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periferias 4 | escola pública: potências e desafios

Pesquisadoras da educação pública - uma escrita tecida por muitas mãos

+ REcentrar sujeitos e territórios periféricos, por Lady Christina, professora e poeta

| Brasil |

dezembro de 2019

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Pesquisadoras da educação pública: desafios na produção de conhecimento a partir das periferias

Experiências formativas de pesquisadoras1Optamos por fazer a concordância de todo o texto no feminino como forma de criar um dispositivo de leitura contraposto ao Eu hegemônico masculino. em educação básica em periferias brasileiras

Escrever é como preparar uma refeição que possa saciar a fome de muitas indefinidas pessoas. Os ingredientes aqui são ideias, sentimentos, memórias, histórias, diálogos e mais diálogos. A ideia é ofertar essa combinação afetiva! Puxe a cadeira, ou aprume-se no ônibus, no carro, no avião, na rede, na sala, no quarto – onde quer que esteja e aproveite esse prato preparado a múltiplas mãos, complexidades e gestualidades. O guizado das ideias é também um vislumbre de nossas vivências compreendidas no  período de maio 2018 a fevereiro de 2019. 

Somos um grupo de pessoas negras pesquisadoras selecionadas pelo Instituto Maria João Aleixo (IMJA) e Instituto Unibanco para atuar em escolas de Educação Básica de diversas periferias brasileiras. Essas atuações partem de vivências e articulações anteriores de diferentes modos: seja como professoras e professores, agentes articuladores, pesquisadores, amigas e amigos da escola ou ex-estudantes que retornam para novas articulações - entendendo as relevâncias de cada território-escola. Desenvolvemos nossas pesquisas, conversas, encontros e ações nas seguintes cidades: Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Niterói, Itaboraí, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Recife. 

 Todas essas ações partiram de um chão comum: a investigação das potências presentes em cada escola parceira a partir dos eixos raça, gênero e equidade. Mais do que pesquisar nossas ações nas escolas pretendeu ser uma ampliação de parceria junto ao IMJA  e ampliação de uma rede de solidariedade e práticas pedagógicas que contribua para o debate da potência da escola e ressignificar para as periferias.  

Por meio do conceito de paradigma da potência, elaborado pelo IMJA2Sobre o conceito de potência da periferia, ver: Cf. FERNANDES, F.; SILVA, J. S.; BARBOSA, J. O Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência. Revista Periferias, nº 1, jan. 2018. Disponível em: < https://goo.gl/fCbuVM>. Acesso em: 10 fev. 2019. , nos foi possível rever as escolas públicas em que atuamos3O número de escolas que cada pesquisadora atuou variou de uma a três escolas e/ou centros culturais. , como produtoras de práticas, metodologias e conhecimentos que puderam  nos mostrar outros trajetos e sentidos para a educação, para-além do paradigma da ausência. Por falar neste, Fernando Fernandes, Jailson de Souza e Silva e Jorge Barbosa, no texto de apresentação da Revista das Periferias número 1, denominado Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência, argumentam que o paradigma da ausência é caracterizado por uma visão unilinear e estigmatizada dos territórios populares e seus moradores, marcados por uma somatória de atributos negativos: os ingredientes são mais que conhecidos, pois largamente difundido pelos meios de comunicação de massa -  precariedade, violência, pobreza, carência, entre outros. Essa visão depreciativa simbólica sobre esses territórios e seus habitantes é redutora porque impossibilita perceber as múltiplas realidades que compõem as periferias, como suas dimensões: arquitetônicas, artísticas, identitárias, políticas, lúdicas, epistêmicas, empreendedoras, recreativas, esportivas, educacionais, entre outras. Ver as potências das periferias não é negar a materialidade das desigualdades e processos históricos de excludência, mas expandir o olhar, percebendo suas inúmeras possibilidades e realidades concretas e imaginadas, enfatizando como essencial o protagonismo de seus sujeitos sociais. São justamente expressões dessas múltiplas periferias dentro das periferias que buscamos apreender e colaborar por meio de nossas pesquisas em espaços educativos e culturais.  

