Narrativas

periferias 4 | escola pública: potências e desafios

ilustração: Juliana Barbosa

Ensinar a alegria de aprender

Ondjaki

| Angola |

novembro de 2019

O tempo vai passando e tem feito falta assumir, enquanto adultos, pais, professores, diretores, pedagogos, o difícil desafio de revermos tanto o nosso conhecimento como o modo de passar o conhecimento. Mais ainda: revermos o lugar e a função da escola, não apenas como lugar de aquisição e acumulação, mas também de descoberta, respeito, improviso, e adequação.

Quanto ao respeito, seria uma revisão do papel do professor, ou de qualquer educador, numa ponte aberta entre escola e casa, isto é, entre professores e pais. Em diálogo, não a duas, mas a três margens: incluindo a criança ou adolescente. Incluindo as experiências, os traumas, os desafios, os anseios e até os ensinamentos das três margens envolvidas. Respeitar, assim, as propostas, mas também os ritmos e até as limitações que cada um traga ou proponha. Porque os seres humanos têm geografias internas distintas, e não formatadas que devem e podem ser valorizadas enquanto tal. Fora de um formato que fosse o 'de fábrica'.

A descoberta, tem a ver justamente com a valorização dessa propostas individuais ou coletivas, dando espaço ao improviso social e à adequação cultural de cada lugar.

A escola de Luanda não poderá ser igual ou equivalente à de São Paulo ou de Lisboa. Mas mesmo uma escola do Rio de Janeiro centro, não comporta os mesmo desafios de uma escola da periferia do Rio de Janeiro. Não se trata, portanto, de buscar 'um' modelo. Talvez o modelo seja o não-modelo e a abertura para uma 'criação local'. Crianças, pais e educadores; casa, rua e escola.

Repensar o conceito de 'liberdade' não implicaria a ausência de regras. Implicaria, talvez, assumir que o ser humano deve ter margem para agir e pensar. Estas margens fazem-se arejadas quanto mais soubermos dialogar e descobrir novas formas de ensinar. Não pode ser tudo perto de processos obsoletos de acumulação. A criança já não se identifica com isso e rapidamente rejeita a passagem de um conhecimento que não dialoga com a modernidade imposta pelo mundo que a rodeia. Liberdade implicaria a revisão do conceito de aprender e de ensinar.

A aprendizagem pode, sim, basear-se no conhecimento teórico e estruturado dos livros e da atual configuração 'técnica' do ensino. Mas deve compreender também uma revisão pedagógica, profunda, que venha a englobar, na medida do possível, as novas e atuais 'formas de conhecimento'. Algumas destas 'formas' (e formatos) fogem à regra do que já foi inventado. Sim, esta por inventar, está por ser descoberto, e passa pela tecnologia moderna, por outros modos de vivenciar a experiência social e até sensorial. As crianças reagem ao contacto direto com a natureza, não apenas com o contacto direto com os livros.

A valorização, por exemplo, das experiências familiares para o ensino e para a prevenção de novas problemáticas coletivas. A valorização da arte no processo de aprendizagem de conteúdos teóricos, mas que se cruzem com elementos do quotidiano do estudante. A troca de experiências e de saberes entre a casa e a escola, entre os pais e os professores, entre a comunidade e a instituição de ensino. Alguns destes exemplos constituem um desafio à organização e aos ritmos da 'Escola', mas é nessa revisão do ritmo institucional que penso que pode haver novos caminhos.

Por fim, e muito perto desse trabalho que há por fazer com arte e natureza, com as experiências mais palpáveis e menos teóricas de cada núcleo familiar, resta investir num campo algo subjetivo mas que se encontra disponível e próximo de todos: o da alegria. A pura alegria de vermos na escola e, se possível, nos professores e sobretudo nas crianças, a alegria de 'estar na escola'. Claro, uma escola com ambiente agradável e sem tiros, uma escola com a possibilidade de reconstrução não apenas dos conhecimentos que temos mas das pessoas que somos ou queremos ser. A alegria de ensinar e a possibilidade (alegre) de aprender, ensinando a quem nos ensina a alegria de também aprender.

Em suma, creio que devemos assumir o difícil desafio de rever o conhecimento que pretendemos passar aos outros, descobrindo um modo mais sensível de passar o conhecimento englobando nele o afeto.


 

Ondjaki | Angola |

Nasceu em Angola, em 1977. Prosador e poeta, também escreve para cinema e teatro. É membro da União dos Escritores Angolanos, membro honorário da Associação de Poetas Húngaros. No Brasil recebeu os prémios FNLIJ (2010, 2013, 2014); JABUTI juvenil (2010). Em Portugal o prêmio José Saramago (2013). E o prêmio Littérature-Monde com “Os transparentes” [França, 2016]. Está traduzido para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, kiswahili, chinês e sueco. Reescreve crônicas para jornais e, ocasionalmente, é professor de escrita criativa ou ghostwriter. Cresceu em Luanda, passou por Lisboa, quase morou em New York e Beijing, viveu as chuvas de Santiago de Compostela, morou em Laranjeiras (RJ), não conhece Uruguaiana e agora vive em Luanda.

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