literatura e poesia

periferias 6 | raça, racismo, território e instituições

Oubliette: na masmorra do esquecimento 

Howard Meh-Buh Maximus

| Camarões |

março de 2021

traduzido por João Calixto

Linonge era o seu melhor amigo. Foi ele que te ensinou como entrar com farinha e outros contrabandos indispensáveis na escola:

— Rasgue um lado do seu travesseiro — ele disse — tire uma parte da espuma e então preencha uns pinos de Branquinha no lugar. Esse era um dos nomes da farinha no internato Saint Joseph, sua escola: Branquinha, Farinha dos Deuses, como se fosse um tipo de narcótico, como pó branco, enfatizando tanto o seu aspecto precioso quanto proibido.

— E quando você terminar de encher seu travesseiro — continuou Linonge — feche a parte que ficou aberta com uma costura, e a amarre firme no seu colchão de um jeito que nem a bruxa camaronesa da cidade de Mamfé pensaria em te chamar e revistar.

A bruxa de Mamfé era o Sr. Ojong, Inspetor Chefe do segundo ano, que se escondia atrás dos dormitórios e dos banheiros dos alunos em horas profanas, com orelhas coladas aos protetores enferrujados de janela na madrugada, na expectativa de ouvir algo que pudesse servir para incriminar os alunos no dia seguinte. Os esforços pareciam desproporcionais à recompensa, apesar dos rumores de que ele tentava seu caminho até o posto de Inspetor Chefe do terceiro ano. Os alunos no internato se perguntavam se ele era realmente casado; se aquela garota simples, de olhos tímidos, que vinha à missa aos domingos, carregando um bebê silencioso e vestindo aquele mesmo vestido sem graça de cetim, era realmente sua esposa. Onde ele arrumou tempo para fazer um bebê, se passava todo seu tempo na escola, vigiando alunos? 

Nos banheiros e paredes dos mictórios estavam as caricaturas obscenas dele próprio fudendo com uma funcionária da cozinha, ou com uma professora, ou com sua esposa. Em outro desenho, ele segurava o pênis com uma mão e olhava uns meninos tomarem banho, enquanto a sua esposa tentava chamar sua atenção, puxando a outra mão. Na janela do dormitório, ele ouviu histórias fresquinhas sobre si mesmo. Histórias que ele mesmo desconhecia. 

Uma vez escutou que não tinha terminado de pagar o dote à família da esposa. Que ele ainda economizava seu salário magro e era por isso que passava a maior parte de suas noites longe da cama da esposa, porque ela ainda não era inteiramente sua. Outro aluno argumentou que ele não era tão honroso, e que isso talvez acontecesse pois ele não tinha achado tão atraente o clima da aldeia dela; um outro disse que não, "ela não acha ele atraente, mas também, quem acharia!".

A geografia de seus olhos tampouco o ajudava. De tão distantes em seu rosto, pareciam gêmeos que se odiavam. Quantas risadas. Alguém próximo da dispensa disse que de qualquer maneira o bebê era fofo demais para ser dele, a mulher devia estar dormindo com algum outro funcionário. 

— Ou um aluno — alguém completou; era difícil de saber exatamente quem falava o que no escuro, mesmo que se pudesse supor pela familiaridade das vozes. Todo mundo gargalhou de novo quando alguém disse:

— Lino, até que ele tem a sua cara! — Linonge então xingou a pessoa. Com uma risada de fundo, disse que tinha um gosto muito mais refinado, que jamais teria o Mr. N.

Um dia depois, serão todos punidos por isso. Estarão de pé, em frente ao campo de futebol, todos os alunos do seu dormitório, com facões na mão, prontos pro trabalho. Quando Mr. N entrou naquela noite, agindo como se não tivesse ficado puto com tudo que ouviu, vocês todos fingiram dormir. Até Linonge. Mas logo e de tão forte que Mr. N gritou você até sentiu a garganta doer; disse que vocês poderiam dormir o quanto quisessem, pois sabia que não eram fantasmas falando e, mesmo se fossem, ainda derrubaria vocês todos por isso.

