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periferias 7 | desaprisionar o cárcere

Arte na era do encarceramento em massa

Arte prisional produzida por pessoas encarceradas, suas relações de mercado e o controle institucional imposto

Nicole Fleetwood

| EUA |

setembro de 2022

traduzido por João Calixto

publicado em MARKING TIME: ART IN THE AGE OF MASS INCARCERATION, por Nicole R. Fleetwood, pela Harvard University Press

Ronnie Goodman

Na pintura San Quentin Arts in Corrections Art Studio de 2008, de Ronnie Goodman, o artista trabalha sozinho em um ateliê. No autorretrato, ele se encontra em um espaço fechado, com pé direito duplo e vigas no teto. A gente o vê de perfil, dos joelhos para cima, vestido todo de azul e levemente inclinado para frente, estudando um desenho. Os elementos da pintura — sua figura solitária, cercada de quietude, e sua postura relaxada, com a cabeça angulada e o papel na mão — sugerem um estado imersivo de criação e concentração. Nas paredes, apequenando-o e além do seu alcance, estão retratos, pinturas de paisagens, e naturezas-mortas.

É de manhã, pelo relógio atrás dele e pela luz que atravessa as janelas de vidro que percorrem toda a extensão da parede. Os detalhes do espaço de trabalho — a luz, o peso, o plano aberto — sugerem uma cena idílica para a criação artística. A pintura de Goodman, de fato, referencia uma longa tradição de artistas que se documentam trabalhando no ateliê, na sala de aula, no museu, ou em qualquer outro contexto institucional, como se vê em Galeria do Louvre, de Samuel Morse (1831 – 1833) e Sem título (ateliê), de Kerry James Marshall (2014). É um ato de invenção de si no qual Goodman se insere nas práticas artísticas de ateliê.

Goodman fez a pintura no cárcere, no presídio estadual San Quentin, quando participava da oficina Arts in Correction organizada pela Associação William James, uma organização sem fins lucrativos que oferece aulas de arte em prisões por toda a Califórnia. Apesar de o workshop acontecer em uma penitenciária, não há na pintura figuras de autoridade ou evidências imediatamente visíveis de um ambiente punitivo, exceto pelo uniforme de Goodman e pela janela de vigilância no canto superior direito: um índice da tutela penal através do qual os agentes penitenciários podem monitorar as pessoas encarceradas sem serem vistas.

O ateliê da prisão, na pintura de Goodman, é um lugar de possibilidade imaginativa, mas também um lugar limitado por seu encarceramento e pelas múltiplas camadas históricas do estado carcerário. Ele se pergunta sobre sua condição de prisioneiro e artista retratando-se em processo de criação, nesse espaço, e marcado pelo azul-prisão de sua roupa e pela vigilância invisível dos funcionários da penitenciária.

O ateliê da prisão, na pintura de Goodman, é um lugar de possibilidade imaginativa, mas também um lugar limitado por seu encarceramento e pelas múltiplas camadas históricas do estado carcerário

Sua pintura é uma reflexão sobre as condições nas quais a arte é feita nas prisões e, ao mesmo tempo, uma reimaginação do espaço através da curadoria das imagens dispostas na parede. Ele está estudando tanto o trabalho que tem em mãos como o espaço à sua volta. Goodman colocou alguns desenhos mais próximos dele, ressaltando os trabalhos de sua preferência. “Eu os reorganizei da maneira que queria, na parede. Não foi arbitrário. Eu arrumei certas coisas da maneira como queria que estivessem. Queria garantir que eu tivesse muita coisa minha. Esse era o trabalho que eu tinha na mão. Eu estou desenhando as minhas coisas, para você ver, e você pode ver o trabalho de outras pessoas de que eu gosto que está lá.”1Ronnie Goodman, entrevista com o autor, 21 Julho, 2017

Ele modificou e fez a curadoria do espaço penal, dispondo retratos de amigos à sua volta e afirmando sua visão, enquanto era mantido em cativeiro. Sua representação do workshop é um ato de discernimento estético. Também representa um contraste marcante com as celas minúsculas onde Goodman e outras pessoas presas passam a maior parte do tempo. Naquelas celas, pessoas encarceradas sonham, planejam, coletam materiais e fazem arte que normalmente passa despercebida às autoridades prisionais e sem a aprovação de professores e administradores.

