Recursos visuais são políticos
Tornando visíveis os desafios do cuidado, violência e saúde enfrentados por mulheres e meninas venezuelanas migrantes
Pia Riggirozzi, Natalia Cintra, Tallulah Lines e Bruna Curcio
| Brasil |
outubro de 2023
Recursos visuais como fotos, filmes, desenhos animados ou outras formas de comunicação, são recursos poderosos para retratar situações políticas diversas como a guerra, desastres humanitários, movimentos sociais, crises financeiras, campanhas eleitorais (Bennett e Segerberg 2012), bem como veículos para ideias, expressões e opiniões. Rose (2012) teoriza que metodologias visuais ajudam a explorar a experiência de “pessoas e lugares marginalizados ou desempoderados: crianças, ruínas, pessoas sem-teto”, enquanto expõem como experiências pessoais e coletivas constroem uma política (internacional).
Tornar visível pessoas e situações que de outra forma ficariam negligenciados expõe injustiças e desigualdades cotidianas enfrentadas por muitos, bem como as barreiras e relações de poder que afetam quem fala, quem está sendo ouvido e quem (tem o poder) de falar (por alguém).1Ver Harman 2019
Esta dinâmica dos recursos visuais é particularmente relevante em situações de crise. A excerbação das desigualdades de gênero em tempos de crise é bem documentada, com o resultado claro que o bem-estar, as oportunidades e a resiliência de mulheres e meninas são prejudicados também2Grugel et al. 2022. Da mesma forma, a falta de dados disponíveis que expliquem a escala dos desafios que, por exemplo, mulheres e meninas enfrentam durante tempos de crise, ou as contribuições que elas fazem para ajudar a enfrentar as situações mais adversas também pode criar um enviesamento em relação a o que é definido como risco, urgencia, necessidade e solução.
Infelizmente, em muitas situações globais importantes, faltam dados sobre a desigualdade de gênero ou estes dados estão incompletos, o que resulta na falta de reconhecimento de como uma situação de crise excepcionalmente e desproporcionalmente afeta mulheres e meninas, e na falta de desenvolvimento de políticas públicas que responderiam a tais situações de formas que apoiariam e reforçariam a capacidade das mulheres e meninas de aguentarem futuras situações de crise.3Grantham and Eissler 2022
Partimos dessas reivindicações para nos concentrar no caráter distintivo de gênero da crise migratória venezuelana a partir de uma perspectiva pessoal e de gênero, conceituando e tornando visíveis histórias e lutas por direitos humanos de mulheres e meninas deslocadas à força que foram forçadas a deixar seu local de residência devido as consequências de crises políticas e humanitárias, buscando restaurar suas vidas com direitos e dignidade. Em particular, contribuímos para preencher lacunas de conhecimento sobre as necessidades e riscos de saúde sexual e reprodutiva de mulheres em situação de deslocamento, coproduzindo dados primários com mulheres venezuelanas no Brasil em 2021 sobre suas realidades de deslocamento forçado no contexto de gênero.
Esta pesquisa foi feita como parte do projeto “Abordando as Desigualdades de Gênero na Saúde de Mulheres e Meninas Deslocadas em Contextos de Deslocamento Prolongado na América Central e do Sul” (ReGHID) , financiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica. Embarcamos neste projeto com o objetivo de ouvir mulheres e meninas para ampliar o debate academico e político para abordar os desafios vividos e expostos por mulheres e meninas deslocadas à força. Usando a metodologia de voz-foto, e trabalhando diretamente com mulheres venezuelanas atualmente no Brasil, produzimos o livro Seguindo em Frente: Saúde, cuidado e violência vistos pelos olhos de mulheres venezuelanas deslocadas no Brasil.
