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IDeA: indicador de desigualdades e aprendizagens

O Direito de todos à educação de qualidade

Mauricio Ernica
Maria Alice Setubal

| Brasil |

10 de dezembro de 2019

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A defesa do direito à educação requer indicadores educacionais para a verificação de sua realização. Com eles, é possível tanto produzir descrições e explicações precisas da realidade educacional, identificando avanços e desafios, quanto formular políticas públicas adequadas. A construção desses indicadores, por sua vez, depende de como se define o direito à educação, a realidade que se deseja ver realizada. 

A Constituição Federal de 1988 define a educação como um direito universal. Diante disso, consideramos que o direito à educação estará atendido se, e somente se, em idade adequada, cada pessoa: a) tiver acesso à matrícula escolar, b) permanecer matriculada e realizar trajetória escolar regular durante a educação básica obrigatória e c) tiver adquirido, ao final da escolarização básica obrigatória, os aprendizados necessários para participar das atividades sociais que requerem os saberes escolares.

Os indicadores existentes no Brasil, hoje, nos permitem ver que, desde a redemocratização, o país vem enfrentando com êxito o desafio de assegurar o direito à educação, tendo produzido avanços que devem ser celebrados. Apesar disso, com a expansão das oportunidades educacionais, os desafios se transformaram e hoje assumem novas formas. Por isso, novos instrumentos de verificação do direito à educação, ajustados aos desafios do momento, são necessários.

O IDeA aborda a aprendizagem. A premissa em que se baseia é que, em um sistema de ensino justo, todos os grupos sociais devem ter acesso igual à aprendizagem de qualidade; isto é: todos os grupos sociais, equitativamente, devem atingir patamares mínimos de aprendizagem e, ainda, possuir as mesmas chances de que alguns de seus indivíduos atinjam os níveis mais altos de proficiência

Em 1980, cerca de 85% das crianças brasileiras eram matriculadas na primeira série. No entanto, as taxas de reprovação praticadas no sistema de ensino brasileiro naquela época eram elevadíssimas: eram cerca de 40% na primeira série, caindo para aproximadamente 25% até a 4a série; depois, voltavam a subir para aproximadamente 45% na 5o série, para novamente atingirem cerca de 25% na 8a série1(KLEIN; RIBEIRO, 1998).

Um dos resultados produzidos por tamanha seletivamente foi que, em 1980, menos da metade da população entre 12 e 15 anos concluía os quatro primeiros anos de estudo e apenas 25% dos adolescentes entre 16 e 18 anos concluíam os oito primeiros anos de estudo2(RIBEIRO, CENEVIVA, BRITO, 2015, p. 87).

Tínhamos, portanto, um sistema de ensino que permitia a progressão de poucos e que concentrava os estudantes nas suas séries iniciais, até que muitos evadissem. Os poucos que tinham acesso aos níveis mais elevados da escolarização básica e ao Ensino Superior pertenciam, majoritariamente, às classes médias e altas urbanas.3(RIBEIRO, CENEVIVA, BRITO, 2015, p. 87; BRITO, 2017) 

Após a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, o país enfrentou com sucesso os problemas do acesso e da permanência na educação básica. Desde então, os desafios relativos à conclusão das etapas da escolarização básica foram deslocados para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio.  Em 2010, o acesso ao primeiro ano estava praticamente universalizado, cerca de 90% dos adolescentes entre 12 e 15 anos concluíam os primeiros 4 anos de estudo e cerca de 70% da população entre 16 e 18 anos havia concluído os oito primeiros anos da escolarização.4(RIBEIRO, CENEVIVA, BRITO, 2015, p. 87)

Além de enfrentar os desafios do acesso e da progressão, a partir dos anos 1990, o país assumiu outro desafio fundamental para assegurar o direito à educação: colocou a qualidade da aprendizagem no centro da agenda educacional. Nos anos 2000, com a Prova Brasil e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o IDEB5(FERNANDES, 2007), estipulamos metas ambiciosas de aprendizagem, que pretenderam diminuir a distância que nos separa dos países da OCDE.

Desde então, a qualidade da aprendizagem melhorou de modo expressivo nas séries iniciais do Ensino Fundamental, embora nas suas séries finais o avanço tenha sido menor e, no Ensino Médio, quase não tenha havido progresso. De fato, entre 2007 e 2015, a média nacional em Língua Portuguesa na Prova Brasil do 5o ano aumentou cerca de 30 pontos. Esse resultado deve ser celebrado, pois 20 pontos correspondem, aproximadamente, à aprendizagem esperada em um ano escolar.

