Thiago Firmino: das gambiarras do empreendedorismo periférico à ressignificação social
Articulador comunitário e empreendedor transforma seu papel na comunidade mesmo diante das dificuldades territoriais em um mundo pandêmico
por Mariane Del Rei
| Brasil |
abril de 2021
“...No front sem bois, forte como nós
Lembra: A rua é nóis
Tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis
Tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é”1Música: Princípia (part. Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário) Composição: Emicida / Nave Álbum: AmarElo Ano: 2019
Uma frase de Raull Santiago, ativista social do Conjunto de Favelas do Alemão, sempre fez muito sentido para mim: “Conheça o mundo todo, mas nunca se esqueça do quintal de casa”. Para escrever sobre uma pessoa Cria da periferia, que representasse pela sua pluralidade o que a periferia é, essa frase bate muito forte em mim. E, procurando dentre milhares de rostos que representam a favela e a periferia de forma tão forte e tão ímpar, me veio Thiago Firmino. De fala espontânea e sorriso largo, o neto da Dona Cinira, cria do Morro Santa Marta, localizado em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, é o retrato do Brasil periférico. Nele enxergamos os milhares de meninos empobrecidos, pretos, favelados, que contrariam as estatísticas e revelam a potencialidade que a favela tem como território e norte influenciador sobre seus sujeitos.
O garoto do Santa Marta
Filho de um capixaba com uma carioca, Thiago Firmino, 40, começou a atuar aos 13 nos projetos sociais na favela, na contramão do destino estereotipado e já dado como certo pela sociedade para todo menino negro, morador de favela. Vindo de uma família envolvida com a dança de salão, Thiago cresceu no meio da música e teve contato com os mais diversos ritmos e estilos musicais. Começou aos 14 e aos 17 já dava aula de dança. Aos 21, fazendo som em festas de aniversários para amigos e nas escolas, acabou aprendendo a mixar, se transformando em DJ. Autodidata, Thiago aprendeu suas habilidades na “academia da vivência'', na rotina da favela, na escola da realidade de quem morou em um barraco de madeira até 2004.
Das memórias da infância, o que ele mais guarda com carinho nas lembranças é o que todo menino de periferia dos anos 80 fazia para se divertir: soltar pipa, jogar bola, jogar bola de gude, jogar taco, entre outras coisas. “Só era ruim quando tinham as ‘guerras’. Nós ficávamos dias sem poder sair para brincar, fora o medo que nos assolava. Por vezes, duravam semanas. Não era fácil, mas em resumo, tive uma infância muito feliz”, contou saudoso.
Empreendedor de si, da vida e dos corres
Em 2008, depois de tanto levar amigos que moravam em outras localidades para conhecer a favela Santa Marta, Thiago Firmino teve um “estalo” e startou a ideia de fundar o Favela Santa Marta Tour, e nisso, lá se vão 13 anos. Thiago se considera um empreendedor nato, com diversas expertises porque pensa que sempre foi empreendedor de si mesmo e quis mostrar com seu trabalho que, mesmo morando em uma favela, seus serviços não deixavam de ter qualidade e excelência. Para movimentar a situação socioeconômica do lugar, Thiago foi estabelecendo parcerias com os comerciantes locais para criar uma rede sustentável em um novo modelo de negócio para época, e assim, fomentar a economia criativa e circular na favela.
“Abrimos duas lojas de artesanato local e souvenirs, fechamos parcerias com restaurantes e bares, onde incluímos nos pacotes de passeios para turistas e escolas, os serviços gastronômicos, a fim de gerar mais renda para os moradores da comunidade. Dentre as atrações oferecidas durante os passeios, ensinamos ao visitante a fazer e a soltar a sua própria pipa e jogos de futebol produzidos com os moradores. Criamos um projeto de exibição e aula experimental de capoeira para quem nunca teve contato com a modalidade ter a oportunidade de experienciar a herança cultural e ancestral que nós temos. Além disso, abrimos o Lajão Cultural, um espaço criado para eventos com infraestrutura de qualidade e tecnologia de ponta, onde produzíamos festas e recebíamos artistas, intelectuais, influenciadores e celebridades nacionais e internacionais”.
Antes da pandemia, Thiago gerava cerca de 25 empregos diretos e indiretos. Além disso, também procurava realizar ações para utilizar o empreendimento como ferramenta de fomento de responsabilidade social para o lugar. O Favela Santa Marta Tour promovia passeios onde arrecadava materiais didáticos, kits escolares e materiais de construção para doar para creches e escolas locais, além de doar cestas básicas para as famílias mais necessitadas da região. Com o cenário atual, o Favela Santa Marta Tour está com suas atividades suspensas, mas Thiago acredita em retomar o empreendimento quando alguma normalidade permitir.
