Narrativas

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

Uma experiência visual do silêncio em Saint-Joseph

Uma ilha ao abandono, antes parte do sistema prisional colonial francês, vem sendo há décadas remodelada pela natureza

Glória Alhinho

| Guiana Francesa |

julho de 2022

Je suis seul au monde, et je ne suis pas sûr de n’être pas le roi - peut-être la fée de ces fleurs. Elles me rendent au passage un hommage, s’inclinent sans s’incliner mais me reconnaissent. Elles savent que je suis leur représentant vivant, mobile, agile, vainqueur du vent.
 Jean Genet, Journal du Voleur

O arquipélago das Ilhas da Salvação, Îles du Salut, localizado aproximadamente a 11 quilômetros da costa da Guiana Francesa, na América do Sul, é composto por três ilhas. Este território foi usado pelo governo francês como parte de seu sistema de colônias penais, conhecido como bagne, para onde eram enviados prisioneiros da própria França e de todo o seu Império. As Îles du Salut desempenharam um papel importante durante o período de colonização penal francês (1852-1953),  e receberam os primeiros condenados em maio de 1852.

A mais extensa, Île Royale, destinava-se aos reclusos mais perigosos ou midiáticos, de modo a dificultar-lhes a fuga, que era mais fácil a partir de terras continentais. A Île du Diable, a mais referenciada, acolhia os presos políticos. A Île Saint-Joseph albergava a Réclusion, e recebeu, entre 1852 e 1949, prisioneiros punidos por fugas ou delitos cometidos em outras colônias penais. Por esse motivo, foi chamado o bagne du bagne - o presídio dos presídios. As condições de vida na ilha eram particularmente difíceis, incluindo o confinamento solitário, o silêncio e a escuridão. A Réclusion integrava um edifício central, celas individuais, casas de habitação e um cemitério para os guardas. O ritual funerário dos prisioneiros era idêntico ao dos marinheiros, sendo apenas deitados ao mar. 

Este é um momento significativo para falar sobre a ilha. Após um período inicial de trinta anos de abandono, e uma recente valorização do seu patrimônio, estuda-se a hipótese de vir a alcançar a titulação de Patrimônio Mundial da UNESCO.

Convidada para lecionar na Universidade da Guiana Francesa, no outono de 2018, fui de imediato confrontada com uma Guiana imaginária que a sociedade francesa foi forjando ao longo dos anos: uma terra distante com um clima implacável e habitada por gente perigosa e aventureira. Cheguei a Saint-Joseph sem conhecer sua história. Encontrei nela uma luz intensamente brilhante, cheiros de terra e umidade, sons do mar e de pássaros e um ininterrupto farfalhar do vento numa vegetação abundante. Estas sensações fortes condicionaram minha percepção da ilha e da Guiana. Explorei a Réclusion andando por caminhos de raízes retorcidas, galhos caídos, um musgo escorregadio, camadas de folhas que acolhiam e desafiavam cada passo. Atravessei corredores de troncos imponentes, invertidos geometricamente, que criavam um cenário de tonalidades infinitas de verdes. 

Múltiplas camadas de raízes adventícias e líquenes desenhavam novas texturas nas paredes, realçando e animando suas cores desbotadas. Suspensos no que antes era o esqueleto de um telhado, galhos, raízes e folhas formavam uma treliça que espalhava a luminosidade em todas as direções. Do ambiente radiante e agitado surgiu a ideia de que esse caos de matéria orgânica seria uma inversão do mundo de ordem e regras que caracterizaram a Réclusion.

Em Saint-Joseph aprendemos que é o corpo inteiro que vê. Não há um sentido que seja superior ao outro, todos estão interligados.

Vemos como a matéria natural e aquela que o ser humano manipula se movem infinitamente e das maneiras mais inesperadas. Nesta pequena ilha, ambas evoluíram e permanecem habitadas por uma presença poderosa que encontra novos caminhos a cada momento. Essa presença silenciosa se afirma visível, palpável em sua própria quietude e vitalidade intrínseca.

John Berger apresenta Ways of Seeing, sua série de televisão da BBC de 1972, dizendo The human eye takes its visible world with it as it walks [“O olho humano leva consigo seu mundo visível enquanto caminha”]. O movimento está intimamente associado à visão. Não é apenas o nosso movimento que afeta a forma como vemos, mas também como tudo à nossa volta se move, onde quer que estejamos.

Na Réclusion, reminiscências de diferentes silêncios, de forças invisíveis e formas de vida nos cercam enquanto continuamente apagam ou acrescentam significados. Essa superposição de materiais em ruínas e formas dinâmicas da natureza desafia nossa percepção. Essas reminiscências interferem na forma como vemos alguns lugares históricos, principalmente aqueles que se relacionam com experiências humanas de dor e sofrimento?

Devemos considerar a fragilidade dos fenômenos naturais e a das estruturas e instituições humanas. Aparentemente, estas foram criadas para permanecer, mas podem se desmoronar e nos mostrar que nada dura para sempre. Que narrativas podem emergir dessa fragilidade que coexiste no mundo natural e na construção humana? 

Os silêncios visuais deste bagne ao abandono, as suas histórias visíveis e invisíveis, conhecidas e desconhecidas, inscritas pelo ser humano e pela natureza em diferentes épocas, indicam que a história da ilha não pode ser limitada a uma perspectiva do ser humano, mas incluir uma consciência do ser vivo em todas as suas manifestações.  

Saint-Joseph nos convida a ver como a vida se revela das formas mais inesperadas. Podemos encontrar novas estruturas, cores, texturas e geometrias que foram se adaptando e evoluindo a partir de uma proximidade com o que o ser humano deixou para trás. A natureza reinventou Saint-Joseph. A história de vida da ilha e do bagne está em constante evolução. Ela oferece uma oportunidade de irmos além de um espaço e tempo vinculados ao sofrimento, à morte e ao isolamento. Podemos olhar para a criatividade da natureza e como ela nos convida a regressar  ao lugar ao qual sempre pertencemos, ao continuum do orgânico.

Glória Alhinho | EUA |

Doutora em Estudos Ibéricos, Latino-Americanos, Mediterrânicos, pela Universidade de Bordeaux, França. Curadora de projetos culturais que relacionam as dimensões acadêmica e diplomática, na Universidade de Georgetown e na Embaixada de Portugal em Washington, DC. 

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