Inseridas numa rede de pesquisadoras do IMJA, nossas pesquisas ambicionam contribuir para projetos políticos de sociedade transgressores do status quo a partir da educação como prática da liberdade4Cf. Nos referimos aqui a uma das fontes de influência de nossas pesquisas, a escritora e professora e feminista negra bell hooks em seu livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. O título desta obra revela a influência de Paulo Freire no pensamento da intelectual estadunidense. . Em tempos de desmanche estatal e do esgarçamento de projetos políticos emancipatórios, evidenciar a potência dos territórios e das pessoas periféricas, na formulação de  pedagogias antirracistas, antisexistas e equitativas é crucial. Também, evidenciamos nossa postura contra a expulsão escolar (como falar apenas de evasão escolar numa sociedade desigual e de múltiplas opressões?), e realçar o compromisso e a importância de ensinos e aprendizados não violentos, não discriminatórios, propulsores de vida e de convivência. 

Em diálogo com práticas e teorias contra-hegemônicas, o projeto Educadoras da Educação Básica em Periferias  construiu estratégias de formação para ampliar a qualificação de pessoas pesquisadoras de contextos populares. Isso aconteceu dentro de  um compromisso de implementar ações intelectuais engajadas com a realidade social (vale lembrar: de maioria negra), na perspectiva de constituir uma relação direta com a potência da periferia com base  na educação. E dessa forma, assegurar outras lógicas de conhecimento. Além de reconhecer a urgência de uma sociedade plural pautada pela identidade e diferença entre pessoas negras, indígenas, empobrecidas, gêneros-diversas, outras sexualidade e outros saberes e religiões. Numa lógica oposta à vigente, que ainda é pautada no projeto único de história,  embranquecedor e reprodutor de desigualdades materiais e simbólicas.  

Ao longo de dez meses,  fomos adensando percepções e considerações a cerca da ampliação de nossa qualificação enquanto pessoas negras, entendendo a urgência de nosso protagonismo e de nossa representabilidade na criação de programas, na ocupação de cargos políticos, educacionais, sociais. Para tanto, cada projeto elaborado por nós evidencia perspectivas para uma vida educacional e/ou escolar mais relacional, compreendendo as tessituras conjuntas, as rotas, os compartilhamentos, as vivências, os conhecimentos ancestrais, as ativações políticas, geográficas e poéticas que percorrem as escolas públicas periféricas que por muitas vezes são invisibilizadas.


 

As tessituras das experiências formativas

Tivemos dois encontros formativos presenciais no Instituto Maria e João Aleixo, Localizado no Complexo de Favelas da Maré - RJ. 

No primeiro encontro, realizado em maio de 2018, conhecemos melhor a identidade do Instituto Maria e João Aleixo, seu espaço físico e as pessoas que lá trabalham. Nos conhecemos também, pois nem todas já se conheciam. Experiência impactante de se conhecer e tecer nossa coletividade de pesquisadoras. Para isso, apresentamos e revisamos os pressupostos de nossos projetos, levantamos bibliografias comuns e buscamos alinhar nossas perspectivas do paradigma da potência das periferias. Conhecemos, refletimos, vivenciamos este mesmo paradigma da potência na realidade em que estávamos - e que para alguns das pesquisadoras, sobretudo vindos de outras cidades fora do Rio de Janeiro -  foi uma imersão significativa numa parte do Complexo de Favelas da Maré. Essa experiência de deslocamento foi como o movimento-grafia, como diz Evaristo, encarnado no corpo também, a produzir aprendizados, impressões, afetos, trocas e memórias; e permitiu afinar a percepção para voltar para os territórios de origem com novo ânimo e percepção alterada pelas vivências de 10 dias juntos aprendendo.   