Quando relatou o incidente ao diretor, ele disse ao Padre Martins que todos permaneceram acordados tagarelando, dizendo um monte de coisas sobre os funcionários da Saint Joseph. De todos. Inclusive do Padre. Depois das luzes apagadas. Em Inglês Pidgin. Com muito drama, completou com as pequenas frases ditas, como se fossem gotas de gasolina pingadas ao fogo, atento aos efeitos esperados. 

O padre te olhou com os olhos semicerrados e então pediu a ele que punisse a todos com rigor. Ele sorriu, triunfante, encaminhando-nos pelo entrada principal, com um tubo de gás na mão, lançando aquelas longas pernas, num aparente esforço para se livrar delas. Você normalmente não era punido. Já Linonge era e, mesmo assim, faltar às aulas era algo que o deixava animado, mesmo se fosse para acabar cortando grama. Você caminhava atrás dele, enquanto Linonge cochichava piadas do jeito do homem andar, com suas pernas de aranha, seu senso de estilo ou a falta dele, sua voz esquisita. Todos os funcionários da escola o chamavam de Sr. O.J, e todos os alunos o chamavam de Neurose. 

Mr. N era o apelido.


Sua mãe costumava dizer que era difícil te reconhecer sem o Linonge colado ao seu corpo. Tomavam café da manhã na sua casa naqueles finais de semana em que ele te fazia uma visita, com sua mãe pedindo ao Jean Baptiste para preparar panquecas de Nutella, daquele jeito macio favorito dele.

Jean Baptiste colocava as panquecas numa travessa longa e retangular de madeira, e as servia com recheio de frutas e chá. Era para que o café parecesse um tanto pitoresco, como se fosse algo roubado de uma revista de decoração. Você gostava que sua mãe gostasse dele. Te agradava a felicidade dela ao perceber o quanto ele gostava das panquecas, pedindo a Jean Baptiste que preparasse algumas a mais para ele, enquanto Linonge lambia a Nutella dos dedos. E quando você reclamou que as panquecas tinham gosto de sabão, por excesso de bicarbonato de sódio, ou que o chocolate era muito e que parecia que estava comendo chocolate com algumas migalhas de panqueca, Linonge se perguntava como você poderia encontrar qualquer defeito nelas; se existiria algo no mundo como "muito" chocolate.

De noite, vocês esperariam todo mundo ir dormir, antes de correr pro seu quarto no andar de cima para jogar FIFA e falar de garotas. No seu quarto, Linonge se maravilhava, como se toda vez fosse a primeira em que dormia lá. Achava demais o fato de você ter o seu próprio computador, um laptop nesse caso, e um Wi-Fi pago pelos seus pais. Ele acariciava o controle do ar condicionado quase que com contemplação, reduzindo ao máximo a temperatura do quarto, e então se aninhava debaixo do edredom, para se proteger do frio que criava com as próprias mãos. Sussurrando, ele te fazia trancar a porta para entrar em sites pornô, o que faria com que vocês dois se chocassem, tanto de nojo como de um prazer culpado.

Na casa dele, sua mãe te apresentava com orgulho às amigas como irmão de Linonge. Ela gritava do seu fogão a lenha, falando para as irmãs de Linonge trazerem a lata de chocolate, onde estava o sal, ou a caixa de biscoitos amanteigados dinamarqueses onde a pimenta agora estava sendo guardada. Linonge fazia piada sobre como na casa deles nunca viam os biscoitos, só a caixa.

A mãe dele abriu a porta da sala algumas vezes para perguntar se você estava bem, para se desculpar do ventilador não funcionar, mesmo sem você sentir tanto calor assim. Ela pediu ao Linonge para te oferecer mangas que talvez ela mesmo já soubesse terem acabado há muito tempo. Abrindo os olhos, ela perguntava com surpresa:

— Vocês comeram todas? — e suas irmãs gritavam:

— Mamãe, você comeu a última!