O autorretrato de Goodman demonstra como o trabalho de arte emerge em relação às instituições, sejam elas entidades comumente associadas às artes, como ateliês, conservatórios, museus e galerias ou outras instituições, como escolas primárias, estações de metrô, ruas e até prisões. A pintura é um exemplo do que chamo “estética carcerária”, e que se refere aos modos de conceber e fazer arte e cultura que refletem as condições de aprisionamento.

Todo ano, pessoas encarceradas criam milhões de pinturas, desenhos, esculturas, cartões comemorativos, colagens e outros materiais visuais que circulam dentro das prisões; entre pessoas encarceradas e seus entes queridos; nas coleções pessoais dos presos, funcionários do presídio, professores e outros; e mais recentemente em espaços públicos e instituições como museus, livrarias, hospitais e universidades.

A arte feita na prisão é produzida de diversas maneiras para diferentes públicos: através de programas coordenados pelos presídios, através de organizações que levam serviços e educação artística para as prisões, através de redes formais e informais de pessoas encarceradas que compartilham arte e materiais, e através de colaborações entre pessoas encarceradas e artistas, aliados, parentes e amigos não encarcerados. A maioria dos processos de criação em prisões acontece nas celas e oficinas dos presídios, onde pessoas encarceradas improvisam e experimentam com as numerosas restrições que se impõem sobre elas no cumprimento de suas penas.

 

Marking Time: Art in the Age of Mass Incarceration é ao mesmo tempo sobre a centralidade das prisões para a cultura e arte contemporâneas e sobre o vasto mundo do fazer artístico dentro das prisões estadunidenses. O livro coloca ênfase no engajamento estético e nos mundos de conhecimento dessas pessoas amplamente excluídas da vida civil,  dos estabelecimentos da arte e da cultura pública — pessoas armazenadas nas prisões dos EUA —  através de um olhar para a arte de pessoas encarceradas, tanto individuais como em colaborações com artistas, ativistas e professores não encarcerados, práticas que exploram o domínio expansivo do estado carcerário.2N.E: Os riscos dessas colaborações que permeiam as grades da prisão são tratados no capítulo 5 do livro

As práticas artísticas prisionais resistem ao isolamento, à exploração e à desumanização das instalações carcerárias. Elas reconstituem o que produtividade e trabalho significam no cativeiro, pois muitos desses trabalhos envolvem práticas e planejamentos laboriosos, demorados e imersivos. Também é importante considerar o fazer artístico na prisão como parte do amplo mundo da arte contemporânea, apesar de a arte feita no cárcere raramente aparecer em galerias públicas ou museus.

Os estabelecimentos de arte em nenhuma era refletem a vasta soma das práticas artísticas. Considerar a arte de pessoas presas como externa aos discursos e instituições da arte coloca em prática o violento apagamento de estar preso. Assim como as artes produzidas em outras arenas, a arte feita na prisão existe em relação às economias, estruturas de poder que governam recursos e acessos, e discursos que legitimam certas obras como arte e outras como artesanato, objeto material, artefato histórico ou lixo.

É importante considerar o fazer artístico na prisão como parte do amplo mundo da arte contemporânea, apesar de a arte feita no cárcere raramente aparecer em galerias públicas ou museus

As artes visuais são apenas uma área do vasto mundo da produção cultural nas prisões. Literatura, música e teatro produzidos em contextos de encarceramento têm recebido mais atenção de acadêmicas/os, escritoras/es e ativistas. Obras escritas na prisão, como os trabalhos de Malcom X, Angela Davis, Oscar Wilde, Etheridge Knight, Antonio Gramsci, Jimmy Santiago Baca, Jack Henry Abbott e George Jackson são regularmente ensinados em cursos universitários. The Life of Paper: Letters and a Poetics of Living beyond Captivity, de Sharon Luk, publicado em 2018, oferece uma impressionante e rica análise da significância da correspondência entre pessoas encarceradas e entes queridos e comunidades em vários momentos históricos; ela enfatiza a poética e materialidade da escrita de cartas.3Sharon Luk, The Life of Paper: Letters and a Poetics of Living beyond Captivity (Berkeley: University of California Press, 2018) Coletâneas com gravações sonoras de pessoas presas são produzidas há décadas, e o teatro encarcerado já foi encenado e antologizado. Menos atenção foi dada ao visual.