As próximas seções apresentam uma análise, com base no livro, que reúne as fotografias e os testemunhos dos participantes. O livro fornece novos insights importantes sobre os desafios complexos e interseccionais enfrentados por mulheres e meninas deslocadas. Estes insights demonstram que o pessoal é político e que o individual é coletivo (e internacional), e que os formuladores de políticas públicas devem ouvir as vozes das pessoas mais invisíveis.
O contexto
Até maio de 2023, mais de 7 milhões de venezuelanos deslocados viviam em outras partes da América Latina, com o quinto maior número cruzando para o Brasil (R4V, 2022). Muitos migrantes fugiram da Venezuela devido à pobreza, fome, problemas de saúde e sistemas de saúde, e condições sociais, econômicas e políticas que reproduzem uma crise multifacetada na Venezuela. Os fluxos migratórios da Venezuela mudaram nos últimos anos, com mais e mais mulheres e meninas deixando o país do que nunca (CARE International, 2020).
Uma miríade de razões complexas, cruzadas, pessoais e políticas impulsiona pessoas a difícil decisão (ou a necessidade) de migrar, e os riscos enfrentados ao longo do processo de viagem e fixação são múltiplos. O que está ficando cada vez mais claro é que as situações de deslocamento não são neutras em termos de gênero.
Para muitas mulheres e meninas, as condições que levaram ao seu deslocamento aumentam suas vulnerabilidades e expõem as migrantes a maiores riscos e a piores situações de saúde, durante e por causa do deslocamento, devido a falhas de proteção em seus locais de residência. Durante o processo de migração, mulheres e meninas correm maior risco de estupro, tráfico e agressão sexual, bem como outras formas de abuso e discriminação exacerbadas por seu gênero (Valdez 2015; Barot 2017; Menjívar e Walsh 2017).
Ao chegarem aos seus novos locais de residência, as mulheres e meninas deslocadas, principalmente as que não tem documentos, são levadas ainda mais à invisibilidade e à marginalização social, econômica e política. Consequentemente, as mulheres deslocadas à margem da sociedade têm menos possibilidades de obter apoio adequado, proteção, informações oportunas, recursos e oportunidades para reconstruir suas vidas dentro da sociedade. Apesar dos esforços de governos e organizações para aliviar as condições desses refugiados e daqueles que embarcam em jornadas perigosas, a situação continua crítica, até porque os mais afetados – mulheres e meninas venezuelanas deslocadas – têm poucas ou nenhumas oportunidades e espaços para expressar suas experiências e prioridades.
Metodologias visuais como projetos de empoderamento
Comunidades marginalizadas são frequentemente silenciadas nas esferas sociais e políticas. Esse fato é ainda pior das mulheres, que podem ser ainda mais invizibilizadas devido a ensinamentos patriarcais, estruturais e sociais dos espaços aos quais as mulheres “pertencem ou são designadas”, ou seja, nas esferas privada e familiar. Este é o caso de muitas mulheres deslocadas à força da Venezuela. Nossa abordagem foi, portanto, aplicar uma metodologia visual, de foto-voz, que reforçasse a autonomia das participantes e amplificasse suas vozes para retificar essas desigualdades de gênero.
Como argumentam Vanyoro et al (2019), a persistente 'desumanização racializada de (alguns tipos de) migrantes' pelas autoridades e na mídia é uma tática deliberada que limita a empatia e, de fato, incentiva a hostilidade em relação às pessoas em movimento, e descolonizar os dados de pesquisa sobre a migração pode ajudar a combater essa prática profundamente prejudicial. Consequentemente, adotamos uma metodologia em que “pesquisadores… apoiam iniciativas comunitárias e trabalham em parceria com povos indígenas, comunidades e/ou organizações [bem como outros grupos marginalizados] de forma a evitar interpretações equivocadas e deturpações” (Quinless 2022). Portanto, muitas das mulheres venezuelanas e migrantes adolescentes que fizeram parte deste livro, as fotógrafas, eram da comunidade indígena Warao. A maioria delas eram marginalizadas nas sociedades ‘anfitriãs’ devido em grande parte à discriminação, xenofobia e insensibilidade cultural – mesmo nos sistemas de proteção existentes.