Você às vezes achava que ela não iria se incomodar caso você se casasse com alguma delas, suas filhas; isso selaria a amizade entre você e Linonge. Estava lá, no modo como ela falava delas com um leve, afetuoso e duvidoso olhar: como elas cozinhavam bem, o quanto eram bonitas, como seus maridos seriam dos homens mais afortunados. Ao seu lado, elas riam com timidez — uma com quatorze, bem pequena, a outra uma garota de treze anos com covinhas, e que parecia maior que sua irmã mais velha—; Linonge te pediria para focar no que ele estava te mostrando, e você se perguntava se também ele tinha percebido, se tinha se envergonhado com as pressões sutis que fazia sua mãe.

Nos dias em que você a encontrava cozinhando, os olhos da mãe dele sempre avermelhados pela fumaça da cozinha, seu avental frouxamente amarrado em volta da barriga, ela reforçava que você não fosse embora antes que estivesse pronta a comida. O sabor da sopa ekwang ou da de quiabo, ou do arroz de jollof se espalhava por todos os cantos que nem fofoca.

Uma vez durante umas longas férias, depois da sua aprovação para o ensino médio, sentado num banquinho no cruzamento da Clark’s Quarters, comendo suya — pedaços de carne — em um papel kraft, vendo as garotas que passavam pela rua, Linonge do nada te disse como era vergonhoso o fato de o tratarem como uma realeza na sua casa, com cozinheiros uniformizados servindo-o em pratos caros e frágeis, numa sala de jantar com toalhas de mesa e taças, com sua mãe se assegurando de que ele estava confortável; seu pai, oferecendo vinho branco, falando de futebol como se fossem da mesma idade, enquanto na casa dele a própria mãe te servia num prato de plástico, num banquinho. Não tinha suco de frutas depois de você comer, apenas água fria em um copo de plástico, isso se a geladeira estivesse funcionando. Foi para você um choque que aquele tipo de coisa o incomodava, especialmente porque você mesmo nunca tinha pensado sobre aquilo. Você disse a ele que você preferia o ekwang da mãe dele em um parato de plástico do que o arroz frito com galinha do Jean Baptiste. E você falava sério.

Na escola, vocês dividiam tudo: mochilas, comida, armários, chaves, mesada. A mochila dele era reservada para a sua comida, enquanto na sua iam os detergentes, entre outras coisas. Seus pertences você não dividia entre seus e dele, você pensava neles como nosso. 

Na sala de aula, Linonge era uma vergonha e dependia exclusivamente de você para passar. E você sempre estava ali, aumentando o tamanho da sua letra durante as provas, deixando o papel bem na beirada para que ele pudesse copiar, sussurrando respostas quando a professora não estava vendo. Numa aula de Geografia ele definiu Dobras quando você dobra algo e Falhas quando você acusa alguém de estar errado. Todo mundo começou a rir muito, e o professor, o Sr. Esendge, um homem careca com barriga de cabaça, pediu a ele ara sair da sala.

— De que vilarejo era ele! Como poderia ser tão estúpido se ele andava de um lado pro outro com Chu-Kum! Como não aconteceu uma osmose cerebral?

Você olhou para baixo, envergonhado com o elogio; Linonge, enquanto saia da sala, olhava para você satisfeito, como se sua indisciplina fosse um ato deliberado para o mundo gostar mais de você. Como se ele estivesse apagando lentamente sua própria luz para que a tua brilhasse com mais intensidade, mais visibilidade. Em Biologia, ele definiu Osmose como água no deserto, e quando você disse a ele que aquilo era um Oásis, ele riu:

— Viu? Eu tentei.