Uma notável exceção é o trabalho de Phyllis Kornfeld, Cellblock Visions: Prison Art in America (1997), um mergulho informativo na arte feita em prisões, baseado nos anos que Kornfield passou lecionando em vários presídios e penitenciárias. Kornfeld se propõe um foco na arte, e não nas políticas da prisão, escrevendo que ela deixa isso para os especialistas em reforma prisional.4Phyllis Kornfeld, Cellblock Visions: Prison Art in America (Princeton, NJ: Princeton Uni-versity Press, 1997), xxv. Eu me propus um engajamento na política das artes feitas nas prisões, e, mais amplamente, na arte como política, em uma era de aprisionamento humano em massa, além de outras formas de poder carcerário. Como o colossal alcance do complexo industrial prisional moldou as instituições de arte e produção de arte? E como as artes visuais contribuem para revelar as profundezas e a devastação do nosso sistema nacional de penitência? 

Tomemos como exemplo as pinturas I Am the Economy (2018) e How Big House Products Make Boxer Shorts (2018), feitas pelo artista James “Yaya” Hough enquanto encarcerado na Pensylvania. Em ambas as obras, o corpo desnudado de um homem negro parece ser engolido por uma máquina operada por um homem branco de uniforme. Em I Am the Economy, da outra extremidade da máquina saem notas de dólar; a população presa racializada é “duramente e mecanicamente convertida em dinheiro pelo complexo industrial prisional”5James “Yaya” Hough, artist statement, Capitalizing on Justice exhibit, presented by Worth Rises, 2018, https://correctionsaccountability.org/capitalizingonjustice/. Em How Big House Products Make Boxer Shorts, o corpo cativo produz mercadorias — neste caso, cuecas boxer — que, na realidade, são vendidas de volta para as próprias pessoas encarceradas.

James “Yaya” Hough, How Big House Products Make Boxer Shorts, 2018. Aquarela

Nas pinturas de Hough, o corpo de homens pretos presos abastece as prisões com o emprego de pessoas como o homem branco uniformizado que opera a máquina, o vendedor que vende as mercadorias, aqueles que lucram com a financeirização das prisões e das instituições carcerárias, e outras redes e entidades ligadas à governança carcerária.

A obra de Hough visualiza o que a conceituada estudiosa e ativista da abolição das prisões Ruth Wilson Gilmore descreve como os processos extrativistas do complexo industrial prisional: “As prisões permitem que o dinheiro se movimente por conta da inatividade forçada das pessoas presas ali. Isso significa que as pessoas extraídas das comunidades, e depois devolvidas às comunidades sem o direito de pertencer a elas, possibilitam a circulação de dinheiro em ciclos rápidos. O que se extrai de quem sofre a extração é a fonte da vida — o tempo”.6Ruth Wilson Gilmore, “Abolition Geography and the Problem of Innocence,” Futures of Black Radicalism, ed. Gaye Theresa Johnson and Alex Lubin (Brooklyn, NY: Verso, 2017), 227.

A arte de Hough também ecoa as preocupações do artista conceitual não encarcerado Cameron Rowland, cuja obra investiga os processos de extração e exploração da subjugação racial e o confinamento sob um capitalismo racial. Um artista em uma cela da Pennsylvania, o outro em um estúdio em Nova Iorque, sem se conhecerem, fazem arte que diagnostica as práticas extrativas das prisões como subjugação continuada de pessoas pretas: tanto a prática de Hough como a de Rowland desafiam o “dentro” e “fora” da lógica da carceralidade.

