migração da Etiópia em geral, a migração infantil — tanto de crianças acompanhadas quanto das que migram junto com a família – é frequente e está crescendo.

A percepção das comunidades sobre a migração das crianças é complexa. Na Etiópia, as crianças podem ser consideradas adultas pela sociedade antes de completarem 15 anos. Ainda que, legalmente, continuem sendo consideradas crianças, a população não vê esse fluxo de crianças necessariamente como migração infantil. Tanto em amárico quanto nos dialetos locais, há termos para categorizar crianças que diferem das definições jurídicas do Ocidente. A migração também é vista como um rito de passagem fundamental pelo qual as crianças têm de passar para se tornar adultos. 

 

Recepção complicada 

As dificuldades enfrentadas pelas crianças etíopes continuam mesmo depois do percurso migratório. Na África do Sul, tanto migrantes quanto filhos de etíopes que nasceram no país enfrentam desafios para ter acesso aos seus direitos. Geralmente, essas pessoas têm acesso a documentação de segunda classe ou podem até ter acesso negado a qualquer tipo de documentação adequada. Os filhos de etíopes que entraram com pedido de asilo ou estão como refugiados recebem o mesmo status da mãe. Mesmo assim, alguns dos que nasceram na África do Sul continuam tendo dificuldades para obter a documentação, o que os coloca em risco de se tornarem apátridas. 

As histórias reunidas pelo MIDEQ Hub, um consórcio global de pesquisa que esmiúça as relações complexas e multidimensionais entre imigração e desigualdade no Sul Global, lançam luz sobre a experiência complicada dessas crianças no acesso aos seus direitos na África do Sul. 

Mia é filha de etíopes e nasceu na África do Sul. A África do Sul é o único lugar que ela conhece e a imagem que ela tem da Etiópia se baseia nas histórias que seus pais lhe contam e o contato que ela tem de vez em quando com o país por telefone. Ela tem sotaque sul-africano, fala Afrikaans fluentemente e sua visão de mundo é sul-africana. Apesar disso, ela não tem cidadania sul-africana. Ainda que Mia tenha recebido um documento temporário de identidade, devido à Covid-19 ela não conseguiu renová-lo e, consequentemente, no dia da entrevista ela tinha acabado de ficar sem nenhum documento. 

As consequências da falta de documentação de Mia reverberam ao longo da sua vida. Ela não consegue ter acesso ao Matric (certificado de conclusão do ensino médio), uma vez que o sistema digital requer um documento de identidade válido. Consequentemente, ela não consegue cursar uma universidade. No desespero de conseguir a documentação adequada junto à Secretaria de Assuntos Internos e Serviço de Atendimento aos Refugiados, ela pediu que o diretor da escola enviasse seu histórico escolar informalmente – o que foi recusado. Logo, sem conseguir continuar seus estudos, Mia estava trabalhando no comércio do pai quando a entrevistamos, mas ainda tinha o desejo de continuar seus estudos. 

Diferentemente de Mia, que nasceu na África do Sul, Ephraim migrou para a África do Sul aos 14 anos a fim de voltar a morar com os pais e continuar seus estudos para, como ele mesmo diz: —  “aprender a falar bem inglês.” No entanto, ele desistiu de continuar os estudos devido à falta de documentação adequada. “Eu fui a uma escola com meu pai… e a primeira coisa que eles pediram foi minha documentação... [que] eu não tinha.” Ele mencionou ter ficado intimidado com o padrão de ensino, mas sua decisão de desistir da escola foi, no final das contas, devido aos desafios em relação à documentação. “Mesmo com medo, eu ainda queria ir à escola, mas eu não tinha documentos.” 

Além de Ephraim não ter a documentação necessária para ter acesso completo à educação e outros direitos na África do Sul, seu domínio limitado do inglês e baixa escolaridade — ao contrário de Mia — faz com que seja mais difícil superar os trâmites burocráticos complexos que os etíopes têm de enfrentar na África do Sul. Atualmente, como muitas crianças migrantes etíopes desacompanhadas na África do Sul, Ephraim vive como migrante sem documentação em um bairro periférico, trabalhando informalmente em uma das vendinhas do seu pai.