Esse retrato, que evidencia a expansão das oportunidades educacionais no país, é bem conhecido. Mas ele é incompleto. A análise da realização do direito à educação, além de observar esses resultados gerais, deve fazer uma indagação mais precisa: dada a expansão das oportunidades educacionais, os indivíduos dos diferentes grupos sociais estão tendo as mesmas chances de se apropriar delas, assegurando o seu direito à educação? Em outros termos: os indivíduos dos diferentes grupos sociais estão tendo garantido o seu direito a, na idade adequada, a) ter acesso à matrícula escolar, b) concluir as etapas da educação básica e c) aprender o necessário para participar das atividades da vida social que requerem os saberes escolares?

A resposta a essa pergunta é não, pois, junto da expansão das oportunidades educacionais, novas formas de desigualdade vêm se produzindo. No que que diz respeito à conclusão de etapas da escolarização, enquanto as classes mais altas estão cada vez mais escolarizadas, concluindo mais frequentemente toda a Educação Básica, os estudantes das classes sociais mais baixas permanecem sendo o grupo mais exposto ao risco de ter a escolarização mais curta, não concluindo o Ensino Fundamental e, ainda menos, o Médio6(RIBEIRO, CENEVIVA, BRITO, 2015; BRITO, 2017).

Por sua vez, quando se analisa a aprendizagem, nota-se que a evolução dos resultados médios oculta a crescente desigualdade de aprendizagem entre grupos sociais. Efetivamente, a evolução positiva da média foi produzida pela progressão maior dos resultados dos grupos em posição de vantagem na escola pública – os de maior nível socioeconômico e os brancos –, que aumentaram sua vantagem sobre os estudantes de menor nível socioeconômico e pretos, respectivamente7(ALVES, SOARES, XAVIER, 2016). Por exemplo, entre 2007 e 2015, enquanto os resultados médios em Leitura no 5o ano melhoraram 30 pontos, a desigualdade entre o desempenho das meninas brancas de maior nível socioeconômico e dos meninos pretos de menor nível socioeconômico saltou de 44 para 59 pontos.

Por mais que se deva reconhecer a importância dos indicadores educacionais existentes, em especial do IDEB, para o debate educacional do país, deve-se dizer que indicadores baseados em médias são insuficientes para se observar as desigualdades na realização do direito à educação.

Por mais que se deva reconhecer a importância dos indicadores educacionais existentes, em especial do IDEB, para o debate educacional do país, deve-se dizer que indicadores baseados em médias são insuficientes para se observar as desigualdades na realização do direito à educação

Tendo em desafio em mente, um grupo de pesquisadores liderados pelo professor José Francisco Soares (UFMG)8A seguinte equipe elaborou o IDeA: José Francisco Soares, Professor Emérito da UFMG e membro do Conselho Nacional de Educação, concebeu o IDeA e liderou o seu desenvolvimento; Erica Castilho Rodrigues (UFOP) integrou a equipe de pesquisadores, sendo corresponsável pelo desenvolvimento do IDeA; Mauricio Ernica (Faculdade de Educação da Unicamp) coordenou e integrou a equipe que desenvolveu o IDeA; Victor Maia Senna Delgado (UFOP) integrou a equipe de pesquisadores nas etapas iniciais do projeto., apoiados pela Fundação Tide Setubal, desenvolveu o Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA), disponível em www.portalidea.org.br

Ao propor mais um indicador, os pesquisadores querem acrescentá-lo a outras medidas existentes. Afinal, a verificação do direito à educação requer um conjunto de indicadores que abordem suas diferentes dimensões.

O IDeA aborda a aprendizagem. A premissa em que se baseia é que, em um sistema de ensino justo, todos os grupos sociais devem ter acesso igual à aprendizagem de qualidade; isto é: todos os grupos sociais, equitativamente, devem atingir patamares mínimos de aprendizagem e, ainda, possuir as mesmas chances de que alguns de seus indivíduos atinjam os níveis mais altos de proficiência.