James “Yaya” Hough, I Am the Economy, 2018. Aquarela

A ideia de separação entre encarcerados e não encarcerados, entretanto, sustenta a lógica de trancar pessoas em jaulas, tornando-as invisíveis por medida de segurança. Através de práticas artísticas e comunidades de criação dentro das prisões, artistas encarcerados lutam contra a punição do isolamento e o rompimento de relações que a prisão impõe. Eles trabalham no sentido de minar os índices carcerários, quer dizer, os dados e registros — como as fotos de fichamento — que os marcam como sujeitos criminosos e encarcerados, e o estigma de ser prisioneiro. A arte feita na prisão é parte da longa história de pessoas cativas vislumbrando a liberdade — criando arte, imaginando mundos e encontrando maneiras de resistir e sobreviver.

A arte feita na prisão é parte da longa história de pessoas cativas vislumbrando a liberdade – criando arte, imaginando mundos e encontrando maneiras de resistir e sobreviver

Jared Owens, um artista egresso do sistema prisional, uma vez me descreveu os riscos que envolvia a experimentação artística numa prisão federal. Como pintor abstrato, ele queria fazer trabalhos mais amplos do que as telas permitiam. Ele viu uma tábua que o permitiria esticar a tela, e decidiu pegá-la, o que significava que ele teria que evitar ser detectado pelos guardas. Owens disse: “Esses foram os três metros mais longos da minha vida”. Eu não conseguia esquecer suas palavras e o significado do risco assumido na expansão de sua poética. Se Owens tivesse sido flagrado em qualquer momento dessa jornada de três metros em direção à tábua, na ida ou na volta, ele poderia ter sido jogado na solitária; sua sentença, estendida; suas posses, confiscadas.

O livro Marking Time se curva e se tece em torno da experimentação, das práticas, dos riscos estéticos de pessoas encarceradas que imaginam, criam e produzem em um sistema de punição tão brutal que a maioria do público não encarcerado nem sequer consegue concebê-lo. Eu não poderia ter terminado este livro sem Owens e outros artistas, egressos ou ainda encarcerados, estarem dispostos a compartilhar suas experiências fazendo arte, afirmar sua humanidade, e reivindicar valor e sentido, mesmo mantidos em regime de punição. 

É muito comum artistas descreverem a condição de confinamento e esquecimento como ímpeto para seu fazer artístico: foram punidos e incapacitados, rotulados como problema para as outras pessoas, comunidades, e para a sociedade como um todo. Prisões são “soluções coringa para problemas sociais”, escreve Gilmore7Ruth Wilson Gilmore, Golden Gulag: Prisons, Surplus, Crisis, and Opposition in Globalizing California (Berkeley: University of California Press, 2007). Elas servem não para tratar da pobreza, das opressões de gênero e raça, do subemprego, do desespero e das crises de saúde (para citar apenas alguns fatores) que reproduzem a população prisional, mas para incapacitar populações específicas, culpando-as pelo problema que as levou à prisão.  Artistas presos assumem deliberadamente a condição de rotulados como problema social ou fracasso como o próprio fundamento da sua experimentação artística. O fracasso alimenta suas improvisações estéticas e os riscos que correm para criar sua obra e os mundos que excedem a prisão.

O livro Marking Time se curva e se tece em torno da experimentação, das práticas, dos riscos estéticos de pessoas encarceradas que imaginam, criam e produzem em um sistema de punição tão brutal que a maioria do público não encarcerado nem sequer consegue concebê-lo

Muitas pessoas não encarceradas, quando pensam em arte encarcerada, recorrem a imagens de artesanato com palitos de picolé, envelopes ilustrados, jogos americanos de crochê em fios sintéticos e formas de body-art, como as tatuagens de prisão. Projetos de oficina, como caixas de joias e móveis de madeira, são populares em algumas instituições, assim como a confecção de placas e murais em cafeterias, corredores e salas de visita.

Esses são alguns dos trabalhos feitos por artistas encarcerados, junto com uma vasta gama de outras formas de arte que desafiam as percepções comuns da vida cultural e mundos artísticos das pessoas presas. Muitas delas são reflexo das limitações materiais e da escassez de material artístico lá dentro, limitações que alguns transformam em experimentos com objetos encontrados por acaso, sucata, e propriedade do estado.