Você tinha certeza de seu sacrifício por você. Ele já tinha feito isso tantas vezes. Como no dia que ele brigou com um aluno do terceiro ano por ter chamado seu pai de nyongo, dizendo que ele matou pessoas por dinheiro; você que nem se deu conta quando ele socou o menino, e logo estavam no chão, rolando, se socando, no ar manchas de sangue por toda parte, isso enquanto você tentava dissuadi-lo, gritando:

— Lino, Lino.

Ou a vez que ele gritou com a enfermeira da escola por te dar uns comprimidos amarelos estúpidos que podiam te matar em vez de curar, perguntando onde ela conseguiu o diploma de enfermagem. Ele insistiu que te mandassem para casa para receber um tratamento adequado, mas a enfermeira disse que estavam todos buscando uma desculpa para ir para casa, mesmo com você piorando a cada dia, convulsionando, seus olhos assustadoramente brancos.

Ele também fugia da escola nos fins de semana, escalando a cerca, rompendo barreiras para comprar sopa de eru ou peixe frito ou espaguete, para ele, mas também porque ele sabia que você não gostava do milho com feijão servido aos sábados. E foi num desses finais de semana que ele encontrou com o Mr. N em um restaurante em Tole, onde todo mundo estava comentando sobre a loucura que estava rolando no país, sobre os tiros da noite passada que não deixaram ninguém dormir. 

Linonge falou como Mr. N o chamou pelo nome completo enquanto ele pedia uma sopa de eru: Linonge Oscar Eseme, e como ele agiu como se aquele não fosse seu nome, como se ele não tivesse qualquer ideia de quem fosse aquele homem, franzindo as sobrancelhas como se houvesse alguma confusão, saindo do restaurante. Ele contou como Mr. N pegou um táxi direto para Sasse, e ouviu o homem oferecer um dinheiro extra ao taxista para que o levasse diretamente à escola, sem parar para mais ninguém. Só o Neurose podia pagar um taxi com um dinheiro que ele não tinha, e isso só para chegar na escola, simular uma chamada aleatória e provar que um aluno estava fora dos limites, para então suspendê-lo.

Mas a esperteza que faltava a Linonge na sala de aula, ele tinha na rua, e por isso sempre garantia ter os números de telefone dos bike-táxis. Era amigo de muitos deles. E, em dias assim, eles eram muito úteis, pedalando pelas monoculturas de chá, pegando trilhas que os próprios alunos tinham criado, lugares que o Mr. N sequer imaginava existir, indo muito mais rápido do que o táxi poderia ir. Foi impagável o espanto na cara do Mr. N quando chegou na escola, após deixar Linonge em Tole, apenas para chamar seu nome minutos depois — Linonge Oscar Eseme — e ouvir a voz de Linonge respondendo “presente”. Ele não viu carro nenhum atrás, e tinha como certo que Linonge estava preso em Tole, sem poder encontrar um táxi.

— Onde você estava, meu jovem? — perguntou Mr. N.

— Eu estava no dormitório, chefe, antes de ouvir o sinal para chamada.

— É verdade, chefe — você acrescentou — a gente estava lavando roupa juntos.

Mr. N olhou para você, olhou para ele, e finalizou a chamada.

— Me mostre as roupas que estavam lavando.

No dormitório, você mostrou ao Mr. N uma bacia de roupas que estava lavando. Você decidiu dar uma força e lavar as roupas de Linonge, que estava fora a conseguir comida para vocês. Mr. N verificou o nome nos uniformes. Ele olhou para vocês dois, descrente. Você sabia que ele não tinha comprado sua história, ele sabia o que tinha visto, quem ele viu. Mas não tinha nenhuma prova. Você sabia que o irritava profundamente o fato de vocês o fazerem de bobo, e que ele não pararia até ver vocês dois punidos, por qualquer razão, e que estaria na nossa cola até a gente sair da escola — formados ou expulsos. Que ele faria disso seu dever. Vocês se tornaram inimigos de um inspetor escolar excessivamente disciplinador; se isso te dava medo, parecia inflamar os ânimos Linonge.