Como ensina Bobbio (1993), igualdade e desigualdade são relações e, para analisá-las, é preciso definir quem é igual ou desigual e em relação a quê. Assim, para analisar se há ou não desigualdade de aprendizagem em uma dada realidade, é preciso definir a unidade de análise: desigualdade entre quem?

O IDeA assume como unidade de análise grupos de estudantes. Com isso, define como desigualdades educacionais as diferenças entre as distribuições de resultados educacionais de grupos de estudantes definidos por três atributos altamente tradicionalmente considerados na abordagem das desigualdades educacionais: nível socioeconômico, raça e gênero.

O IDeA assume como unidade de análise grupos de estudantes. Com isso, define como desigualdades educacionais as diferenças entre as distribuições de resultados educacionais de grupos de estudantes definidos por três atributos altamente tradicionalmente considerados na abordagem das desigualdades educacionais: nível socioeconômico, raça e gênero

As diferenças de aprendizagem entre as distribuições de grupos de estudantes definidos por esses atributos sociais não são aceitáveis e devem ser consideradas problemas prioritários de políticas públicas, pois elas indicam que pertencer a um dado grupo social modifica a chance do conjunto dos seus indivíduos aprenderem mais ou menos; ou seja, modifica a chance de ter seu direito à educação atendido.

Entre indivíduos pode haver, sob certas condições precisas, diferenças de aprendizagem  aceitáveis para a política pública. Destacamos duas condições. A primeira é que as diferenças devem se dar apenas entre indivíduos no interior do grupo e não entre grupos. A segunda é que indivíduos com resultados de aprendizagem mais altos são aceitáveis se, além deles serem encontrados com a mesma frequência em todos grupos, for universalizado um patamar mínimo de aprendizagem que permita aos indivíduos com menor desempenho participarem das atividades da vida social que demandam os saberes escolares.

O IDeA foi calculado para cada município brasileiro, tanto para o 5° como para o 9° ano, a partir de resultados da Prova Brasil de 2007 a 2015. Ele mede, ao mesmo tempo, duas dimensões, que apontam duas situações que devem ser asseguradas simultaneamente para que o direito à educação de qualidade seja assegurado.

A primeira dimensão do IDeA é uma medida da qualidade da aprendizagem: o nível da aprendizagem do conjunto dos estudantes do município em Leitura e em Matemática, no 5o e no 9o ano. O nível de aprendizagem foi calculado a partir da medida da distância entre a distribuição da aprendizagem do conjunto dos estudantes de cada município observado e uma distribuição de referência, assumida como um padrão desejável para o país nesse momento. Essa distribuição de referência foi construída a partir da translação para a escala da Prova Brasil do resultado no PISA de um típico da OCDE.9(SOARES, RODRIGUES, ERNICA, 2019)

A segunda dimensão do IDeA é formada por medidas das desigualdades de aprendizagem entre grupos de estudantes do interior de cada município, em cada uma dessas disciplinas, em cada um dos anos escolares. Tanto para Leitura, como para Matemática, seja no 5°, seja no 9° ano, são calculadas três medidas de desigualdades, que são as distâncias entre as distribuições de aprendizagem entre grupos definidos por nível socioeconômico, raça e gênero. Essas medidas comparam as distribuições de resultados de estudantes de menor e maior nível socioeconômico; de autodeclarados pretos e brancos; de meninas e meninos.

Desse modo, ao todo, para cada município brasileiro, o IDeA calcula 12 pares de indicadores, observando sempre e ao mesmo tempo, uma medida de nível de aprendizagem e uma medida de desigualdade. Idealmente, espera-se que os municípios assegurem nível de aprendizagem alto nas duas disciplinas, nos dois anos escolares, e equidade entre grupos de estudantes definidos por seu nível socioeconômico, sua raça e seu gênero.

Quando se observa os resultados do conjunto dos municípios brasileiros, percebe-se grandes regularidades.

A primeira regularidade é que o Brasil assegura situações de equidade de aprendizagem em Leitura e em Matemática, entre grupos definidos por nível socioeconômico e raça, com muito maior frequência nos municípios com nível da aprendizagem baixo do que nos municípios com nível da aprendizagem alto; ou seja, a equidade entre grupos socioeconômicos e raciais é mais frequente quando todos aprendem muito pouco, sendo que, quando há maior nível de aprendizagem, a equidade entre eles é rara e as desigualdades são frequentes, favorecendo os estudantes de maior nível socioeconômico e os brancos.

