Andrio Candido
Cultura operária e poética
Amauri Eugênio Jr
| Brasil |
dezembro de 2019
Cultura operaria e poética
Definir o artista e o homem Andrio Candido é uma tarefa das mais difíceis, para não dizer impossível, quando é visto com olhos desatentos. Parte fundamental disso é consequência do seu perfil multitarefas, uma vez que ele milita em diversas áreas. Mas parte importante da equação para entender Andrio está no modo como ele se define. “Sou um operário da cultura. Enquanto artista, eu dialogo entre a escrita e a interpretação, [como] ator e escritor. Enquanto agente cultural, eu produzo, opero áudio, sou arte-educador, educador social, professor de história, homem negro e pai da Loren.”
Ainda assim, mais do que ser um operário da cultura, as raízes de Andrio são partes fundamentais para entender quem ele é. OK, ele até chegou a flertar com a verve do teatro marginal dos anos 1970, com destaque para a obra de Plínio Marcos (1935-1999), e tentou buscar referências na gringa - Charles Bukowski (1920-1994) e Tennessee Williams (1911-1983) que o digam.
Contudo, o lance que o fisgou foi a literatura periférica, a começar pelo salto de perspectiva que esse estilo literário lhe possibilitou dar na carreira, valendo desde como signo de autoidentificação a até mesmo como instrumento de trabalho. “[A literatura periférica] é sobre mim, é sobre nós. Eis o trunfo. Eis porque a influência [que teve] sobre a trajetória, autoestima e, consequentemente, a construção de identidade. É sobre nós, não [são] devaneios da vida burguesa que não conhecemos, ou passados excludentes perversos e castradores. É o agora, é sobre mim e é libertador. É primavera.”
O homem multitarefas
Ter descoberto a literatura periférica e ter se descoberto graças a ela foram aspectos fundamentais para Andrio Candido ter se tornado um homem multitarefas - ou, retomando o modo como ele se define, “um operário da cultura”. O seu texto, cujas características que saltam de imediato aos olhos são a fluidez, a agilidade e a identificação instantânea com o contexto descrito nas linhas escritas por ele.
A fluidez e a agilidade estão diretamente conectadas com a sua trajetória, que está longe de ser linear - você entenderá o porquê nas próximas linhas. Basta dizer que o interesse pela leitura surgiu desde quando ele era muito jovem, sendo o pontapé inicial com revistas de mangá e jogos de RPG, cujas narrativas serviram como fonte de inspiração para rascunhar as primeiras histórias.
Se o RPG foi importante para Andrio dar os primeiros passos literários, a poesia, que chegou tarde, revelou-se o caminho a ser trilhado: os saraus surgiram na vida dele quando já tinha 22 anos e estava envolvido com o mundo teatral a ponto de perseguir, em paralelo, a carreira de ator. Mas, paixão não tem idade: foi à primeira vista. “Minha trajetória não foi linear, nem sequencial: foi cheia de obstáculos superados com muita garra e dedicação. Isso é refletido nas minhas obras, pois os meus textos em prosa nunca são lineares e demoro um bocado pra terminá-los. Já a poesia, apesar de ser construída relativamente rápida, precisa ser orgânica. Preciso senti-la e vivenciá-la de alguma forma, seja por meio de traumas, dificuldades ou êxtases.”
Um olho na tela...
A vibe nada linear da caminhada de Andrio rende alguns cruzamentos de trabalhos dele em áreas com dinâmicas diferentes, mas complementares. Além de ter levado o prêmio de melhor ator no 1º Festival Estudantil de Teatro de Caraguatatuba, em 2002, ele chegou a participar de séries como Turma do Gueto, Carandiru - Outras Histórias e Antonias. Além disso, o artista multitarefas participou também de filmes como Boleiros 2, de Ugo Giorgetti, e Os 12 Trabalhos, de Ricardo Elias.
Ainda assim, a essência nada linear de sua caminhada, o background vasto e a vontade de mostrar o seu valor falavam alto - muito alto. O longa-metragem Um Salve Doutor, dirigido por Rodrigo de Sousa & Sousa, é um exemplo clássico disso: ele escreveu o roteiro e foi protagonista da obra, na qual KPG, um jovem que passou três anos na Fundação Casa em cumprimento de medida socioeducativa, tenta encontrar um novo rumo na vida e passa por uma série de plot twists ao apaixonar-se por uma jovem de uma classe social diferente da dele.
O roteiro de Um Salve Doutor foi, de acordo com Candido, uma miscelânea de processos - “foi um expurgo, um parto, [foi] dolorido e importante.” A motivação? A ausência? “ausência de oportunidades no audiovisual, ausência de paternidade nos meus educandos e a presença opressora do estado nestes espaços. Ao mesmo tempo, eu vivia uma primavera, vivia fundamentalmente do trabalho com a cultura, havia recém-descoberto o saraus e os slams e recém-construído um coletivo que rapidamente havia se tornado referência na periferia. [O resultado foi] esse mix dramático de tapas e beijos, violências…”, descreve.
… Outro olho nas folhas
Se, por um lado, Andrio tem o lado teatral pulsante, a sua vibe literária corre nas veias. E não é exagero dizer que ambas se retroalimentam e têm como resultado a poesia.
A obra Dente de Leão, lançada em 2017, foi o primeiro voo solo dele no rolê poético - ou, como ele mesmo explicou na descrição geral da obra, “é poesia voando”. E você achou que ele pararia por aí? Achou errado. Andrio lançou, recentemente, o livro em prosa Corre! pela Fundação Educar DPaschoal, que é voltado ao público infanto-juvenil. Na trama, o garoto Bruno, protagonista da obra, está à beira de completar 18 anos e leva a vida de um adolescente na quebrada: apesar de estar preocupado com o vestibular, vive sem grandes preocupações e dedicado a passar horas jogando futebol e divertindo-se no videogame. Isso até o dia em que atinge a maioridade e um evento familiar desperta nele o senso de responsabilidade - ou fazer o corre! pela evolução.
Apesar de haver um elemento autobiográfico aqui e ali, os elementos externos têm influência importante nesse cenário. “Bruno assume os espaços do Andrio, como família, amigos, festas e cultura de rua. Mas a trajetória e motivação foram criadas para causar identificação com o público infanto-juvenil da periferia.” E, afinal, quais são os elementos externos que ajudaram na construção da obra? O olhar sobre a vida. “[Corre!] vem da observação dos meus educandos como professor de escola pública, da Fundação Casa e de abrigos juvenis. A minha observação e escuta pelos lugares onde lecionei e fui educador me influenciaram diretamente a compor essa obra.”
E é o olhar para a vida que torna Andrio Candido um ser humano inquieto e polivalente. É esse olhar que o possibilita a falar sobre RPG, Bukowski, mangá, saraus, literatura periférica, cinema, teatro e poesia com naturalidade. É esse olhar que o possibilita a ser um operário da cultura. “Observo muito o meu exterior e o meu entorno, e o relaciono com o meu mundo interno. Animais, plantas, o mar e a cidade se relacionam com o que estou sentindo ou vivendo naquele momento, [o que] varia de sentimento para sentimento. Mas consigo, com frequência, correlacioná-lo com o exterior que me cerca.”
Amauri Eugênio Jr. | BRASIL |
Jornalista. Cinéfilo, Crítico cultural wannabe e interessado por assuntos relativos a direitos humanos e minorias. Analista de comunicação na Fundação Tide Setubal
amauri@ftas.org.br