Outro momento relevante desse primeiro encontro foi a apresentação de projetos em andamento baseados no paradigma da potência, como o “data_labe” - um laboratório de dados e narrativas no Complexo de Favelas da Maré em parceria com o Observatório de Favelas. Sua equipe é formada por jovens moradores de territórios populares que tem como objetivo produzir novas narrativas sobre a periferia por meio de dados. Dentre suas inúmeras pesquisas já realizadas, desenvolveu o Mapa da Comunicação Comunitária que reúne veículo de toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ter contato com esse projeto foi um momento de grande importância para compreendermos o quanto estávamos, enquanto pessoas pesquisadoras negras, oriundas da periferia, sendo provocadas à desenvolver nossas pesquisas a partir do poder inventivo dos grupos marcados pela desigualdade social, pelo racismo e sexismo…

O segundo encontro de formação foi realizado em setembro de 2018, após os projetos terem início nas escolas. O objetivo dele foi refletir sobre a metodologia das pesquisas, falar sobre o processo de escrita e estimular a troca de saberes entre as pessoas integrantes do grupo de escolas do Rio de Janeiro, envolvidas nas pesquisas.
Dentre os inúmeros momentos potentes, relataremos brevemente três: a conversa com a professora Edneia Gonçalves sobre educação e relações raciais; com a professora Andréia Gil sobre técnica de escrita acadêmica antirracista e, por fim, a Roda de conversa no Centro Cultural Banco do Brasil – RJ com a pessoas das escolas do Rio de Janeiro, integrantes da área educativa do CCBB, da Arena Carioca Dicró e do educativo do Galpão Bela Maré.
Na atividade da professora Edneia, integrante da Ação Educativa, sobre a metodologia de pesquisa em educação e questões raciais na escola fomos provocadas a pensar a relação entre gestão escolar e democracia, cabendo a gestão acolher as diferenças como ponto de partida que orienta processos de diagnóstico e de avaliação participativa e periódica das ações de prevenção e enfrentamento do racismo. Apresentou a pesquisa que vem desenvolvendo sobre a necessidade da educação antirracista ser um princípio fundamental para o desenvolvimento de uma gestão escolar que seja de fato democrática. Esta educação deve reconhecer a presença negra nas salas de aula e no território onde a escola se localiza, propor processos formativos e pedagógicos que privilegiam a interação, reflexão e valorização das diferenças. Desta forma, deve afirmar o caráter multirracial e pluriétnico da sociedade brasileira. Suas considerações foram fundamentais para negritar a intrínseca relação entre a dimensão administrativa e a pedagógica da escola de nossas pesquisas. 

O encontro com Andréa Gil, professora Doutora em Ciência Política na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na sede do Observatórios das Favelas, propiciou mais um momento de troca e atualização dos andamentos das pesquisas. Andreia, após ouvir-nos longamente falarmos de nossas pesquisas, nos trouxe uma proposta de roteiro de escrita de artigos, com os principais ingredientes de uma escrita de um texto desse gênero. Além dessa importante ferramenta, que nos servirá para além das pesquisas, nossa conversa enveredou-se para outras questões. Uma delas foi como traduzir em linguagem escrita o desafio do projeto que estávamos mergulhados de investigar novas epistemologias a partir de geografias periféricas e como intelectuais inseridos nas periferias? A resposta para essa questão ainda nos habita de maneira distinta para cada pesquisadora. 

Gil nos forneceu subsídios para a atividade seguinte, previamente preparada e solicitada por Patrícia Elaine Pereira dos Santos, professora e pesquisadora de periferias e  novas epistemologias e nossa principal interlocutora no projeto IMJA. A atividade consistiu em a partir de um sorteio (ao estilo amigo secreto), lermos criticamente um artigo da amiga-pesquisadora sorteada. A proposta além de divertida e cheia de afeto, nos trouxe apontamentos importantes para a melhoria significativa dos textos. 

Escrever é mover desejos e projetos, talvez por isso seja difícil acabar um texto ou pesquisa atendendo os clamores do tempo cronos. Tempo, tempo, tempo. Estamos nos movendo atravessando pontes, vielas e outros territórios dentros e fora dos espaços consagrados. Esse textos é retrato desse acenos provisórios.  Continuaremos escrevendo no corpo da vida e com nossas escrevivências. 