Ao trazer mulheres migrantes do povo Warao para o projeto foto-voz, suas narrativas são apresentadas em primeira mão, por meio de fotos e testemunhos, e são as próprias mulheres que determinam o que e como o público deve ver e aprender com elas. Suas vozes e imagens são apresentadas por elas com o objetivo de mudar formas de ver a sociedade e a política. Além de participantes, as mulheres deslocadas tornam-se co-pesquisadoras, ativamente engajadas no processo de pesquisa e coleta de dados. Dessa forma, suas narrativas visuais, orais e escritas são produtos de decisões coletivas e individuais sobre o que fotografar, o que dizer nas descrições das fotos e como retratá-las, algo que envolve direta e ativamente aqueles que, de outra forma, seriam apenas concebidos como 'sujeitos de pesquisa'.
No processo de desenvolvimento do fotolivro, uma série de discussões em grupos focais foram realizadas com essas mulheres e outras mulheres e meninas venezuelanas deslocadas; eram um total de 31 participantes, sendo 18 mulheres não-indígenas, 8 mulheres indígenas e 5 adolescentes não-indígenas, residentes de abrigos na cidade de Manaus, uma das principais cidades de chegada e assentamento de migrantes venezuelanos no Brasil. Entre junho e outubro de 2021, trabalhamos com quatro grupos distintos de mulheres e adolescentes. Nos grupos focais, as mulheres receberam câmeras, discutiram os aspectos éticos e técnicos de tirar fotografias e concordaram sobre o que queriam representar como “desafios da saúde sexual e reprodutiva no contexto do deslocamento”. Os participantes tiveram alguns dias para tirar fotos — e apoio durante todo o processo. Por fim, nos reunimos para discutir coletivamente as fotografias dos participantes em grupos focais, decididos via depoimentos e linha temática para o livro.
Os resultados foram empoderadores, emotivos e muitas vezes surpreendentes. Reunidas em cadeiras de plástico nas salinhas de abrigos públicos e de ONGs locais, mulheres e adolescentes narraram as histórias por trás de suas fotografias e, assim, tiveram a oportunidade de relatar em primeira mão seus próprios problemas e retratar-se da forma que desejavam serem vistas por outros, nos seus próprios termos. Com envolvimento direto na produção de dados, as mulheres foram mais do que participantes, foram co-pesquisadoras, moldando a produção de conhecimento sobre questões de saúde sexual e direitos reprodutivos (SSDR) no contexto do deslocamento.
As fotografias tiradas pelas participantes não apenas corroboram as descobertas sobre as necessidades de SSDR e os riscos que as mulheres deslocadas enfrentam; vão além, ampliando a produção de conhecimento ao evidenciar suas prioridades de SSDR de forma tríplice: envolvendo o autocuidado e o cuidado do outro; violência de gênero; e experiências complexas e contraditórias de acesso a serviços de saúde reprodutiva. Esses três conceitos estão presentes em todas as fotografias tiradas pelas mulheres e são indicativos de como as participantes parecem enquadrar e dar sentido às suas experiências como mulheres e como migrantes. Essas interpretações profundamente pessoais – mas também extremamente políticas – demonstram o impacto tangível da violência política, econômica e estrutural de gênero na vida cotidiana de mulheres e adolescentes migrantes.
Saúde, cuidado e violência através do olhar de mulheres venezuelanas deslocadas no Brasil
A primeira parte do fotolivro foca nos desafios do cuidado e auto-cuidado vivenciados por mulheres e adolescentes deslocadas e identificados como um dos principais desafios de proteção. Este aspecto da pesquisa foi particularmente marcante porque os desafios do cuidado e do auto-cuidado não são normalmente discutidos em debates sobre as concepções médicas (e sociais e políticas) de saúde sexual e reprodutiva. No entanto, foram centrais nas narrativas de saúde sexual e direitos reprodutivos de mulheres deslocadas.
