Arte periférica retrata a afrodiáspora em ambiente digital
No Festival Pangeia a Exposição Origens #3 possibilita acesso à arte e cultura em tempos incertos
Mariane Del Rei
| Brasil |
abril de 2021
Após um ano da pandemia, a sociedade teve que se ajustar à vivência dos novos tempos. Para a arte e cultura, não foi diferente. Segundo pesquisa realizada pelo International Concil of Museums - Brasil (ICOM BR) a ampliação da presença digital dos museus já não era novidade, mas foi acelerada pela pandemia. Exposições online e/ou visitas virtuais a museus e galerias foram uma das atividades mais acessadas. Dentre algumas das exposições de arte que tiveram ser adequadas ao ambiente virtual, grande exemplo de sucesso entre internautas foi a Exposição Origens #3, que aconteceu de dezembro de 2020 até fevereiro de 2021, com acesso totalmente digital e gratuito pelo site do Festival Cultural Pangeia.
A princípio, a exibição das obras foi idealizada para ocorrer no formato presencial, no Centro Cultural do Grajaú, em São Paulo. Devido a pandemia, foi transferida para o meio virtual, aumentando o seu alcance e chamando a atenção do público — não só do Brasil, como de outros países. A exposição recebeu visitantes internacionais de diversas localidades como Estados Unidos, México, Angola, Moçambique, Equador, Holanda, Áustria e Itália.
A mostra paulistana foi composta por mais de 50 obras entre pinturas, colagens, artes digitais e fotografias produzidas pelos artistas Isabela Alves "Afrobela", Cauã Bertoldo, Cassimano, Paulo Chavonga e Ione Maria — artistas plurais que retrataram em suas obras as origens diaspóricas envolvidas em seus cotidianos, refletindo essências da diáspora africana nas realidades periféricas.
Em entrevista, a responsável pela curadoria da Exposição Origens #3, Priscila Magalhães, falou como a vivência dos artistas, oriundos de territórios periféricos, contribuiu efetivamente para a construção das obras expostas e para a exposição em si.
“A ideia de curadoria da exposição estava atrelada à visão de artistas periféricos relacionada ao território e a ancestralidade. Assim, as obras concebidas para a exposição são afetações ligadas a essas duas propostas, deixando evidente, quando apreciamos essas obras, toda a vivência desses artistas com base nos lugares onde vivem e a busca pela ancestralidade relacionada a conexão afrodispórica, uma vez que todes são pessoas pretas”, destacou.
Priscila Magalhães também contou sobre o grande desafio de levar apresentação artística para a internet, um desapegar da experiência presencial que leva a pensar numa disposição mais atrativa para o público das obras no site.
“As pessoas estão acostumadas a olhar as obras de arte de perto, ver textura, sentir cheiro, ver o tamanho, ter uma sensação presencial, e isso nos deixou muito apreensivos, preocupados pela experiência não se dar por completo por ser virtual. Claro que, de modo geral, uma exposição presencial traz mais sensações ao público, mas tivemos que nos adaptar e levar arte às pessoas de uma forma diferente. Tivemos um público bem expressivo, dando indicativo que a apreciação aconteceu, de fato, mesmo que em ambiente virtual”, enfatizou a produtora cultural.
Quem visitou a mostra se deu conta da nova linguagem contida nos trabalhos expostos, que estabelecem uma relação muito própria com a arte, retratando origens diaspóricas de forma contemporânea. Magalhães explicou como foi para os artistas elaborarem as obras.
“O processo de cada artista envolvido na exposição era bastante diverso, tendo muitas nuances e especificidades éticas e estéticas. Mesmo assim era possível identificar semelhanças, traços e motivações próximas. Dentre os pontos comuns, destacava-se a negritude das pessoas retratadas/fotografadas/vivenciadas nas obras; atenção aos detalhes de suas caminhadas enquanto artistas, tal como das pessoas que os atravessam; a dualidade do ‘bom’ versus ‘ruim’ impregnada nas quebradas; símbolos e releituras de histórias de ancestrais próximos e distantes; e por fim, mas não menos importante, a dignidade implícita no cuidado para com seus próprios trabalhos por entenderem o movimento cíclico de suas vidas em relação a de seus antigos”, disse.
Priscila Magalhães ainda ressalta como artistas das periferias têm se posicionado e desafiado as instituições hegemônicas de arte.
“Acreditamos que a maior movimentação contra-hegemônica possível para artistas marginais é entender os processos individuais de cada artista e, assim, fortalecer as iniciativas independentes. Na mesma medida, a noção de comunidade é muito presente nestes artistas, não sendo raro conexões e parcerias sob diversos parâmetros de troca. Isso cria redes autossuficientes de produção e apreciação artística, possibilitando a existência, não de um, mais de vários circuitos periféricos de arte”, concluiu.
Festival Cultural Pangeia é uma referência a Pangeia, que era o grande continente, a primeira crosta terrestre que existiu antes da separação que formaram os seis continentes que conhecemos hoje: África, Ásia, Europa, Oceania, América e Antártida. Apesar das divisões continentais, a proposta é a união das culturas, influenciada e construída a partir de intervenções artísticas com diversas atrações e o mapeamento de artistas. O festival faz parte do projeto "Conexão Américas e África", relacionando a influência da cultura afrodiaspórica nas Américas.
Ione Maria | Brasil |
Ione, 25 anos, diretamente de Vila Albertina, SP. Colagista há 5 anos, também trabalha com design e direção de arte. A colagem, em particular, é o campo de pesquisa da artista, evidenciando a cultura afro-brasileira através do formato analógico/manual. A arte, por sua vez, vem do lugar de colocar narrativas negras em espaços dignos de realeza através das imagens que a cercam. Há o costume de criar também com amigos e familiares, costurando relações mais firmes e afetivas em seu trabalho. No design, se destaca pela linguagem afro-futurista, articulada também através do movimento independente preto, para fins comunicativos e artísticos.
Cauã Bertoldo | Brasil |
Artista visual, desenvolve a identidade poética de seu trabalho desde 2014. Se expressa em técnicas de pintura diversas, dentre elas a aquarela, arte digital, grafitti etc. Sua pesquisa em arte, trata das questões do sujeito negro e queer periférico, através de retratos mergulhados em metáforas e interpretações multilaterais, onde cada um se conecta e se vê à sua maneira.
Isabela Alves - AfroBela | Brasil |
Multiartista e futurista. Reside no bairro Jd. João XXIII, e é nesse território que cria e desenvolve suas linguagens, trabalhando com colagem digital, tela e tinta acrílica, fotografia e escrita. Seus projetos pessoas discutem sempre sobre sexualidade e identidade, sendo o maior deles a plataforma afetiva A Perfeita Queda dos Búzios, também idealizada por Jéssica Ferreira, e residente no Teatro de Conteiner.
Cassimano | Brasil |
Nascido e criado na periferia de São Paulo, ainda adolescente, despertou seu interesse pela fotografia nas ruas ao trabalhar como mensageiro. Em 2012 viajou para Moçambique para realizar um intercâmbio cultural e fazer o registro fotográfico dessa viagem. Desde 2016 realiza o projeto "Galeria Fotográfica de rua" projeto de intervenção urbana com suas fotografias ampliadas em grandes formatos e aplicadas em diversos suportes com colagens. Com o mesmo projeto promove cursos de fotografia, de ampliação e aplicação das colagens para jovens da periferia.
Mariane Del Rei | Brasil |
Jornalista, escritora, roteirista e assistente de direção. Coordenadora de comunicação na UNIperiferias.