Especial

periferias 4 | escola pública: potências e desafios

foto: Hawar news Agency | ilustração: Juliana Barbosa

A pedagogia da convivência linguística nas escolas curdas de Rojava

Novo modelo educacional sob ameaça da guerra

Daniel Martins
Edmund Ruge

| Síria |

Em agosto de 2019, após a publicação de "A luta curda por democracia e igualdade de gênero na Síria" na terceira edição, Periferias passou a manter contato com o Rojava Information Center (RIC), organização independente que se dedica a subsidiar trabalho jornalístico internacional em Rojava, nordeste da Síria. Em setembro, o RIC nos colocou em contato com Becet Hussein, membro da Direção de Escolas do Cantão de Qamishli e, em Setembro de 2019, conversamos sobre modelos alternativos educacionais em Rojava.

 

A experiência de uma educação radicalmente democrática: o modelo revolucionário de Rojava em risco pela geopolítica da guerra

Ao descrever as inovadoras e profundas experiências curdas no autogoverno em Rojava, fundamentalmente baseadas em um conceito descentralizado de confedralismo democrático, em que a igualdade de gênero, ecologia e libertação das mulheres se incluíam como princípios essenciais  - Hussein alertou para a crescente batalha que enfrentava o modelo educacional em meio à continuação da guerra civil síria.  "Qualquer país vivendo a guerra vive um desafio por si só, pois tudo ao seu redor é destruído.", disse o educador de 40 anos. "Precisamos de mais tempo para praticar a filosofia, o sistema que queremos".

Dez dias depois, veio a  retirada do apoio norte-americano à SDF, as Forças Democráticas Sírias.

A inesperada reviravolta deu sinal verde à invasão militar turca, não deixando os curdos do Norte da Síria com outra opção a não ser retroceder à aliança com o mesmo regime que por anos os oprimiram: o de Bashar al-Assad, no poder na Síria desde 2000, quando sucedeu o pai que, se não bastasse, governava o país por 30 anos.

Se, antes de 2012, ano da retirada das forças do Regime sírio de Bashar al-Assad da cidade Kobanî e início da consequente instauração de uma nova forma de autogoverno em Rojava – falar a língua curda era proibido na Síria, podendo seu uso levar, inclusive, à prisão – com o autogoverno então instaurado, expandiram-se as possibilidades de uso da língua, valorização da cultura e resgate da história curda, principalmente no ensino em escolas públicas de Rojava.

Com o autogoverno então instaurado, expandiram-se as possibilidades de uso da língua, valorização da cultura e resgate da história curda, principalmente no ensino em escolas públicas de Rojava

"Foi libertador", disse Becet Hussein, de 40 anos. Professor de língua curda, explicou:  "Antes a única forma de viver na Síria era se aceitando como árabe, sem espaço algum para democracia. Hoje é diferente, apesar de ainda não acreditarmos que podemos de fato estudar na nossa língua nativa". 

Se antes, simplesmente falar curdo gerava temor de aprisionamento ou medo de demissão e se o Regime sírio silenciava curdos, negando-os o direito de assumir a própria identidade, cujas proibições se estendiam, evidentemente, a qualquer traço de manifestação da cultura e pensamento curdo, tanto na música, teatro, literatura e poesia ou organização comunitária, hoje contrasta a liberdade de um modelo de ensino nas escolas de Rojava pautado em uma pedagogia da convivência pela aceitação e integração das diferentes línguas e culturas que convivem na região, principalmente curdo, árabe, assírio – ainda considerando a vasta composição étnica do Curdistão sírio, que também inclue muçulmanos sunitas, xiitas, sufis, além de minorias étnicas de armênios, turcomenos, yazidis e judeus.

A matriz curricular estabelecida nas escolas estipula três componentes curriculares, correspondentes às populações que habitam a região; um currículo em língua curda, com sua variante dialetal Kurmancî, um currículo em árabe e outro em assírio – fazendo das três, línguas formais de ensino nas escolas.

Do primeiro ao terceiro, dos doze anos letivos, estuda-se a língua específica de cada componente, quando, ao quarto ano adiante, a escolha deve ser pelo estudo de uma segunda língua com a qual se seguirá os estudos até a universidade, considerando o primeiro ao sexto ano eletivo como ensino fundamental, do sétimo ao nono como nível intermediário e, do décimo ao  décimo segundo, como ensino médio. Ao quinto ano, partem também para uma língua estrangeira, inevitavelmente, o inglês. "Se queremos viver juntos, temos que saber a língua do outro. Professores curdos ensinam árabes, e árabes ensinam curdos, e siríacos também."