 

Expectativas cada vez maiores e a responsabilidade de cuidar

Em geral, as crianças acabam virando os mediadores culturais nas famílias de migrantes. São elas que navegam pelos complexos sistemas jurídicos, traduzem as coisas para os familiares e, frequentemente, assumem a responsabilidade de cuidar de outras crianças e mediar o contato com instituições de ensino. Crianças que migram sem a família geralmente têm que enfrentar o peso da migração e da adaptação sozinhas. 

Do mesmo modo, na África do Sul, as crianças etíopes também assumem funções de autoridade e responsabilidades importantes na família, como administrar a relação entre a família e a Secretaria de Assuntos Internos e Serviço de Atendimento aos Refugiados, bem como a relação entre os pais e a direção de ensino. A pesquisa que o MIDEQ realizou na África do Sul destaca essas funções de cuidar que as crianças de famílias de migrantes geralmente têm de assumir. 

Samuel chegou na África do Sul em 2012, aos 12 anos, e foi direto se matricular na escola. Ele é o mais velho de cinco irmãos. Na escola, ele teve dificuldade em se adaptar ao sistema educativo devido à falta de proficiência em inglês. Mesmo assim, em pouco tempo ele começou a ler e falar inglês com fluência e começou a atuar como intérprete entre seus pais e os funcionários da escola. Aos 15 anos, ele assumiu o lugar dos pais na participação de reuniões de pais e professores. Aos 17, ele passou a ser o principal responsável pelas decisões relacionadas aos seus irmãos, enquanto seus pais focavam em ganhar dinheiro para enviar de volta à Etiópia. “Desde que eu entrei para o ensino médio, eu passei a cuidar de mim e dos meus irmãos.”

Diferentemente de Mia e Ephraim, Samuel conseguiu a documentação, concluiu o ensino médio e recebeu o diploma Matric. Ainda assim, ele não conseguiu entrar em uma faculdade porque ele teria que se candidatar como aluno estrangeiro – por ter nacionalidade etíope –, o que significaria ter de pagar taxas altíssimas.

Assumir essa responsabilidade de “cuidar”, como Samuel descreveu, é algo normal em muitas famílias de migrantes. As crianças na África do Sul e na Etiópia geralmente se tornam adultos para a sociedade antes de completar 18 anos

Assumir essa responsabilidade de “cuidar”, como Samuel descreveu, é algo normal em muitas famílias de migrantes. Embora isso se contraste com a versão idealizada de infância que aqueles que criam as políticas e programas vislumbram e defendem, não é necessariamente algo totalmente negativo. As crianças na África do Sul e na Etiópia geralmente se tornam adultos para a sociedade antes de completar 18 anos, fazendo com que os esforços para recuperar uma “infância perdida” acabem sendo ineficazes. Se por um lado essas crianças podem sofrer com a pressão de assumir mais responsabilidades, crianças como Samuel também conseguem desenvolver uma autonomia conforme vão cumprindo essas obrigações. Essa vivência pode formar a identidade delas.

 

Proposta de solução para alguns 

A experiência de Mia, Ephraim e Samuel evidenciam como desafios perenes com a documentação impedem que as crianças de origem etíope consigam ter acesso à educação na África do Sul. Essas experiências foram devidamente documentadas em outros contextos no Hemisfério Norte também, especialmente nos Estados Unidos. 

Apesar dos desafios em comum, o direito dos migrantes e das crianças à educação, independentemente de sua situação jurídica, é garantido pelo Direito Internacional. Está consagrado tanto na Lei dos Direitos Humanos quanto nos tratados específicos a respeito de migrantes e crianças, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados e seus Protocolos, o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular e o Pacto Global sobre Refugiados – todos os quais a África do Sul aderiu ou aprovou.  

Apesar disso, houve um progresso recente na África do Sul. Após inúmeras ações judiciais, a partir de 12 de junho de 2023, adultos filhos de refugiados ou pessoas que solicitaram asilo têm direito ao processo de naturalização. Essas pessoas devem cumprir uma série de requisitos, tais como falar no mínimo um idioma oficial e ter mais de 18 anos. 

A nova regra renova as esperanças de muitos adultos filhos de etíopes que estavam de mãos atadas por ter documentação inadequada ou por não ter nenhum documento. Ainda assim, as crianças continuam no limbo, enfrentando uma profunda discriminação jurídica e barreiras educativas crônicas, em especial as que imigraram para a África do Sul ou aquelas que nasceram na África do Sul e cujos pais não têm documentos. 