Por fim, a Roda de conversa no Centro Cultural Banco do Brasil – RJ com a pessoas das escolas do Rio de Janeiro, integrantes da área educativa do CCBB e da Arena Carioca Dicró. Inserido no contexto de troca de saberes, o objetivo do encontro foi pensar em modos de aproximação entre escola, museus e periferias. Nossas provocações iniciais para estimular a conversa tiveram como base o tema do encontro “Processos educativos: as redes possíveis na construção da pedagogia da convivência” e o texto A centralidade do comum e a metamorfose do inseto, do Eduardo Alves, entre outras motivações. O protagonismo periférico e juvenil permeou toda a roda. As pessoas estudantes trouxeram para a conversa temas como a necessidade de o ensino das escolas serem mais horizontal e dinâmico, das escolas de debater a temática da sexualidade e gênero, bem como, as motivações que consideram significativas para irem (atividades culturais, debates, encontros, entre outras atividades). Por fim, destacaram a importância dos(as) pesquisadores do IMJA em dinamizarem e se tornarem referência dentro das unidades escolares em que atuam.


 

O desafio de produzir nossas escrevivências 

Nesses encontros formativos compartilhamos textos, autores e literatura sobre educação, periferia, equidade, relações raciais e de gênero. Dessa maneira, as leituras e debates sobre esses temas e conceitos ampliaram nossos olhares, como também redirecionaram perspectivas acerca do combate ao racismo, sexismo, homofobia, transfobia, e preconceitos e discriminações que sustentam e fomentam desigualdades sociais e dificultam a promoção de equidade.  

Um dos textos que lemos durante um de nossos encontros parece ser uma espécie de tradução da experiência de ser pesquisadora do IMJA e atuar em uma periferia com a qual se cria laços, histórias, narrativas, memórias. Ainda que a periferia de hoje, do ato de pesquisar de cada pesquisador(a) seja em grau maior ou menor muito diferente da periferia de nossas infâncias. 

No ensaio Da Grafia-Desenho de Minha Mãe um dos Lugares de Nascimento de minha Escrita, Conceição Evaristo viaja ao território da própria infância em Belo Horizonte/MG para relembrar que sua escrita bebeu, em primeiro lugar, nos múltiplos gestos de sua mãe, que com um galho de árvore desenhava no chão o sol como simpatia para convocá-lo para secar as roupas das madames mineiras. As roupas lavadas sem o sol podiam mofar. E mais: sem o sol, ferramenta de trabalho essencial das diversas lavadeiras, não se podia alimentar toda a família. Havia urgência naqueles movimentos-grafias, relembra Evaristo: “Nossos corpos tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos [...] Precisávamos do tempo seco para enxugar a preocupação da mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados um a um nos varais, na corda bamba da vida”. Essa mesma urgência, diz, está presente em sua escrita, visibilizar as histórias negras, evidenciar suas sabedorias inscritas na vida, pois cada pessoa tem muito a ensinar, independente do grau de instrução formal, não é apenas um ato de memória, um ato estético, mas também um ato político.  

E continuando, Evaristo ainda diz que tudo que ouviu desde a infância alimentou sua escrita. E que mesmo sem papel, em diversas situações escrevia mesmo no corpo da noite.

Conhecer esse texto e perceber que nós, cada pesquisadora, em seus territórios e em nossas reuniões presenciais na Maré/RJ, tecemos nossas escrevivências, o ato de como disse a autora mineira: 

“É preciso comprometer a vida com a escrita ou o inverso? Comprometer a escrita com a vida?” 5Evaristo, C. Da Grafia-Desenho...

Nós, traduzimos essas palavras em comprometer a própria pesquisa com a vida, pois nossos movimentos-grafias nas idas às escolas, estavam também imersas na geografia sentimental da infância, adolescência e juventude que habita em nós. De modo que nossas caminhadas tão plurais por esses territórios periféricos, ativaram ao mesmo tempo às memórias impregnadas nas cicatrizes dos escadões, becos, vielas, ônibus cheios, metrôs, muros, grafites, pichações, pipas, botecos e igrejas, salões de cabeleireiro.