O desejo de seguir em frente pelos seus filhos e famílias, ou simplesmente pela oportunidade de viver uma vida nova e digna, motivou as mulheres a superar muitos dos desafios do dia-a-dia. Ao mesmo tempo, a falta de apoio emocional e financeiro, juntamente com as condições precárias do deslocamento, como situações de migração irregular nos olhos da lei e barreiras linguísticas, apresentaram vários desafios que atingiram o bem-estar físico e emocional das mulheres, conforme destacado em seus relatos visuais e orais.
Por exemplo, Yoselin, uma das migrantes venezuelanas que foi co-pesquisadora nas atividades de fotovoz, comentou sobre a foto de Royra: “ ... Ela estava disposta a fazer qualquer coisa, a arriscar tudo para melhorar bem-estar delas porque realmente todas as migrantes, as venezuelanas no nosso caso, se expõem a tudo. Viemos pra cá com nossos filhos; dormimos na rua; temos que implorer por comida.” (Yoselin, 17 de julho 2021, Manaus, Brazil). Ela continua: “somos mães; nós paramos de ser nós mesmas para apoiar nossos filhos.”
Pobreza e sobrecarga são questões importantes, muitas vezes levando as mulheres a repriorizar as necessidades básicas de seus filhos ou família (alimentação, saúde e abrigo em particular) antes das suas próprias. Muitas mulheres migrantes se colocam em último lugar na lista de prioridades para alimentação e atendimento médico ou outros serviços de bem-estar, apesar do desgaste e dos riscos que enfrentam no cotidiano e ao longo de suas experiências migratórias. Mulheres enfrentam diversas dificuldades e traumas antes de migrar, durante o a viagem e após chegarem ao novo local de residência, com pouco apoio para entender o que passaram e se curar. Muitas mães solteiras, por exemplo, carecem de programas de apoio e cuidados durante a migração. As redes de apoio que normalmente existem em seus países de origem são perdidas devido ao deslocamento.
É uma história pesada… Ela tinha três bocas para alimentar mas já que ela não sabia falar português perfeitamente, ela não conseguia fazer muita coisa. Mas ela tinha que pagar aluguel e dar comida as crianças, então em várias ocasiões, ela vendeu seu corpo. É horrível quando seus filhos acordam de manhã dizendo: “Mamãe, estou com fome.” Como você pode sizer a eles, “Não tem nada”? Ou seja, você aguenta a fome, mas eles não aguentam. (Laura Paussini, 2 de outubro 2021, Manaus, Brazil)
A insensibilidade cultural na resposta política às necessidades das mulheres migrantes, juntamente com a pobreza e a marginalização, são desafios comuns que as mulheres migrantes enfrentam, especialmente as mulheres indígenas, quando se trata de cuidados e autocuidado.
“O arroz é servido cru aqui, a carne é dura e o feijão é duro, então meu filho não comeu nada… Vou para a rua pedir comida.” Comecei a ir para a rua pedir dinheiro para conseguir comer – para comprar comida que eu poderia cozinhar com minhas próprias mãos para ajudar minha família. Das três semanas que passei no abrigo, só passei três dias na rua. Eu parei de ir porque o sol me dava dor de cabeça, e eu me sentia mal.” (Alicia, 15 de agosto 2021, Manaus, Brazil)
No caso das migrantes indígenas, não é apenas a precariedade de sua situação socioeconômica que as leva a mendigar nas ruas. A falta de acesso à alimentação culturalmente adequada nos abrigos leva as mulheres a irem às ruas pedir dinheiro para poder comprar sua própria alimentação — que, conforme narram, estão diretamente ligadas à sua sensação de bem-estar (e do bem-estar de quem elas cuidam, como demonstra Alicia). As mulheres apontaram várias barreiras para acessar e cozinhar alimentos tradicionais, o que, segundo elas, afeta sua saúde. De acordo com a cosmovisão Warao, a alimentação é um aspecto central da saúde que apóia a saúde individual da mulher — incluindo sua saúde sexual e reprodutiva.