A primeira regularidade é que o Brasil assegura situações de equidade de aprendizagem em Leitura e em Matemática, entre grupos definidos por nível socioeconômico e raça, com muito maior frequência nos municípios com nível da aprendizagem baixo do que nos municípios com nível da aprendizagem alto; ou seja, a equidade entre grupos socioeconômicos e raciais é mais frequente quando todos aprendem muito pouco, sendo que, quando há maior nível de aprendizagem, a equidade entre eles é rara e as desigualdades são frequentes, favorecendo os estudantes de maior nível socioeconômico e os brancos

Isso pode ser ilustrado com os resultados para Leitura no 5° ano. Encontramos 1536 municípios com nível de aprendizagem baixo ou médio-baixo; desses, 728 (47%) estão em situação de equidade entre grupos socioeconômicos e 990 (64%) em situação de equidade entre grupos raciais. Por outro lado, encontramos 1083 municípios com nível de aprendizagem alto; desses, apenas 20 (1,8%) estão em situação de equidade entre grupos socioeconômicos e 83 (7,7%) estão em situação de equidade entre grupos raciais.

A segunda regularidade é que as desigualdades por gênero tem comportamento específico. Ainda no que se refere ao 5° ano, há muito mais municípios com equidade por gênero em Matemática do que em Leitura, sendo que o percentual desses municípios varia pouco ao longo dos níveis de aprendizagem. Em Matemática, dentre os municípios desiguais, em 62% deles os meninos estão situação de vantagem e em 38% desses a vantagem é das meninas. Por sua vez, em Leitura, em praticamente 100% dos municípios desiguais, as meninas têm vantagem sobre sobre os meninos.

Quando se observa municípios específicos, o IDeA permite ver, com detalhes, suas conquistas e também os desafios que se apresentam para cada um deles. Todos os municípios têm desafios, mesmo aqueles poucos que já conseguiram avançaram mais na garantia de nível de aprendizagem alto e equidade entre alguns grupos. Isso porque nenhum município assegura simultaneamente, no 5º e no 9º ano, nível de aprendizagem alto em Leitura e em Matemática e, em todos esses casos, equidade por nível socioeconômico, por raça e por gênero.

Ao construirmos o IDeA, reconhecemos e celebramos os muitos avanços que o país produziu  na garantia do direito à educação desde a redemocratização. O Brasil já assumiu desafios importantes e é chegada a hora de assumir mais um: a educação de qualidade deve ser para todas e para todos, sem exceção. Afinal, só teremos, efetivamente, uma educação de qualidade quando, além de assegurarmos o acesso à matrícula escolar e a trajetória escolar regular, garantirmos que todos os grupos sociais tenham acesso igual à aprendizagem de qualidade, sem que nenhum grupo seja exposto ao risco da baixa aprendizagem. 


 

ALVES, Maria Teresa Gonzaga; SOARES, José Francisco; XAVIER, Flávia. Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: hiato entre grupos sociais. Revista Brasileira de Sociologia, vol 04, n. 07, jan-jun, 2016.

BOBBIO, N. Igualdad y libertad. Barcelona: Ed. Paidós Ibérica, 1993.

BRITO, Murillo Marschner Alves de. Novas tendências ou velhas persistências? Modernização e expansão educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, vol 47, n. 163, p. 224-263, jan-mar 2017.

FERNANDES, R. Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007. Textos para Discussão n. 16. 26 p.

KLEIN, Ruben; RIBEIRO, Sergio da Costa. A pedagogia da repetência ao longo das décadas. Ensaio: Avaliações e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 3, n. 20, p. 55-61, jul./set. 1998.

RIBEIRO, Carlos Antonio Costa; CENEVIVA, Ricardo; BRITO, Murillo Marschner Alves de. Estratificação educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010. In: Arretche, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Centro de Estudos da Metrópole e Ed. Unesp, 2015.

SOARES, José Francisco; ERNICA, Mauricio; RODRIGUES, Erica Castilho. IDeA – Indicador de Desigualdades e Aprendizagens – Nota  Técnica. São Paulo: 2018. Disponível em: www.portalidea.org.br

Mauricio Ernica | Brasil |

Professor da Faculdade de Educação da Unicamp e Conselheiro da Fundação Tide Setubal

ernica@unicamp.br

Maria Alice Setubal | Brasil |

Presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal

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