Como Evaristo faz com sua literatura, em nossas pesquisas há, sim mais que um gesto de pesquisar, um ato coletivo de criar ou ativar interlocuções nas escolas por onde passamos. Atos educativos e políticos, atos de ouvir, lecionar, compartilhar e aprender ou assuntar o que o cotidiano e diversos sujeitos(as) tem a nos ensinar. Há uma metodologia ali, há um conhecimento acolá, existem histórias naquela biblioteca. E tudo isso é coletivo e ancestral. Não nasceram do nada. Não se entra e sai de uma experiência como esta da mesma forma. Se sai renovado, provocado, espantado, com o que se fez e o que o presente e o futuro nos pede que continuemos fazendo. Em resumo, pesquisar nos territórios periféricos em que a geografia sentimental de nossas vidas é ativada faz toda diferença. Mas, ainda é difícil mensurar o tamanho desse impacto.
Neste sentido, percebemos como o nosso sentimento, reconhecimento e pertencimento “de si e de nós” nesse território periférico nos trouxe a baila, o nosso “lugar de fala” nesse processo de  aprendizagem e (des)aprendizagem  em ser pesquisadoras/es negras/os em escolas públicas estaduais em diversos estados de nosso país, de forma assertiva, de visibilidade racial e de gênero, com a notória capacidade intelectual, formativa e dialógica dessas sujeitas/os pesquisadoras/os negras/os. Desse modo, estabelecemos dentro desse cenário formativo, potente de leituras e de discussões, e com ineditismo em relação a “ter” somente pesquisadoras/es negras/os nesse processo. Sendo assim, foram construidos laços, traços, trajetórias capazes de outras reflexões e olhares diferenciados  em nossas ações e intervenções pedagógicas nas escolas públicas que tivemos atuações, de impactos em todos os sentidos de sentir, ser, estar e fazer de forma “outra” nesse campo da educação.

 As interlocuções foram proposições que fizeram a diferença em nossa pesquisa, devido a outras percepções e questionamentos  desse nosso lugar de pesquisadora/o, negro/a, mulher, homem, pessoa não binária, que propiciaram novas reflexões e um outro olhar sobre nossos  estudos no campo da educação. Aconteceram discussões sobre diversas instâncias nessa interlocução, como pensar as metodologias que poderíamos dialogar com as/os jovens, as epistemologias que fossem capazes de nos conectar com o que tínhamos de objetivo e justificativas para nossos projetos nas escolas. 

Assim, acreditamos  que esse ineditismo  proporcionado por essas pesquisas, pelo fato de  ter como provocadoras pesquisadoras negras e negros, oriundas de favelas e periferias  do Brasil, fez com que as estruturas das escolas as quais nos debruçamos tivessem seus alicerces impactados por questões que  talvez estivessem como definidas, sem necessidade de aprofundamentos e o que vamos juntas descobrindo é que tudo ainda estava por se discutir. Nesse sentido, a cada encontro com a escola, a cada atividade  construída, fomos tomados por um entusiasmo que nos levava a questionamentos que retornavam para os encontros e eram discutidos , debatidos , confrontados nas reflexões com os jovens, o que refazia então a nossa formação enquanto Educadoras/es, envolvidos no nosso dia a dia , diretamente e  indiretamente com universos escolares. O grande diferencial deste trabalho de pesquisa fora o fato do universo da periferia, o universo da Negritude e as complexidades da questão de gênero, fazerem parte de cada um de nós e , acredito, mesmo com as dúvidas e talvez também com as incertezas sobre  o que encontrar, topamos ir de encontro daqueles que historicamente entendemos como nossos pares e que carregavam, sob nosso ponto de vista, também as mesmas questões nós fizemos de investigação neste trabalho.

Logo, por esses e outros motivos salientamos o quanto essa pesquisa foi e é importante. O quanto é urgente olhar e modificar a realidade de nossos jovens negros e negras e de periferia, principalmente pela educação pública e de qualidade. Por isso a importância da instituição escolar como potência, de uma instituição que agrega e não segrega; de um modelo escolar que dialoga com a realidade dos jovens. Nessa perspectiva, instituições escolares sob o paradigma da potência se tornam atrativas e interessantes, proporcionam e dão embasamento crítico aos jovens, mostrando a realidade social vigente e desigual, mas também apresentando formas de resistências que sejam efetivas, motivadoras e transformadoras.