Nas férias passadas, dois dias antes do Natal, Linonge ligou dizendo ter encontrado garotas para vocês dois; você consegue alguma grana pro encontro duplo? As garotas se sentaram na sua frente como num filme, pegando os garfos ao mesmo tempo, ao mesmo tempo sorrindo o mesmo sorriso, dirigindo o olhar à mesma coisa, ao mesmo tempo. A coreografia delas te deixou louco. 

Normalmente, se o encontro fosse a sós, você diria a Linonge que ela não faz muito o seu tipo; rindo, ele te perguntaria qual seria o seu tipo. Mas algo tinha de interessante no fato de serem gêmeas, de serem pessoas que pareciam cópia da outra em absolutamente tudo, das cicatrizes e pintas, aos trejeitos. Linonge ofereceu mais suco às garotas, falou sobre as festas da escola que se aproximavam durante as longas férias. Apesar de sentarem à mesma mesa, você mandou uma mensagem perguntando onde ele tinha encontrado as garotas, que logo te respondeu com uma linha longa de emojis gargalhando. Mais tarde, disse que elas eram da Escola Batista Saker, que encontrou e conversou com as duas pelo Facebook e, apesar de parecerem mais atraentes pelas fotos, que legal que era vocês dois saindo com irmãs gêmeas!

Como uma tradição, vocês avaliaram seus objetivos para o ano próximo e tiveram o direito de adicionar um objetivo à lista do outro. Você acrescentou mais esforço na escola. Para o seu ano, ele acrescentou que conseguisse transar; você já tinha dezesseis anos, pelo amor de deus! Você disse que por isso todos achavam péssima a ideia dessa amizade, quando ele riu e respondeu — como se fosse!

Ele contou sobre sua primeira vez. Como que, com onze anos, ele não tinha noção do que sua prima de dezessete fazia com ele na escuridão da cozinha de fogão a lenha. A garota forçou suas mãos pequenas a acariciar seus seios, abriu a braguilha de sua calça — isso sempre parecia apressado e imoral. Depois, aos quatorze, foi com a sua vizinha de porta; ele não sabia que poderia ser tão bom, mesmo que ainda parecesse imoral. Mas, quando ele falava sobre suas experiências, era com um tom descabido que não culpava sua segunda prima por estupro, mas sim por ela não ter sido boa o suficiente para que ele sentisse prazer.

Nas festas, jogando Verdade ou Consequência ou Eu Nunca com gente como você, você se sentia inútil, entediado; não havia nada muito atrativo em viajar para Nairóbi ou Kigali ou Birmingham, e encontrar garotas bonitas, se tudo que vocês fariam com elas seria apenas ficar olhando.Dois dias depois de riscar “transar esse ano” da sua lista, você estava checando seus uniformes e roupas de cama, se preparando para retomar a escola no dia seguinte, apesar dos boatos de greve. Linonge invadiu seu quarto, te agarrou pelo braço, e perguntou se você sabia que a garota que tinha tirado sua virgindade era a mulher dele. Você olhou paralisado, não que fossem seus bíceps o que te intimidava, nem a barba que começava a aparecer nessas férias (há semanas ele misturava maconha ao óleo de cabelo, aplicando-o religiosamente às bochechas para forçar o crescimento de sua barba; ao vê-la crescer, você sempre se perguntava se a ganja realmente funcionava, ou se eram os pelos crescendo naturalmente, porque ele era um adolescente, amadurecendo).

O que te assustava era o que você pensava ter feito, o que então seria da amizade de vocês? Você tentou falar mas gaguejava as palavras, como se alguma coisa em você as estivesse despedaçando. Não tinha nada para ser dito: Ano Novo, e você tinha se tornado aquele cara que acabou com uma amizade por dormir com a garota do melhor amigo. Depois de um minuto, Linonge riu e disse que você parecia um fantasma com vontade de cagar. O importante era você ter cumprido o objetivo que ele pôs, e logo no início do ano; além disso, como você não conseguiu se dar conta que a garota, alta que nem uma girafa, com seios miúdos, não fazia mesmo o tipo do Linonge!