Os muitos desafios que as mulheres migrantes enfrentam são agravados porque elas recebem pouco apoio, são jogadas à margem e, portanto, não são ouvidas. Mulheres e meninas em situação de deslocamento precisam de visibilidade, voz e cuidado para melhorar suas experiências de maternidade e cuidados durante a migração — que têm, conforme retratado pelas co-pesquisadoras da fotovoz, impacto direto em sua saúde. Por meio de seus relatos, é imperativo reconhecer os desafios de cuidado e autocuidado como centrais para alcançar uma boa saúde entre grupos de mulheres migrantes e abordar essas questões nas políticas de estado.
Formas de violência de gênero
A migração também expõe mulheres e meninas à violência. Mulheres que foram forçadas a se tornar estão particularmente expostas a riscos de exploração, violência sexual e comportamento sexual de risco para sobrevivência. Para uma mulher ou menina migrante, a possibilidade e a manifestação de violência de gênero são afetadas pela duração de sua jornada, seu meio de transporte, seu status legal, as políticas que concedem ou negam acesso a serviços sociais e de saúde amigáveis para migrantes, e as condições de trabalho e de vida a que está sujeita.
Embora o continuum de pobreza e riscos de gênero, danos e inseguranças no deslocamento de mulheres que foram forçadas a se tornar migrantes seja amplamente conhecido e estudado, as mulheres deslocadas que foram co-pesquisadoras em atividades da fotovoz identificaram não apenas as altas incidências de violência, mas também seu caráter profundamente negativo e impacto duradouro das formas de violência na saúde (física e mental) e no bem-estar das mulheres e seus filhos. Para Eolannis, por exemplo, sua foto lembra,
‘Bom, meu maior desafio foi quando eu morava em Pacaraima. Minha mãe tinha um marido e estava indo bem. Mas quando ela decidiu se separar dele, ele a ameaçou. Ele disse que ia matar ela, coisas assim. Ela o deixou, e por isso que eu tive que voltar para a Venezuela. Meu irmão estava na Venezuela. Usamos a oportunidade para fazer duas coisas ao mesmo tempo: fugir do namorado da minha mãe e buscar meu irmão. Foi só quando descobrimos que o ex da minha mãe tinha desaparecido ou foi mais pra dentro do Brasil que conseguimos voltar para este abrigo para mais uma vez recomeçar nossas vidas.’ (Eolannis, 16 de outubro 2021, Manaus, Brazil
Embora os abrigos satisfaçam algumas necessidades imediatas em relação aos riscos de violência de gênero, as mulheres lembraram como a falta de privacidade, em barracas e banheiros comunitários, onde centenas e centenas de migrantes dormem juntos e dividem um abrigo, as deixou particularmente inseguras. Tais estruturas de acolhimento não só as deixam mais vulneráveis a diferentes tipos de exploração, incluindo violência ou assédio sexual, mas também impactam diretamente sua saúde e direitos mentais, sexuais e reprodutivos. Isso também demonstra que as discussões sobre violência de gênero e da saúde sexual e reprodutiva no deslocamento vão muito além (embora incluam) formas físicas de violência; ocorrem nas sutilezas do cotidiano e determinam a sensação de segurança da mulher migrante em seu entorno, o que pode moldar suas decisões de ficar ou partir, em uma busca prolongada de proteção por meio do deslocamento.
Saúde
Muitas mulheres que entram no país por meios irregulares tornam-se indocumentadas, invisíveis e têm dificuldades de acesso a sistemas de proteção, informações documentais, abrigos e ao sistema universal de saúde. Se mulheres e meninas migrantes se tornarem invisíveis, elas cairão nas brechas de um sistema que privilegia quem entra pela “porta grande” oficial, aumentando a dependência no trabalho informal, exploração e relacionamentos abusivos.
