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periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

Repensando o Acesso à Justiça para migrantes do Sul Global

Noções e mecanismos de acesso à justiça pela defesa da abordagem da redistribuição, reconhecimento e representação

Caroline Nalule e Heaven Crawley

| Gana | Reino Unido |

setembro de 2023

traduzido por Cassia da Rosa e Oliveira

O acesso à justiça para todas as pessoas é apontado como uma das premissas necessárias à redução das desigualdades como parte da agenda global de desenvolvimento sustentável, e é tradicionalmente entendido como a busca por justiça ou reparação, em particular em tribunais de justiça. O resultado é que o sentido jurídico é predominante na aplicação e conceitualização do termo, e os processos formais e tribunais de justiça são vistos como palco principal da realização dessa busca.

É importante, entretanto, notar que um relatório global de 2019 sobre acesso à justiça revelou que a maioria das pessoas não recorre a um advogado ou tribunal para resolução de suas contendas; isso se deve a diversos fatores, inclusive o fato de muitas pessoas não entenderem seus problemas como questões de direito, além dos obstáculos geográficos, financeiros e estruturais ao acesso a processos jurídicos formais e das barreiras culturais e institucionais, entre outros. Por conseguinte, uma proporção significativa da população mundial não goza de acesso relevante à justiça quando defrontada com as injustiças a que está submetida.

A população migrante, em geral, está entre os grupos marginalizados ou desfavorecidos mais vulneráveis a injustiças e violações de direitos, mas ainda é das que tem menos chance de conseguir reclamar as proteções oferecidas pelos sistemas jurídicos formais. A proteção a migrantes é considerada questão de interesse internacional. A Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) reconheceu a “situação de vulnerabilidade em que migrantes e seus familiares podem se encontrar, uma vez que estejam fora de seus Estados de origem, devido, entre outros fatores, às dificuldades decorrentes da discriminação social e diferenças na linguagem, costume e cultura, bem como dificuldades econômicas e sociais e obstáculos no retorno ao Estado de origem, especialmente para aqueles sem documentação ou em situação migratória irregular”.

A população migrante, em geral, está entre os grupos marginalizados ou desfavorecidos mais vulneráveis a injustiças e violações de direitos, mas ainda é das que tem menos chance de conseguir reclamar as proteções oferecidas pelos sistemas jurídicos formais

Este artigo é um estudo do acesso à justiça para migrantes do Sul Global, com base em pesquisas e descobertas do MIDEQ (Migration for Development and Equality – Migração para o Desenvolvimento e a Igualdade) Hub, um projeto de cinco anos de duração financiado pelo UKRI-GCRF (UK Research Institute Global Challenges Research Fund – Fundo de Pesquisa Desafios Globais para Institutos de Pesquisa do Reino Unido). Como parte do trabalho, o MIDEQ Hub se dedica a analisar e compreender melhor o acesso de migrantes à justiça, com o objetivo de promovê-lo. A análise se baseia em dados de injustiças enfrentadas por migrantes em seu cotidiano.

 

As injustiças enfrentadas por migrantes

Nem todo/a migrante enfrenta as mesmas injustiças, e nem todos os que as enfrentam o fazem da mesma forma. O/a migrante pode sofrer injustiças com base em sua situação migratória ou de emprego, sua formação, gênero, idade, raça etc. Diversos relatórios do Relator Especial dos Direitos Humanos de Migrantes da ONU apontam uma profusão de violações gerais de direitos humanos que o/a migrante pode sofrer, bem como violações a direitos específicos a que diferentes grupos de migrantes – mulheres, crianças desacompanhadas, trabalhadores/as, trabalhadores/as domésticos/as e migrantes sem documentação, por exemplo – são mais suscetíveis.

A detenção arbitrária, inclusive de crianças, aliada à exploração do trabalho, inclusive o não pagamento de salário, ausência de documentação, retenção de passaporte, falta de resguardo social, xenofobia, racismo e discriminação são apenas alguns exemplos de violações comumente sofridas por muitos/as migrantes. A pesquisa realizada pelo MIDEQ constatou a preponderância dessas e outras violações em muitos países, inclusive os doze países do Sul Global em que estão baseados/as os/as pesquisadores/as do MIDEQ.