A matriz curricular estabelecida nas escolas estipula três componentes curriculares, correspondentes às populações que habitam a região — um currículo em língua curda, com sua variante dialetal Kurmancî, um currículo em árabe e outro em assírio — fazendo das três, línguas formais de ensino nas escolas

O contexto de provocação de ódio mútuo entre curdos, árabes e cristãos siríacos, que vivia e ainda vive a Síria é fruto de séculos de um sistema que não abria caminhos para que as pessoas convivessem em respeito mútuo. "O que estamos fazendo é exatamente o contrário ", afirma Hussein.

Com razão, o grande projeto de nacionalismo árabe, o da arabização forçada e de ampla vigência e desdobramentos na história do mundo árabe do século XX, precisa ser criticamente revisto.

Não apenas compartilham dos componentes curriculares, aprendem a língua do outro, mas, também, compartilham dos espaços e dinâmicas das escolas. "Realizamos festivais multiculturais, de música, poesia, teatro. Estudantes e professores vivem, brincam e praticam esportes entre si. Criamos uma experiência na escola que não esconde a diferença, mas a valoriza", pontua Hussein, relembrando que poesia e música, tinham de ser feitas em árabe; em curdo, nunca recitadas ou cantadas em público, muito menos publicadas em livros.

Os desafios, por outro lado, são inegáveis. "Nós começamos do zero. Criamos instituições. Muitas das escolas que já existiam foram danificadas pela guerra. Vivemos uma escassez grave de materiais escolares e de tecnologia", explica Hussein. Boa parte foi roubada, complementa, lembrando que, "no inverno, as carteiras escolares viraram fogueira, tamanho era o frio e a falta de recursos para enfrentá-lo". As escolas, de estrutura bastante antigas, estão há décadas sem reparo". 

Dado a histórica repressão e silenciamento da língua curda, professoras e professores com formação universitária ensinam apenas em árabe, apesar de serem curdos. Não sabiam ler, escrever e ensinar em curdo. "Nossos maiores desafios são qualificar professores para que ensinem em curdo, e ter mais tecnologia ao nosso dispor. Com projetores, por exemplo, para que vejam a língua com os próprios olhos, com o uso de material de mídia para as aulas."

Princípio para o autogoverno da região,  o Confederalismo Democrático também estimula, nos cantões, o estabelecimento de comunas, composta por cinco comitês: de saúde, educação, resolução de problemas, comitês econômico e de autodefesa. Nas salas de aulas, também as discussões incluem pautas por uma convivência democrática entre todos e de alternativas para a paz na região.

Dos três cantões então autogovernados pelos curdos em Rojava – Afrîn, Kobanî e Jazira, dados dão conta da densidade do sistema educacional; ao início do ano letivo de 2019, no mês de setembro, eram 230.500 estudantes no cantão de Jazira, em mais de 2.000 escolas, com mais de 18.000 professores em treinamento. Ao início do ano letivo de 2019, no mês de setembro, eram 230.500 estudantes no cantão de Jazira, em mais de 2.000 escolas, com mais de 18.000 professores em treinamento

Em toda a região, a Secretaria de Educação e Pedagogia da Região Autônoma estima em 40.000 o número de professores ingressantes no processo de qualificação em 2019.  O ano marca o início do décimo primeiro ano letivo, de acordo com Hussein. "Foi e é um processo gradual. Começamos em 2012, ainda apesar da presença de professores do Regime, ensinando curdo nas escolas. Em 2016 implementamos os currículos nas três línguas, com diferentes etapas em cada escola."

 

A nebulosidade da guerra

Em menos de duas semanas após a conversa com Hussein, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, lançou uma ofensiva terrestre, com avanço de tropas, infantaria e artilharia, além de intensos bombardeios aéreos no Norte da Síria, justificando o ataque como combate ao "elo terrorista" curdo com o PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão.

Os EUA, tropeçando na próprio abrupto anúncio de retirada, veio, em seguida, a negociar um cessar fogo com a Turquia, com Moscou participando na mediação. Em troca do incerto armistício, a Turquia impôs uma "zona de amortecimento" no território autônomo Curdo, resultando no refúgio de 200.000 curdos, em sua maioria, para o Curdistão Iraquiano.