A mulher do sr. Ojong tinha começado a vender bolovo na escola. Ela os trazia num balde transparente de plástico e os deixava na livraria para que os alunos cansados de ler pudessem se distrair. Linonge espalhou um boato de que era para pagar o que faltava do seu dote. E apesar dele comprar os bolovos dela todos os dias, apesar de os alunos comprarem todos em uma hora, apesar de achar, ele, Linonge, que eram deliciosos, ele assumiu o dever de escrever em todas as paredes para que o Mr. N pudesse ler: O bolovo da senhora N é a pior coisa que já aconteceu aos alunos do Saint Jospeh desde a Punição Costas Esfoladas. 

Todos os dias ele estava cortando a grama, ou plantando inhame, cavando buracos ou recolhendo tocos de madeira. Punições dadas a ele pelo Mr. N, que tomou para si o dever de vigiá-lo a todo tempo. No caso de Linonge, se alguém o observasse apenas um pouco, seria muito fácil encontrá-lo desfrutando da confusão. Os problemas mais comuns em que se metia eram falar Inglês Pidgin, ficar no dormitório na hora da missa, ou da aula, ou a qualquer momento em que ele não deveria estar por lá. Uma vez ele dormiu demais durante uma sesta. Quando acordou, todo mundo já estava saindo do dormitório para a aula. O Mr. N encontrou com ele no banheiro enquanto ele se esfregava, e ali mesmo, açoitou seu corpo nu ensaboado com um tubo de gás, tão violentamente que a marca das linhas permaneceu por um tempo. Na sala de aula, os colegas de classe perguntaram seriamente:

— Mas por que tu faz isso, cara? O que é que você já fez para ele?

Na semana seguinte, Linonge andou de sala em sala, coletando giz e cuidando de suas feridas. Ele te ignorou quando você perguntou se ia vendê-los, ou se era porque eles ajudavam com as marcas do chicote. Uma noite, ele te deu um bolo e um suco para dar ao Mr N. Você olhou para ele confuso.

— Apenas diga que é seu aniversário e que ele é um bom inspetor. 

Você obedeceu, não entendendo o que estava acontecendo. Naquela noite, enquanto Mr. N corria para o banheiro pela diarreia causada pelo bolo, Linonge se envolveu com uma colcha branca, pintou sua pele com giz e ficou próximo da porta do banheiro. Pouco tempo depois, ouviu-se um grito:

— Diabo, diabo, fantasma, fantasma! — era o Mr. N tropeçando e re-tropeçando no chão cheio de merda, com a calça nos joelhos, caindo e pulando, com a bunda de fora, até que os alunos começassem a se reunir. Linonge esgueirou-se por detrás do banheiro, tirou do rosto o giz e se juntou à congregação de alunos que assistia àquele homem perturbado. Naquela noite, o Mr. N foi parar no hospital.


No dia em que os garotos das milícias separatistas vieram, você e Linonge estavam cavando dois buracos à altura de vocês e, por um breve instante, você chegou até a agradecer a Deus por ser mais baixo que Linonge. Mr. N pegou Linonge com um celular na escola; depois de confiscá-lo, puniu ambos: ele por trazer o aparelho para a escola, e você por ser cúmplice e não reportar ao representante do dormitório. Quando vocês ouviram a explosão, Mr. N conduziu seu olhar até Linonge, perguntando, com um tom acusatório, se ele tinha plantado bombas no campus.