A pintura em folha de Todd (Hyung-Rae) Tarselli é um vivo exemplo dessas possibilidades: numa folha castanha de outono caída de uma árvore de bordo, ele pintou um esquilo em detalhes realistas; traços finos de marrom, branco e vermelho compõem a textura do pelo do animal. O olho do seu rosto em perfil brilha intensamente.

Todd (Hyung-Rae) Tarselli, sem título (pintura de esquilo), 2017

Atrás do esquilo, Tarselli pintou folhas de grama escura, e frutos de que o animal se nutre — uma cena da floresta pintada num pedaço de natureza, criada dentro de uma cela. A vida da folha como matéria orgânica é parte da arte, com buracos na superfície, graças à decomposição. Tarselli ficou anos em solitária, onde pinta e desenha cenas da natureza.

Também faz uma arte explicitamente política, que condena o complexo industrial prisional e abraça ideologias libertárias e revolucionárias e movimentos sociais anteriores, conhecimento que adquiriu através da leitura e aprendizado com outros presos, como parte do que Dylan Rodríguez chama de “práxis carcerária radical” dos intelectuais presos que continuam a influenciar gerações de pessoas encarceradas. O trabalho de Tarselli materializa as condições em que surge a “arte encarcerada”: espaço penal, matéria penal e tempo penal8N.E: Conceitos trabalhados no capítulo 1 do livro..

Os conceitos acima, explorados no capítulo 1 de Marking Time: Art in the Age of Mass Incarceration, resumem-se da seguinte forma: espaço penal se refere à arquitetura do confinamento e ao conjunto de relações que o encarceramento estrutura; matéria penal é o acesso limitado a bens e objetos materiais para a produção cultural na prisão; e tempo penal é a punição medida como tempo em cativeiro ou sob supervisão do estado, como na liberdade condicional. 

A arte feita nas prisões é comumente descrita como “arte marginal” ou “arte popular”, ou seja, arte feita por artistas que sem nenhuma ou com muito pouca formação, ou que criam fora da arte institucionalmente estabelecida. Outros estudos têm se voltado para programas de arte e workshops baseados em modelos de arte-terapia, vinculados a disciplinas como psicologia, educação e criminologia, e que promovem a exploração de válvulas de escape criativo como forma de cura e reabilitação das pessoas.

Apesar de alguns artistas e professores que entrevistei trabalharem com essa perspectiva, eu não emprego o discurso de uma arte reabilitadora: minha principal preocupação acerca da perspectiva da reabilitação é que, em seu foco primário de mudar o indivíduo, ela não oferece uma análise ou crítica de como o estado carcerário depende da produção de sujeitos criminosos e da redução das possibilidades de vida de toda uma população. A abordagem das artes da reabilitação não toca nas relações estruturais e políticas mais amplas que tento mapear entre arte, estética e estado carcerário. 

Além disso, meu envolvimento com a arte se dá pelas lentes de uma visão abolicionista, pelo fim do encarceramento humano e das condições que produzem as prisões. Por isso, embora não escreva sobre a arte prisional como necessariamente terapêutica ou reabilitadora (já que esses conceitos são usados em contextos penais e clínicos), reconheço e respeito que muitos artistas encarcerados usem e entendam o fazer artístico como parte de sua cura e superação dentro das prisões.

A arte feita nas prisões e centros de detenção dos EUA (que alguns chamam de “arte das celas”, e outros, de “arte do presidiário”) é tão comum que o Federal Bureau of Prisons (o Departamento Penitenciário Federal dos Estados Unidos) tem várias páginas de diretrizes que regulam a produção, distribuição e venda de arte em estabelecimentos carcerários. As diretrizes dão aos administradores da prisão ampla autoridade sobre como cada presídio lida com o fazer artístico: “A Direção pode restringir, por razões de segurança e governança, o tamanho e quantidade de todos os produtos feitos no programa de arte e artesanato. As pinturas enviadas para fora da instituição devem estar em conformidade com as diretrizes da instituição e os regulamentos postais. Se a obra de arte ou artesanato de um preso estiver em exibição pública, o Diretor pode restringir o conteúdo da obra de acordo com os padrões de decência da comunidade”.9U.S. Department of Justice, Federal Bureau of Prisons, Recreation Programs, Inmates, “Program Statement,” P5370.11, 6/25/2008, p. 12.