“Mais do que sustentar a mim e a minha família, o Favela Santa Marta Tour também nasceu de uma vontade muito intensa de gerar renda e trazer recursos para quem não tem. Também via como missão minha, quebrar o estigma negativo de que a favela é um lugar que só tem perigo. A favela é muito mais do que isso. Nós também temos arte, cultura, lazer, entretenimento. O sentimento de amor e pertencimento que eu tenho pelo Morro Santa Marta me fez enxergar muito além do que as pessoas viam. E eu queria mostrar isso para o Brasil e para o mundo”.
Do empreendimento bem sucedido ao caos pandêmico: a ressignificação dos saberes
Quando a pandemia mundial causada pelo novo coronavírus se instaurou, Thiago Firmino se viu perdido. Com o turismo congelado por conta do isolamento social, o empreendedor previu uma crise chegando, e com ela, um cenário de dor e sofrimento. “Nunca fomos treinados para esse tipo de coisa, e a gente já sofre o ano inteiro com falta de água, luz e saneamento básico. Quando vi que a doença tinha chegado por aqui, pensei: 'Vamos sofrer com isso também agora?’ Não mesmo. Me preocupei com as pessoas que trabalham comigo, com os comerciantes do Santa Marta e com os moradores em geral”, disse, recordando sua aflição naquele momento.
Na internet, Firmino se deparou com um vídeo de Wuhan, na China, onde mostravam chineses desinfectando as ruas da cidade. A princípio, Thiago achou que os equipamentos usados no vídeo eram algum aparelho com tecnologia de ponta. Mas logo descobriu que o artefato que aparecia no vídeo era igual aos usados em negócios agrícolas para pulverizar pesticidas nas plantações e que as roupas eram as mesmas utilizadas para pintar automóveis. Então percebeu que poderia fazer a mesma coisa na favela. Definiu junto a um infectologista e a um químico quais produtos químicos deveriam ser usados para sanitização e, em parceria com o irmão Tandy Firmino, Thiago reuniu dez voluntários e fundou o Santa Marta Contra o Covid-19, transformando o Morro Santa Marta na primeira favela sanitizada do mundo. Firmino levou a metodologia para outras comunidades como Morro da Babilônia, Morro do Chapéu Mangueira, Morro do Pavão-Pavãozinho, Morro da Providência, Morro do Vidigal, Ocupação Jesuítas, todas áreas periféricas do Rio de Janeiro; Jesus de Nazaré, em Vitória, no estado do Espírito Santo; entre outras.
“Toda a ação feita pelo Santa Marta Contra o Covid-19 é voluntária. Como nós não podemos trabalhar para financiar esta atividade, dependemos exclusivamente de doações para dar continuidade ao processo de sanitização da favela Santa Marta. Começamos sanitizando toda a favela duas vezes por semana. Atualmente, sanitizamos ruas, becos e vielas uma vez por semana. Começamos às 5h da manhã, todos os sábados. E ainda fazemos a distribuição de máscaras e álcool em gel para as pessoas. Em abril de 2021, completa um ano que desenvolvemos este trabalho e até hoje, nunca recebemos nenhuma ajuda do poder público. Mas nós não vamos parar. Enquanto houver doações para continuar a sanitização da favela, nós não vamos parar porque sabemos que salvamos vidas com o que fazemos”.
A frase de Raull, mencionada no início desse texto, continua reverberando. Que favela e periferia revelam a potencialidade que têm quanto território e norte influenciador sobre seus sujeitos. Que Thiago Firmino representa a favela, a periferia na sua pluralidade, de forma forte e ímpar, como todas as pessoas que a ela pertencem. São espelhos. Thiago é a favela. A favela é o Thiago. A periferia são Joãos, Marias e tantos outros personagens desse Brasil de múltiplas faces. Brasil que tem tantos “Brasis” dentro de si. E tudo que a periferia tem é ela mesma. A periferia é a personificação do “nós por nós”. Por isso que quem é cria, conhece o mundo inteiro, mas nunca se esquece do quintal de casa.
Mariane Del Rei | Brasil |
Jornalista, escritora, roteirista e assistente de direção. Coordenadora de comunicação na UNIperiferias.