Apesar dessas injustiças, muitos/as migrantes não se encontram em condições de acionar mecanismos formais de justiça para obter reparação, pelos mais diversos motivos. Um exemplo é a falta de separação entre a fiscalização imigratória e outros serviços públicos, que constrange a denúncia de violações por parte de migrantes sem documentação. Trabalhadores/as migrantes com contrários temporários podem não conseguir prestar e acompanhar queixas de retenção dolosa de salário pelo empregador no país de destino uma vez que saiam do país. A falta de apoio e assistência jurídica, de informação quanto aos dispositivos disponíveis e outros obstáculos estruturais contribuem para a impossibilidade de acesso aos processos jurídicos formais por parte de migrantes. Em alguns casos, contudo, a pessoa migrante possa escolher dirimir suas disputas jurídicas ou reclamar reparação por injustiças que sofreu, não por meio de mecanismos legais e jurídicos formais, mas da justiça informal.

Os diversos obstáculos enfrentados por migrantes no acesso à justiça e a sua exclusão de mecanismos formais de justiça nos levam a defender uma abordagem mais ascendente desse acesso, que se distancie da conceitualização predominante, de cima para baixo. 

 

Nossa abordagem proposta ao acesso à justiça 

 “Shrinking the Justice Gap: Rethinking Access to Justice for Migrants in the Global South”[Reduzindo a disparidade jurídica: como repensar o acesso à justiça para migrantes do Sul Global], nosso documento para discussão, produzido no Centro Universitário da ONU para Pesquisa em Políticas delineia nosso argumento em relação aos motivos pelos quais essa abordagem requer mudanças, o que, acreditamos, beneficiaria a pesquisa e a intervenção política em questões migratórias. Segue uma sinopse dos elementos principais.

Em primeiro lugar, notamos a frequência com que a pesquisa ou análises sobre acesso à justiça não centralizam a experiência da pessoa migrante, que não raro é tratada como objeto de pesquisa ou vítima, em vez de como sujeito em busca de justiça. Intervenções normativas com o objetivo de melhorar a lei com a inclusão do acesso à justiça também desconsideram os costumes, tradições e leis de seus pretensos beneficiários nos países onde vivem os/as migrantes. Por conseguinte, essas intervenções podem não ter o efeito de melhorar de fato o acesso à justiça entre os grupos afetados. Nosso argumento, portanto, é que “apenas por meio da compreensão dos problemas da justiça a partir da perspectiva do/a migrante, inclusive do modo como essa pessoa lida com a injustiça, e por meio da exploração dos caminhos possíveis da justiça à sua disposição, podemos começar a testar e implementar respostas com foco em resultados de justiça significativos e centrados nos migrantes”.

Em segundo lugar, a compreensão predominante do acesso à justiça é, em sua ênfase em mecanismos jurídicos formais, eurocêntrica e centrada no estado, e exclui muitas das pessoas que não conseguem acessar esses mecanismos e processos. Assim, muitos dos povos pobres, marginalizados e desfavorecidos do mundo não contam com sistemas de justiça formais, mas com mecanismos informais de resolução de disputas ou estruturas não formais, que vão de sistemas jurídicos tradicionais ou populares constituídos de anciãos, ou famílias, da comunidade. Outros atores da justiça informal abrangem ONGs, grupos de mulheres e organizações sociais locais.

Nossa defesa, então, é de uma abordagem do acesso à justiça que leve mais do que apenas instituições e mecanismos tradicionais e formais em consideração. O entendimento e aplicação geral do termo “acesso à justiça”, além disso, precisa exceder a mera justiça processual, e envolver aspectos mais amplos da justiça social. Neste sentido, a justiça pode ser vista como função de outros provedores serviços públicos e unidades administrativas como escolas, hospitais, autoridades migratórias, departamentos de questões trabalhistas etc., cujo mandato expresso não seja especificamente jurídico. Essas instituições devem prover serviços a todos e todas igualmente, sem discriminação ilegal. O acesso à justiça deve incluir o acesso não só a mecanismos alternativos de resolução de disputas, como também outras estruturas de realização da justiça cujo papel seja garanti-la a todas as pessoas.

O acesso à justiça deve incluir o acesso não só a mecanismos alternativos de resolução de disputas, como também outras estruturas de realização da justiça cujo papel seja garanti-la a todas as pessoas

Em terceiro, ainda em relação às conotações jurídicas que tem, o acesso à justiça é amplamente discutido em termos da justiça processual. Resulta que a maior parte das intervenções para ampliação do acesso à justiça se dirige a tornar os processos legais formais e tribunais mais acessíveis para cidadãos e cidadãs pobre e marginalizados.