A critério da direção, a prisão oferece a possibilidade de pessoas presas enviarem suas obras para amigos ou familiares (se arcarem com os gastos) ou dá-las a familiares durante as visitas, mediante aprovação. Em muitas instituições, artistas encarcerados também podem vender obras segundo critérios da direção ou agentes penitenciários, o que normalmente implica que uma porcentagem da venda seja direcionada para a prisão. No estado de Ohio, por exemplo, as prisões retêm 20% de toda arte vendida.

Os trabalhos feitos pelos presos podem ser bem lucrativos para algumas instituições, e as oficinas e educação artísticas podem servir como meio de gerenciar pessoas em cativeiro para não contestarem a autoridade da prisão. Na prisão estadual de Louisiana, também conhecida como Angola, a arte encarcerada é muito vendida nas feiras de rodeios bianuais, trazendo um lucro significativo para a instituição e uma porcentagem para as pessoas encarceradas, que podem usá-la no refeitório ou enviá-la a seus parentes.10Lucia Davis, “Inside the Angola Prison Hobbycraft Sale, Where Inmates Sell their Cre-ations,” Atlas Obscura, 14 Jan 2016, https://www.atlasobscura.com/articles/inside-the-angola-prison-hobbycraft-sale-where-inmates-can-sell-their-creations.

Na realidade, a maioria desses programas não pode acontecer sem a permissão das direções ou dos departamentos de correção, que enxergam o benefício da produção artística para as operações do presídio. Mas tendo em vista as maneiras como as prisões podem instrumentalizar a arte encarcerada para manutenção das instituições, artistas encarcerados e seus aliados não encarcerados inovam e engajam práticas estéticas que excedem e contestam as restrições das prisões.

Além disso, a arte prisional transforma nosso modo de pensar sobre coleções e colecionadores de arte. Os principais colecionadores de arte feita na prisão são outras pessoas encarceradas ou seus entes queridos. A arte prolifera na prisão, e coleções substanciais existem dentro das celas, almoxarifados e salas de aulas das instituições de detenção.

A arte prolifera na prisão, e coleções substanciais existem dentro das celas, almoxarifados e salas de aulas das instituições de detenção

A administração da prisão também coleciona a arte feita lá dentro; seus funcionários muitas vezes contratam pessoas encarceradas para fazer arte em seu nome e negociam valores dentro da economia carcerária. Essas negociações costumam acontecer extraoficialmente e entre pessoas em posições muito diferentes de poder. “Comissão” e “negociação” são termos carregados, para descrever acordos em que pessoas com enorme autoridade solicitam, dos mesmos artistas encarcerados sobre cuja sobrevivência essa autoridade se exerce, arte em troca de dinheiro, bens ou tratamento especial.

A maioria dos artistas que descreveram fazer trabalhos para os funcionários da prisão relataram que barganhavam com esses agentes o acesso a materiais proibidos ou favores, inclusive ajuda para mandar seus trabalhos para fora da prisão.

 

Para pessoas encarceradas, o acesso ao fazer artístico e a propriedade sobre sua obra variam amplamente, a depender da prisão e centro de detenção. Algumas instituições têm salas de arte bem equipadas e oferecem aulas de arte de vários gêneros. Em outras, os presos criam grupos de arte administrados por eles próprios, onde compartilham recursos e ensinam técnicas entre si.