Em todo caso, as histórias identificadas durante a pesquisa do MIDEQ mostram que há muitas soluções imediatas e práticas que podem ser implementadas.

Em primeiro lugar, uma peça chave para permitir o acesso igualitário aos direitos é a certidão de nascimento, especialmente quando se trata do direito à educação durante a infância para crianças etíopes que imigraram para a África do Sul e os filhos de migrantes etíopes nascidos na África do Sul. Sendo assim, a certidão de nascimento sul-africana precisa ser emitida para todas as crianças nascidas na África do Sul, sem discriminação. Para as crianças nascidas na Etiópia, é preciso que se estabeleça um mecanismo que permita que a certidão de nascimento etíope dessas crianças seja reconhecida para que elas tenham acesso aos demais documentos, como o documento de identidade de 13 dígitos.

Em segundo lugar, devido à questão dos documentos de identidade vencidos por causa da Covid-19, as crianças passaram a enfrentar o risco de ficarem sem documentação. Os documentos vencidos precisam ser perdoados em vez de serem utilizados como obstáculo para o acesso a documentos de identidade atualizados. Documentos que venceram durante a pandemia devem, portanto, continuar sendo considerados válidos para dar entrada no pedido de renovação.  

Em terceiro lugar, o fato de o processo de retirada do certificado de conclusão do ensino médio ser em grande parte digitalizado cria uma barreira que impede o acesso das crianças aos seu histórico escolar. Sendo assim, é necessário que haja um método não digital e institucional para retirar o histórico, um que seja possível acessar utilizando qualquer documento de identidade emitido pelo governo — não apenas a certidão de nascimento sul-africana e o cartão de identidade de 13 dígitos. 

Em quarto lugar, no caso das crianças etíopes que estudaram na África do Sul, a exigência do pagamento de taxas para alunos estrangeiros ingressarem na universidade impede que essas crianças possam usufruir de todos os benefícios da imigração. A cidadania não pode ser o critério para a exigência dessas taxas, e sim o fato de o aluno ter se formado no ensino médio em uma escola sul-africana.  

Por fim, muitas crianças etíopes migram para a África do Sul ilegalmente e, portanto, não têm todos os documentos necessários. Inclusive as crianças que nasceram na África do Sul, em alguns casos, não têm todos os documentos, especialmente aquelas cujos pais são etíopes sem documentação. Neste caso, é preciso que haja uma continuidade de ações conjuntas das ONGs e do governo para garantir que os menores de 18 anos tenham acesso aos documentos.

O apoio a essas crianças na solicitação de asilo para que elas sejam consideradas refugiadas ao chegar na África do Sul, ações internacionais para que essas crianças tenham acesso à sua documentação etíope e uma ação abrangente para que as crianças etíopes tenham acesso à certidão de nascimento sul-africana ao nascerem são maneiras de facilitar o acesso à documentação. Ainda assim, políticas mais abrangentes por parte do governo sul-africano são necessárias para que a questão da falta de documentação dessa comunidade seja solucionada.

 

Discrepância entre expectativa e realidade

Apesar dos desafios jurídicos, pais etíopes continuam enxergando seus filhos como um trampolim para tirar a família da pobreza – e inclusive as crianças se veem assim. No entanto, sem a documentação adequada, as crianças têm dificuldade para entrar na escola pública, ingressar no mercado de trabalho e conseguir acesso a alguns serviços sociais. Em geral, isso significa que a migração não está, necessariamente, permitindo que as crianças etíopes na África do Sul tenham acesso pleno às oportunidades que elas haviam deslumbrado. Os benefícios que muitas delas esperavam conseguir ao migrar para a África do Sul, como uma vida melhor e oportunidades de formação, continuam inatingíveis.

Ainda assim, as propostas concretas mencionadas anteriormente podem trazer as tão necessárias soluções e o alívio para a angústia dessas crianças. O despertar da vontade política para abordar o desafio enfrentado por essas crianças é inerente a essas propostas. É necessário, portanto, que haja continuidade das ações na África do Sul para dar acesso à documentação e chamar atenção para a situação dessas e todas as crianças com histórico de migração.


 

Mackenzie Seaman | ÁUSTRIA |

Pesquisadora no pacote de trabalho Desigualdades na Infância com o MIDEQ Hub.

Henrietta Nyamnjoh (PhD) | CAMARÕES |

Pesquisadora com o MIDEQ Hub na Universidade da Cidade do Cabo.

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