Não eram bombas. Eram os garotos entrando em marcha, gritando para que saíssem todos dos dormitórios. Pouco tempo depois, eles já tinham começado a derramar gasolina em volta do dormitório São Tomás de Aquino, depois no dormitório São Paulo. Era um caos, alunos gritando e correndo para se salvar, com suas vidas mais ou menos na mão. Os garotos vestiam preto, pareciam selvagens, e tinham amarrado uns panos vermelhos em volta do braço. Eles falavam um Inglês quebrado e, se precisassem, um Inglês Pidgin. Todos vocês tremiam, a pá que você carregava já tinha caído há muito tempo, ainda que suas mãos parecessem mais pesadas do que nunca. Eles falavam, com olhos vermelhos, como era uma bagunça esse país, como as escolas deveriam estar em greve; vocês, povo, não escutaram? Eram eles os que deveriam lutar pelo país enquanto nós pelegos seguíamos normalmente com nossas vidas? Quanto silêncio. Você nunca tinha visto tanto terror, pior do que todas as eleições para a direção da escola juntas.

Quem parecia o líder gritou cobrando uma resposta. Mas ele não deu tempo para respostas, e pediu a todos que desocupassem o campus, carbonizado, se necessário, e se mesmo assim alguém ainda estivesse por lá em cinco minutos, seria levado no caminhão. O internato Saint Joseph se tornou a própria definição de desespero; eram mais ou menos oitocentos alunos correndo em fuga por um único portão. Enquanto você corria pela vida que tanto amava, via os dormitórios lampejando, viu fogo por todo seu arredor, a fumaça preta crescendo, e isso em volta das coisas que um dia te pertenceram. Aquilo te lembrou uma passagem da Bíblia, aquela sobre a destruição de Sodoma e Gomorra. Mas nesse caso, quem era Deus?

Alguns dias depois, você acompanhou Linonge à escola para pegar o celular dele. Tudo parecia ter acalmado e Linonge não parava de dizer que nunca permitiria ao Mr. N usar essa oportunidade para se apossar de algo que era dele. Mas, quando vocês chegaram, viram um grupo de soldados em frente a casa do Mr. N. Sua mulher fritava o bolovo, talvez para o pessoal do bairro de Tole, o bebê estava em silêncio no berço, seguro. Você queria ir embora, mas Linonge pediu para segurar um pouco, pois você poderia ser visto e, além disso, eles estavam só fazendo algumas perguntas e já deveriam estar de saída.

Pouco tempo depois, vocês escutaram um dos soldados gritar em francês. Ele dizia ter escutado que os garotos estavam por ali, naquele bairro, e que a mulher tinha de falar onde. Você insistia com Linonge que era óbvio que ela não conseguia entender francês, até que ela gritou, frustrada, que eles deveriam perguntar a outra pessoa. Foi quando o Mr. N apareceu. Um dos soldados deu um tapa no rosto da mulher que a fez cair do banco em que estava. Você prendeu a respiração, o bebê começou a chorar, e Linonge estava inquieto do seu lado. Ele perguntava como se não estivesse vendo:

— CK, o que está acontecendo? — como se você estivesse assistindo e ele, do outro lado da linha, apenas te escutasse. Os soldados rasgaram o avental da Sra. Ojong e na frente de vocês e do marido dela, dois deles começaram a montar nela, em turnos. Ele tentou impedir, mas o detiveram com uma arma.

Quando terminaram, eles jogaram o bebê que chorava no óleo quente. Você sentiu seu coração parar. A boca de Linonge abriu, mas nada saía. Nem ar. Mr. N conseguiu se espremer para fora dos braços dos soldados, andou com um vigor que você jamais imaginou que ele tinha, e atacou o soldado que tinha fritado seu bebê; foi quando os soldados atiraram nele até morrer, atiraram na sua mulher até morrer, e desapareceram com os corpos no caminhão.


Seu pai te disse para não arrumar a mala, talvez apenas o seu laptop e o seu diploma do Ensino Fundamental; roupas você sempre poderia comprar em Gana. Você ligou pro Linonge para avisá-lo dos seus planos de viagem, mas então você se deu conta que seu telefone tinha ficado com o Mr N, antes de o matarem. Você ligou para a mãe dele. Seu pai tinha dito que ninguém sairia de casa até o dia do voo.