Os artistas com frequência se apropriam de material do estado a serviço da arte, uma prática que constitui infração e pode resultar no confisco do trabalho e outras formas de punição. Suas práticas são altamente vigiadas, e a arte pode ser apreendida por vários motivos. “Os oficiais podem confiscar imagens por causa de seu teor. Cartazes de mulheres nuas normalmente recebem aprovação tácita, se apreciados discretamente. Eles podem ser pendurados nas paredes das celas, em algumas prisões; em outras, não. Se uma pintura for interpretada como incitação à revolta, será confiscada. Imagens de violência contra agentes, símbolos de gangues, insultos racistas e escritos ofensivos são proibidos”, escreve Kornfeld.11Kornfeld, Cellblock Visions, 12.

Em lugares como a unidade do corredor da morte na prisão estadual de Louisiana, as pessoas condenadas estão agora legalmente proibidas de fazer arte sem autorização da direção, depois de o trabalho de um desses condenados ter sido vazado e vendido na internet. Uma lei estadual de 2012 declara que se considera contrabando “qualquer esboço, pintura, desenho ou outra representação pictográfica produzida, integralmente ou em parte, por infrator condenado à pena capital, salvo autorização do diretor da instituição”, e criá-los constitui crime punível com pena de prisão até cinco anos.12Cheryl Mercedes, “Website Obtains, Sells Convicted Killer’s Art,” WAFB, 30 Jan 2012, http://www.wafb.com/story/16635022 /convicted-baton-rouge-serial-killer-sells-artwork-from-prison. Obrigado ao artista Deborah Luster e a Cormac Boyle do Centro de Justiça em Louisiana compartilhar da Lei La. R.S. 14:402(D)(10) comigo e por disponibilizar recursos. A lei foi implementada como uma medida para prevenir pessoas do corredor da morte de adquirir fama ou algum lucro financeiro com sua condição. 

A questão da propriedade e do lucro com arte por pessoas encarceradas virou notícia internacional em 2017, quando o Pentágono tentou fechar a exposição Ode to the Sea: Art from Guantánamo Bay, que continha arte de atuais e antigos detentos da prisão militar. As peças foram criadas em um programa oficial em que os detentos tiveram acesso a cursos de arte. A exposição foi amplamente elogiada, com críticas nas revistas Paris Review e New Yorker, bem como nos jornais New York Times e The Guardian.

Uma dessas pinturas, de autoria de Muhammad al Ansi, retrata o corpo sem vida de Alan Kurdi, a criança síria que se afogou no Mar Mediterrâneo quando sua família buscava refúgio. Ansi baseou sua pintura em uma fotografia amplamente divulgada do corpo de Kurdi em uma praia turca, feita pelo fotojornalista turco Nilüfer Demir.13Brandon Griggs, “Photographer Describes ‘Scream’ of Migrant Boy’s ‘Silent Body,’” CNN .com, 3 Set. 2015 https://www.cnn.com/2015/09/03/world/dead-migrant-boy-beach-photographer-nilufer-demir/index.html.

Muhammad al Ansi, sem título (Alan Kurdi), 2016.

Embora o Departamento de Defesa tenha inicialmente aprovado as obras para a exposição, carimbando o verso das obras com “Aprovado pelas Forças dos EUA”, o governo estadunidense posteriormente demonstrou reservas em relação à recepção entusiasmada das obras e às narrativas do cativeiro que apareciam na cobertura jornalística.

O governo também se opôs às tentativas de venda de qualquer uma das obras. Como resultado, o exército proibiu a arte de deixar o campo, o que significa que os detentos não podem mais entregar suas obras a seus advogados ou familiares, prática comum antes da exposição. O Pentágono divulgou a seguinte declaração: “Os itens produzidos pelos detidos na Baía de Guantánamo continuam sendo propriedade do governo dos EUA”.14Carol Rosenberg, “After Years of Letting Captives Own Their Artwork, Pentagon Calls It U.S. Property. And May Burn It,” Miami Herald, 16 Nov 2017, http://www.miamiherald.com/news/nation-world/world/americas/guantanamo/article185088673.html De acordo com essa política, os detidos não podem mais levar suas obras de arte consigo, se e quando forem libertados. Em vez disso, os militares propuseram incinerar os trabalhos que forem deixados para trás.