Apesar disso, as mulheres e meninas deslocadas participantes compartilharam de forma esmagadora a sensação de que a prestação de serviços de saúde havia melhorado no Brasil em comparação com a situação precária na Venezuela. No entanto, suas narrativas desvelaram um cenário de saúde mais complexo para as mulheres migrantes. Por exemplo, embora reconheçam seu melhor acesso a contraceptivos, medicamentos e alguns tratamentos no Brasil em comparação com seu país de origem, as participantes relataram discriminação aberta e maus tratos por parte dos prestadores de serviços de saúde em alguns casos, o que eles entenderam ser por serem venezuelanos. Também houveram exemplos de desempoderamento na escolha do anticoncepcional, ou mesmo de proibição total de escolha, com casos de esterilização temporária sem o conhecimento da vítima.
As considerações culturais também são importantes para a saúde.
Florencia, uma participante da etnia Warao, por exemplo, relatou como a comida proporcionada pelo governo era diretamente ligada ao seu bem-estar em relação a saúde sexual e reprodutiva:
Estamos somente comendo Marmita [comida pre-feita pelo estado em abrigos]. Marmita, marmita, marmita… Eu tenho uma criança pequena. E os meus peitos? Não tenho peitos, eles estão secos de só comer essa marmita seca. E leite? Também não produzo leite. Essa criança vai morrer. E aonde eu consigo dinheiro para comprar leite? Alguém vai me ajudar? Não.” (21 de Agosto 2021, Manaus, Brazil)
Outra participante concordou:
Quando o leite seca, ele endurece. Dói e causa febre... se nós comemos comida seca, ela pode causar “a dor da mãe” como dizemos na Venezuela. (15 de Agosto 2021, Manaus, Brazil)
Uma boa saúde está cientificamente relacionada a um bom estado nutricional. No entanto, a cultura não desempenha um papel importante nesta definição do que implica uma boa nutrição em uma definição "científica" mais padronizada de nutrição. Assim, mesmo que a alimentação fornecida pelo governo seja “cientificamente” nutricional, essas mulheres correlacionam diretamente sua falta de bem-estar e má saúde sexual e reprodutiva com a alimentação que recebem. Para elas, ter uma boa saúde sexual e reprodutiva e bem-estar é comer uma alimentação que eles acreditam ser adequada, que se encaixe na forma como elas definem saúde a partir de sua cosmovisão.
Tudo isso demonstra a necessidade de centralizar as vozes das mulheres deslocadas na formulação de políticas públicas. Isso é importante porque o que os formuladores de políticas públicas podem normalmente conceber como prioridade, ou correto, pode não ser o caso para aquelas que recebem os benefícios destas políticas públicas. Além disso, tais narrativas possibilitam uma abordagem mais complexa de atenção à saúde dos migrantes, mesmo em contextos aparentemente positivos, como foi o caso do Brasil, abrindo espaço para melhorias no cuidado cotidiano. Ao centrar-se nas vozes das mulheres e meninas deslocadas, a fotovoz permite uma formulação de políticas baseada em evidências e centrada nas migrantes, que têm uma chance maior de melhorar a vida, a saúde e o bem-estar das mulheres deslocadas.
Juntas, as imagens e testemunhos neste livro retratam uma imagem holística de como os desafios para o gozo de proteção e direitos são parte integrante das experiências cotidianas de mulheres e meninas adolescentes migrantes. Elas também oferecem testemunho de por que políticas abrangentes, sensíveis ao gênero e à idade e baseadas em direitos são necessárias para garantir que todos os migrantes em geral — e mulheres e adolescentes principalmente — tenham vidas saudáveis, empoderadas e dignas. Compreender esses desafios e riscos requer acessar e responder ativamente ao conhecimento situado daqueles que os experimentaram. O livro termina com recomendações de políticas e práticas para fornecer condições que protejam mulheres e meninas deslocadas e que garantam vidas dignas e plenas – não apenas de sobrevivência – em total alinhamento com os direitos humanos de todos.