 

 


RECENTRAR SUJEITOS E TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS – NOSSOS ESTUDANTES DA ESCOLA PÚBLICA

Lady Christina de Almeida

 

Refletir sobre a potência da escola pública requer um deslocamento, sem negar os problemas e dificuldades existentes. É necessário romper com o senso comum, com o discurso da ausência que impera sobre a escola pública e com da falta de interesse dos estudantes, sujeito principal para pensar e promover mudanças na Educação. Reconhecer o poder inventivo e criativo dos sujeitos/estudantes e seus territórios periféricos, a partir do paradigma da potência é necessário. O grande desafio para nós, docentes, é DEScontruir nossa formação acadêmica; Reaprender outros saberes, epistemologias não hegemônicos; REcentrar sujeitos e territórios periféricos – nossos estudantes e a escola pública.

Na pesquisa que desenvolvi em 2018 no Ciep 370 – Sylvio Gnecco de Carvalho, onde sou professora de sociologia, estudantes foram o ponto de partida e ocuparam um lugar central nas práticas educativas. Os encontros “Jovens Pensadores” foi uma estratégia que proporcionou uma relação de aprendizagem mais horizontal. Utilizamos um método colaborativo e interativo que privilegia a escuta sensível. Assim, conseguimos escutar com mais atenção e sensibilidade o que os estudantes têm a dizer, o que sonham, desejam e o que querem aprender. Enxergamos o poder dos pensamentos, das falas e narrativas dos sujeitos/estudantes.

“Quem habita a escola pública? São alunos e professores, mentes pensantes que tornam a escola pública o que ela é, e que devem lutar juntos”

 

(Lucas Neves, 17 anos / 3° ano do ensino médio)


 

Devemos repensar nossos pensamentos e saberes sobre a escola pública. É preciso torná-la um lugar mais agradável. Para isso acontecer, precisa dos estudantes, porque nós somos a base da escola. Sem alunos não existe escola. A sociedade vê a escola pública como um lugar ruim, mas ela é a minha segunda casa, é o lugar que eu me sinto bem. Aqui tem pessoas que acreditam no nosso potencial” (Tatiana Archanjo, 17 anos / 3° ano do ensino médio)


 

"A juventude periférica cansou dos outros falarem dela. Nós falamos, nós sabemos e fazemos, sim. Nós pensamos e temos o direito de nos expor como ser e corpo pensante de um futuro melhor para as escolas. Estamos construindo falas e formas de melhorar nosso ambiente. Existe uma camada intelectual nas periferias e favelas que é marginalizada, que precisa ser vista, e ocupar espaços de poder e de decisões. É nós por nós” (Yuri Viana, 18 anos/ 3º ano do Ensino médio)


Essa pedagogia da escuta e do conhecimento com afeto é o caminho para construção de autonomia e autoreprresentação dos estudantes, rompendo vozes silenciadas. Nos encontros “Jovens Pensadores”, nas rodas de conversa, nos debates e em todo o processo educativo foi perceptível o quanto os estudantes se fortaleceram. Reconhecendo suas origens e ancestralidades, afirmando suas identidades raciais, de gênero e suas orientações sexuais e, assim, elevando a autoestima e conquistando autonomia.

 


Voz coletiva motriz

 

Ouvir falar que é minha, é tua, é nossa
Ouço críticas de um fracasso
Ninguém deseja
Esse sustentáculo formador
Que resiste ao desprezo,
Ao desgoverno pungente e avassalador
Mas vejo muito amor
Parceria e solidão
Jovens sem ânimo, cobertos de ansiedade
No mar de querer e de desejos adormecidos
Desprovidos de direitos
É preciso abrir brechas
Com afeto e escuta sensível
Perceber, reconhecer a potência que há
É tocar na roda viva
Dos sujeitos que habitam lá
Muda-se o espectro,
Desse espaço público
Ao enxergar o poder presente
Imperceptível, mas voraz
O ser questionador não se calou
Enfrentou a apatia opressora
Com a educação libertadora
Ecoou a voz coletiva motriz
Numa mudança faceira, de dentro pra fora
A escola habita em nós.

 

Lady Christina de Almeida

 


 

Pesquisadoras da educação pública: desafios na produção de conhecimento a partir das periferias | Brasil |

Ana Beatriz da Silva, André Gomes, Cléber Ribeiro, Fábio Borges do Rosario, Lady Christina de Almeida, Luciene Antunes Alves, Max Willa Morais, Mônica Rocha, Patrícia dos Santos, Vinebaldo Aleixo

pesquisa@imja.org.br

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