Logo Erdogan passou a utilizar a área para alocar milhões de refugiados Sírios que fugiram para Turquia em meio à guerra civil – predominantemente civis provenientes de outras partes da Síria. Enquanto os EUA optaram por manter cerca de 500 tropas na região, o estrago feito, é evidente. Especialistas agora alertam para o potencial retorno do Estado Islâmico à região; um General da SDF convocou observadores internacionais a prevenir limpeza étnica pela tropas e milícias paragovernamentais turcas. Os EUA, tropeçando na próprio abrupto anúncio de retirada, veio, em seguida, a negociar um cessar fogo com a Turquia, com Moscou participando da mediação. Em troca do incerto armistício, a Turquia impôs uma "zona de amortecimento" no território autônomo Curdo

Diretamente de Rojava, o relatório do RIC "Os crimes de guerra da Turquia contra civis" denuncia crimes sistemáticos contra civis, "cometidos tanto pelas Forças Armadas Turcas (TAF), quanto pelas por suas milícias paragovernamentais organizadas sob a bandeira do 'Exército Nacional Sírio' (SNA). "Violações de direitos humanos foram praticadas tendo civis como alvo deliberado, com bombardeio indiscriminado, aéreo e de artilharia. O RIC relatou morte de civis e danos tanto para equipes médicas, quanto para a ajuda  humanitária e  infraestrutura".

A região também presenciou pilhagem e crimes contra bens e propriedade, além de uma violenta campanha de censura, "em forma de ataques diretos à imprensa, e por por meio de outras tentativas da Turquia de limitar o levantamento de informação", relata o RIC.

É resultado de uma "tentativa sistemática de inviabilizar que civis vivam nas zonas onde a Turquia almeja ocupar, com o evidente objetivo de forçar o deslocamento da população geral civil e, em particular, das populações curda, yazidi e cristã – facilitando que turcomenos e milícias árabes se instalem com suas famílias, com a expansão de facto do controle territorial da Turquia".

Diretamente de Rojava,  relatório do RIC denuncia crimes sistemáticos contra civis
O cessar fogo, por outro lado, parece unilateral, à medida em que a Turquia continua a atacar os Cantões autônomos de Rojava.

Não surpreende que novos dados coletados pelo Instituto de Direitos Humanos de Jazira deem conta da gravidade e prejuízo para a educação pública em Rojava. Se o ano letivo no Norte e Leste da Síria, com início em setembro de 2019, contabilizou números superiores a 320.000 estudantes, 3.100 escolas e 22.000 professores qualificados nas regiões Eufrates e Jazira – dois meses de ofensiva militar turca forçaram o fechamento de 810 escolas, a destruição de 20 escolas em Serê Kaniyê (Ras al-Ayn), a inviabilidade de condições de trabalho para 4.000 professores, e interrupção de estudos para 86.000 alunos. O cessar fogo, por outro lado, parece unilateral, à medida em que a Turquia continua a atacar os Cantões autônomos de Rojava

Hussein não se surpreenderia com esses dados. Mesmo antes do início da ofensiva turca, bem sabia que a continuidade e melhoria das experiências educacionais curdas, radicalmente democráticas, dependiam de um elemento crucial. 

"Aperfeiçoar esse modelo e replicá-lo em mais escolas depende do fim da guerra", enfatizou, com muita lucidez. "Não sabemos quando tudo isso vai acabar".

 



Colaboração: Centro de Informações de Rojava
Data de publicação: 20 de Dezembro/2019. Informações atualizadas sobre os últimos desdobramentos no Norte e Leste da Síria disponíveis em
Daily Summary - RIC Liveuamap

> Relatórios RIC: "Os crimes de guerra da Turquia contra civis" (Inglês)
"Além das fronteiras: a construção do sistema democrática no Norte e Leste da Síria" (Inglês)
Conheça o aplicativo Minhac, voltado para o ensino nas escolas em Rojava

Daniel Martins de Araújo | Brasil |

Editor executivo e tradutor na Revista Periferias.

daniel@imja.org.br

@danmstefani

Edmund Ruge | EUA |

Coordena traduções para o inglês e edita a versão em Inglês na Revista Periferias. Com base no Rio de Janeiro, é mestre em Economia Internacional e Estudos Latino-americanos pela Johns Hopkins School of Advanced International Studies (SAIS)

edmundruge@gmail.com

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