Barot, S. (2017) ‘In a State of Crisis: Meeting the Sexual and Reproductive Health Needs of
Women in Humanitarian Situations’, Guttmacher Policy Review 20: 24–30.
CARE International (2020) ‘An Unequal Emergency: CARE Rapid Gender Analysis of the
Refugee and Migrant Crisis in Colombia, Ecuador, Peru and Venezuela’ [report] <www.care.
org.ec/wp-content/uploads/2020/08/ENG_LAC_Regional_VZ_RGA_FINAL_compressed.
pdf>.
Bennett, W L, and A Segerberg (2012) ‘The logic of connective action’, Information, Communication & Society, 15:5, 739–68
Grantham, Kate; Eissler, Sarah. (2022) Resilient Communities Need Gender Data. Policy Brief. Data 2X. Available at: <https://data2x.org/resource-center/resilient-communities-need-gender-data-for-gender-equality/>. Accessed on June 15th 2023.
Grugel, Jean, Matt Barlow, Tallulah Lines, Maria Eugenia Giraudo (2022) The Gendered Face of COVID-19 in the Global South. Bristol: Bristol University Press
Harman, Sophie (2019) Seeing Politics: Film, Visual Method, and International Relations. McGill-Queen's University Press.
Menjívar, C. and Walsh, S. D. (2017) ‘The Architecture of Feminicide: The State, Inequalities,
and Everyday Gender Violence in Honduras’, Latin American Research Review 52:
221-240 <https://doi.org/10.25222/larr.73>.
La Plataforma de Coordinación Interagencial para Refugiados y Migrantes (R4V) (2022)
‘RV4 Latin America and the Caribbean, Venezuelan Refugees and Migrants in the Region’ [Report] <https://r4v.info/en/document/r4v-latin-america-and-caribbeanvenezuelan-
refugees-and-migrants-region-february-2022> [accessed 17 March 2022].
Rose, Gillian. (2012). Visual Methodologies: An Introduction to Researching with Visual Materials. London: Sage.
Quinless, Jacqueline M. (2022) Decolonizing Data: Unsettling conversations about social research methods. Toronto: University of Toronto Press.
Valdez, E. S., Valdez, L.A. and Sabo, S. (2015) ‘Structural Vulnerability Among Migrating
Women and Children Fleeing Central America and Mexico: The Public Health Impact of
“Humanitarian Parole”’, Frontiers in Public Health 3: 163-163 <https://doi.org/10.3389/
fpubh.2015.00163>.
Vanyoro, K.P., Hadj-Abdou L. and Dempster, H. (2019) ‘Migration Studies: From Dehumanising to Decolonising’, London School of Economics [blog] <https://blogs.lse.ac.uk/
highereducation/2019/07/19/migration-studies-from-dehumanising-to-decolonising/> [accessed 11 February 2022].
Pia Riggirozzi | ARGENTINA |
Codiretora do Centro Global de Saúde e Política (GHaP) da Universidade de Southampton. Pesquisadora principal no projeto ESRC Redressing Gendered Health Inequalities of Displaced Women and Girls in contexts of Protracted Crisis in Central and South America (ReGHID).
Natalia Cintra | BRASIL |
Pesquisadora do Departamento de Relações Internacionais e Política da Universidade de Southampton. Ela trabalha no projeto financiado pelo ESRC Redressing Gendered Health Inequalities of Displaced Women and Girls in situations of Protracted Displacement in Central and South America, ReGHID, onde é responsável por métodos e análises de pesquisa qualitativa.
Tallulah Lines | MÉXICO |
Artista Plástica, ativista e pesquisadora associada do Centro de Direitos Humanos Aplicados da Universidade de York.