À medida que o acesso à arte prisional e os direitos sobre ela são contestados, o mesmo acontece com a própria categoria. O termo, como me disse um historiador da arte, deixa sobrar pouco para a imaginação; ele diz ao público o que esperar antes mesmo de olhar. Da mesma forma, um escritor interessado no tema desencorajou o uso do termo, alertando que sugeria uma forma desvalorizada e amadora de fazer arte – sua preocupação é que o termo diminua a inventividade estética da arte feita dentro das prisões. Treacy Ziegler, instrutora de arte em prisões e curadora de Without the Wall – uma exposição de arte com obras de artistas anônimos, metade dos quais estavam encarcerados – faz uma crítica semelhante à categoria.

Na curadoria da mostra, Ziegler questionou: “Podemos experimentar a arte sem a história do artista?”15Rachel Heidenry, “‘Without the Wall’ Explores Identity and Incarceration at Philadelphia’s City Hall,” Artblog, 9 Jul 2014, http://www.theartblog.org/2014/07/without-the-wall-explores-identity-and-incarceration-at-philadelphias-city-hall/ Without the Wall tentou desafiar a concepção do público sobre a arte prisional, pedindo ao público que considerasse que suas interpretações dos trabalhos acontecem por meio de ideias estereotipadas sobre os temas, gêneros e mídias utilizados por artistas encarcerados. Mas um jornalista que cobria a exposição também notou a contradição nesse exercício curatorial, argumentando que grande parte da atração da mostra para o público era que parte da arte vinha da prisão.

 

Como a arte feita na prisão põe em cheque concepções familiares sobre o que significa estar preso, e ao mesmo tempo revela as limitações institucionais das quais emerge? Questões relacionadas à terminologia que usamos para a arte prisional e às condições em que é produzida tornaram-se ainda mais oportunas à medida que a arte de pessoas encarceradas tem circulado mais amplamente na esfera pública. Durante uma conversa que mediei com um artista egresso, um homem na plateia comentou como raramente discutimos o significado do contexto em que as obras são produzidas quando olhamos para a arte de pessoas não encarceradas.

O artista egresso concordou, mas também deixou claro que, quando uma obra de arte é feita na prisão, é impossível não reconhecer a significância do contexto institucional. Ele observou que sua obra mudou significativamente quando foi para a prisão, por causa do contexto, da regulação do tempo, da presença constante de agentes penitenciários e do acesso limitado aos materiais – tudo isso alterou seu horizonte estético. Para ele, o tempo penal, a matéria penal e o espaço penal o levaram a um processo mais deliberado, repetitivo e, às vezes, até mecânico – um processo em que produziu trabalhos exigentes, em termos de dedicação e tempo, coisa que não teria feito fora do cativeiro punitivo.

Eu uso o termo “arte prisional” em vez de “arte do preso” porque acho o primeiro mais amplo e expansivo, e ele também inclui trabalhos feitos em colaboração com artistas não encarcerados. É um termo que procura desestigmatizar artistas encarcerados e que aponta para as formas como o encarceramento age muito além dos muros das prisões e para como o encarceramento em massa impacta a estética e a cultura mais amplamente. Essas experimentações têm se tornado mais urgentes e crescem em escala e aparecem como estratégia de sobrevivência no contexto do encarceramento em massa. Com o crescimento dos presídios nas últimas décadas, os modos de resistência e as formas culturais dos encarcerados têm se expandido.

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Nicole Fleetwood | EUA |

Possui um BPhil (1994) pela Universidade de Miami e um MA (1998) e PhD (2001) pela Universidade de Stanford. De 2005 a 2021, ela foi afiliada à Universidade Rutgers em New Brunswick, com nomeações nos Departamentos de Estudos Americanos e História da Arte. Fleetwood é atualmente professora intitulada James Weldon Johnson no Departamento de Mídia, Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York. Suas publicações adicionais incluem os livros Troubling Vision: Performance, Visuality and Blackness (2011) e On Racial Icons (2015) e artigos em Artforum, African American Review, Aperture, Callaloo e LitHub. As exposições co-curadas de Fleetwood apareceram no Andrew Freedman Home, Aperture Foundation Galleries e Zimmerli Museum of Art, entre outros locais.

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