Em Gana, você tentou acompanhar as notícias do que estava acontecendo no seu país. Você ligava para mãe de Linonge para saber como estavam, mas depois de muito pouco tempo, até o número dela parou de chamar. Você não conseguia falar com Linonge também por conta dos cortes de internet nas regiões sudoeste e noroeste do Camarões, por meses. Depois de feito o exame do Nível Avançado, você voltou para casa, a contragosto dos seus pais. O plano era saber o que estava acontecendo, antes de ir pro Reino Unido, finalmente, para se formar.

Na casa de Linonge, não havia mais risadas. A mãe dele te deu boas-vindas com uma formalidade protocolar que te chocou e entristeceu. Dois anos se passaram. Em seu quarto, Linonge mordeu o lábio quando você pediu a ele para te atualizar sobre o que estava acontecendo.

— Eles estupraram a mulher dele na frente dele, eles fritaram o bebê recém-nascido dele. Ele tentou impedi-los e eles o mataram. Você sabia que a gente nunca viu o corpo? O primo dele disse que pediram um resgate de trezentos mil para cada corpo, antes de os devolver. Além disso, a família teve que assinar um termo, declarando que o irmão, o Sr Ojong, era um dos Garotos.

Linonge não te olhou enquanto falava. Ele te disse coisas que você já sabia, para que não precisasse te contar aquilo que você não sabia. Coisas que você só tinha ouvido falar. Como sobre o dia em que os soldados foram na casa dele e pediram a sua mãe para se despir em frente aos filhos, sobre tocarem suas irmãs na frente dele, sobre como ele não pôde fazer nada para que sua família não fosse morta como a do Mr. N foi; como eles dormiram no chão de cimento todos os dias, se escondendo das balas. Por semanas, ele te evitou; por semanas, você se sentiu culpado por partir.

No dia em que a mãe dele ligou te chamando para ir vê-lo e conversar, você quase correu descalço à casa deles. 

— Ele quer se juntar aos Garotos — a mãe disse. 

Você não podia acreditar. No jardim, com a mãe de Linonge sentada no canto, parecendo pequena, você fez um longo discurso. Você disse a ele que entendia a bagunça em que o país estava, mas que ele não deveria se envolver desse jeito, que tinha um futuro brilhante, que não deveria envergonhar sua pobre família. Você disse que toda essa violência não valia a pena. Enquanto discursava, você sentia os olhos dele em você; carregavam aquilo que antes nunca tinham carregado por você: desdém. Você sentiu o que ele queria te falar. Era possível escutar seus olhos te chamando de moleque privilegiado que poderia reservar o próximo voo assim que surgisse um problema. Por onde você esteve durante dois anos? O que você sabia sobre alguma coisa? Não estava toda sua família a salvo? Incluindo o chefe de cozinha? Era o que você queria ouvir dele para que você pudesse se desculpar. Não era sua culpa sua família poder te dar segurança mas, mesmo assim, você se sentia culpado. Quando ele finalmente falou, as únicas palavras que saíram da sua boca, antes de sair enfurecido, foram:

— CK, vaza daqui!


É segunda-feira e todos aqui no bairro estão correndo, as pessoas estão em pânico, gritando que os garotos estão aqui. Eles estão a caminho para incendiar um carro do governo, haverá um tiroteio. Todo mundo está correndo para casa, crianças, adultos, buscando por um lugar seguro debaixo da cama. No caminho para casa, você vê Linonge com os garotos, marchando em direção ao caminhão do governo; ele está segurando o galão de gasolina. Seus olhos se encontram, e ele te chama:

— CK.

— Lino — você responde — Atrás uma mulher te pergunta, perplexa, se você o conhece.

— Sim — você diz — Linonge era o meu melhor amigo.


 

Howard Meh-Buh Maximus | Camarões |

Escritor e cientista camaronês. Compõe a redação da revista Bakwa, e é bolsista da Miles Morland 2021.

@howardbmaximus @howardbmaximus

Edições Anteriores

Assine nossa newsletter