Tais intervenções podem, por exemplo, incluir o aumento do número de policiais e assistentes paralegais, bem como expansão da infraestrutura associada, melhorando a oferta de auxílio jurídico, construção de mais tribunais que sejam mais eficientes, e promoção de educação e consciência jurídica, entre outros.Embora possam ser necessárias, essas intervenções dão ênfase ao aspecto técnico do acesso à justiça, desviando o foco das questões centrais de desigualdade estrutural e injustiça substantiva (principalmente o patriarcado, o racismo e o  capitalismo) e surtindo um efeito despolitizante. Por exemplo: uma representação jurídica, mesmo uma de qualidade, não necessariamente solucionará questões sociais como racismo, discriminação ou quaisquer desigualdades.

Ainda que o litígio estratégico possa ajudar a atrair atenção para essas questões e acionar os poderes executivo e legislativo, esse mesmo fato demonstra os limites da ação judicial. A solução dessas questões necessariamente envolverá ação política, social econômica, e outras, além do alcance do sistema judiciário (um exemplo é o chamado à ação coletiva no Brasil para confrontar o seu legado de racismo).

Defendemos que qualquer noção e abordagem do acesso à justiça deva ter por objetivo a resolução de questões de justiça substantiva. Concordamos com a abordagem que concebe três dimensões da justiça: redistribuição, reconhecimento, e representação.  A dimensão de distribuição se refere à estrutura econômica da sociedade, e objetiva combater a desigualdade de classes; a dimensão de reconhecimento se refere à organização de status da sociedade, e pretende combater hierarquias socioculturais como a discriminação racial e outras relacionadas; e a dimensão da representação se refere à participação política, e ao combate das exclusões de processos políticos, ou o silenciamento político.

A concepção do acesso à justiça, a partir desta perspectiva, abre caminhos para melhorá-lo para diversos grupos desprivilegiados, inclusive o de migrantes. Esta abordagem reconhece que, embora o acesso à justiça possa exigir ainda intervenções judiciais e processos legais formais para reparar injustiças individuais ou coletivas, ele também não prescinde da ação política para garantir justiça para todos/as.

Defendemos que qualquer noção e abordagem do acesso à justiça deva ter por objetivo a resolução de questões de justiça substantiva. Concordamos com a abordagem que concebe três dimensões da justiça: redistribuição, reconhecimento e representação

Nosso quarto e último argumento refere-se à pesquisa e intervenções no acesso à justiça que, em sua maioria, tendem a um foco na experiência da pessoa migrante enquanto migrante. Isto é particularmente verdadeiro no que toca os direitos de trabalhadores/as migrantes.

Embora migrantes sejam especificamente as vítimas de algumas injustiças em decorrência de sua situação, e, portanto, a resposta a elas precise estar concentrada no/a migrante, também é preciso atentar para quais dessas injustiças também são sofridas por cidadãos e cidadãs marginalizados/as. Migrantes também encontram alguns obstáculos específicos no acesso à justiça, mas outros se imporão e nacionais e naturalizados/as. Isolar a experiência de migrantes com a justiça, quando na verdade ela intersecta a de nacionais e naturalizados/as pode obscurecer formas estruturais de opressão e prejudicar a solidariedade entre grupos afetados por questões semelhantes. 

Na condução de análises e pesquisa sobre migração, ou na elaboração de intervenções que possam melhorar o acesso de migrantes à justiça, talvez a situação migratória não seja o principal critério para determinar as injustiças sofridas pelas pessoas. Categorias de diferença como gênero, idade, raça e renda, podem ser mais relevantes para a compreensão da natureza da injustiça, quem ela afeta e como pode ser reparada. É importante, portanto, que a pesquisa, bem como outras intervenções, atente para injustiças a obstáculos interseccionais e desenvolvam soluções significativas, que transcendam a separação entre migrantes e nacionais ou naturalizados/as.

Esperamos que esta abordagem ampla e ascendente ao acesso à justiça, que abrange, mas também ultrapassa a proteção judicial e que se atenta para desigualdades estruturais, possa abrir espaço para a promoção de intervenções mais significativas e sustentáveis. Esperamos também que possa ajudar a conectar as experiências de injustiça de migrantes (ou nacionais e naturalizados/as) em diferentes contextos. Por fim, esperamos que possa ajudar a promover discussões sobre o acesso de migrantes à justiça que não se limitem a questões estritamente jurídicas, e, portanto, menos presas a conceituações formais de justiça que dominaram os debates políticos e sobre políticas no Norte Global.


 

Caroline Nalule | GANA |

Pesquisadora ganense associada ao MIDEQ com foco em acesso à justiça. Também é Pesquisadora associada no Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas (UNU-CPR).

Heaven Crawley | REINO UNIDO |

Dirige o MIDEQ Hub. É Head no Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas e Cátedra em Migração Internacional na Universidade de Coventry.

@heavencrawley

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