O futebol na construção de novos caminhos para jovens haitianos
A potência da Academia Pérolas Negras e seu lugar no campo da formação de novos sujeitos
Marcelo Wilkes e Bernardo Girauta
| Brasil |
setembro de 2023
A organização da sociedade civil Viva Rio, desde 2007, administrava a casa Kay Nou — ou nossa/vossa casa, em créole — em um espaço na comunidade de Bel’Air, na capital Porto Príncipe. Lá aconteciam projetos ligados à sustentabilidade, à prática de capoeira, ao desenvolvimento artístico, entre outros. Em 2009, a organização iniciou a criação do clube de futebol Academia Pérolas Negras (APN). Mas só em 2011, após o terremoto de Porto Príncipe, que o projeto se desenvolveu. O terremoto atingiu 7.3 graus na escala Richter e estima-se que gerou um número de mortos entre 100 mil e 300 mil pessoas, deixando mais de um milhão de haitianos desabrigados. Muitos deles se dirigiram, então, à Kay Nou na perspectiva de lá encontrar acolhimento. A casa redirecionou os seus esforços para atender mais de duas mil famílias, que passaram a viver durante meses em Kay Nou. As atividades artísticas e esportivas, naquele quadro, foram repensadas como ferramentas que pudessem contribuir para a saúde mental dos refugiados.
Depois de estabelecido no Haiti, um segundo Centro de Treinamento dedicado ao esporte e à educação foi criado no Brasil em 2016, tendo como público beneficiado jovens em situação de vulnerabilidade e refugiados. Registrado na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FFERJ) em 2017, o APN foi Campeão carioca da Série C em seu primeiro ano, subindo então para a Série B2 no ano seguinte. Desde então, o clube vem ampliando sua performance e inserção no sistema futebolístico nacional. A criação de um sistema nacional de formação de atletas, por exemplo, hoje não atende apenas haitianos. Outras pessoas também participam, em especial refugiadas, e o projeto vem evoluindo para se tornar uma rede internacional de formação integrada, com um polo central em Resende e Itatiaia no Vale do Paraíba, Estado do Rio de Janeiro.
O trabalho formativo do Pérolas Negras
Mais do que um clube de futebol, o Pérolas Negras é um centro formativo de pessoas que funciona como uma rede de acolhimento, educativa e de convivência, que permite às pessoas que passam pelo clube, ainda que dispersas por cidades e países, possam manter um vínculo regular e cotidiano.
Os jovens haitianos, sobretudo de comunidades como Bel Air, Cité Soleil, Canaan entre outras, enfrentam condição de empobrecimento em territórios que constam entre os grupamentos urbanos socioeconomicamente mais vulneráveis do planeta. São locais de economia informal, onde trabalho regrado por leis é raridade. No Haiti, como no Brasil, os jovens formam o segmento mais afetado pelo desemprego e pela informalidade no mundo do trabalho.
A Academia Pérolas Negras atua nesse contexto. Ela trabalha nas comunidades com foco na adolescência e juventude. No futebol, busca jovens com talento e habilidades que permitam suportar a disciplina e as exigências de uma formação de excelência, que abrem oportunidades de trabalho profissional. A APN é, portanto, um espaço de formação e uma ponte para o mercado do futebol. Mesmo que nem todos os membros da APN se tornem atletas bem-sucedidos e de alto rendimento, a formação obtida abre para eles outras possibilidades. Quase todos os membros e ex-membros têm trabalho regular e, mesmo que ainda muito jovens, já conseguem ajudar suas famílias.
Um número expressivo de Haitianos da APN conseguiu migrar e encontrar trabalho em outros países: 18% dos haitianos que passaram pela organização, no Haiti e/ou Brasil, até 2019 conseguiram migrar e trabalhar no exterior, quase sempre no campo futebolístico. O rol de países é importante não apenas pelo número, mas também pela sua expressividade no mundo do futebol profissional.
A disciplina da formação esportiva, os valores que norteiam o esporte de alto rendimento, as condições de convivência no Pérolas Negras, a ênfase na educação para vida, a qualidade técnica dos treinadores, tudo isso abre um campo de oportunidades excepcional para os atletas. O talento somado à disciplina e aos valores do esporte criam um grande círculo de jovens promissores, que fazem jus ao nome “Pérolas Negras”.
A educação é parte fundamental da filosofia de trabalho da Academia Pérolas Negras. Manifesta-se em programas de reforço e aceleração escolar, aprendizado de línguas, novas tecnologias, resolução pacífica de problemas e conflitos, além de outras atividades. Manifesta-se ainda no estímulo constante à participação no ensino público regular e à continuação em níveis superiores de aprendizagem. Parcerias com universidades e centros de formação técnica abrem oportunidades para os formandos da organização. Nada disso é fácil, pois é intenso o tempo de treinamentos e competições.
A experiência vivenciada pela Academia Pérolas Negras revelam que o investimento no esporte, nos termos realizados pela organização, possibilita uma rápida progressão para o público com o qual lida. Antes mesmo de completarem 20 anos de idade, os jovens já estão em condição de ajudar suas famílias. Este é, aliás, um objetivo central na narrativa dos jovens desde quando ingressam na Academia. As remessas mensais, ainda que modestas, começam já no primeiro mês de atividades remuneradas por uma bolsa ou um emprego. São modestas, porém relevantes em contexto de fragilidade econômica expressiva.
À diferença da maioria de seus conterrâneos, os jovens da APN desfrutam de uma bolsa ou um trabalho regular. Eles contam com moradia, alimentação balanceada, cuidados de saúde e programa de desenvolvimento físico, segundo o perfil e as funções individuais. Também contam com treinamentos táticos e estratégicos, educação ampliada, inclusive com o aprendizado de línguas e novas tecnologias da comunicação; competições que os levam a movimentarem-se para além de suas comunidades, cidades e países, exposição a desafios semanais, experiência profunda em como lidar como vitórias, derrotas e empates, o destaque, o aplauso e a crítica pública.
A formação dos Pérolas Negras é uma aventura que transforma radicalmente a vida desses meninos e meninas. E mais: ao lado da aventura vem a consciência de que é preciso preparar-se para um outro momento da vida, para além da juventude. Como se sabe, a carreira do atleta dificilmente alcança os 40 anos de idade. De todas as informações aqui reunidas, faz gosto saber que 92% dos nossos formandos decidiram e encontraram meios de continuar a estudar.
Os Pérolas Negras tornam-se referência de vida em suas comunidades de origem, que têm acesso aos Pérolas pelas redes sociais. Além dos números, movimentam imagens e histórias que são contadas mundo afora.
APN no Fórum Mundial de Refugiados em Genebra
Em dezembro de 2019, integrantes da Academia Pérolas Negras embarcaram para Genebra para participar do Primeiro Fórum Global sobre Refugiados, organizado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).
Cinco atletas representaram a APN no fórum: Ahmad e Hafith, sírios, e Badio, Basquin e Tijô, haitianos. A comitiva, além dos jogadores, foi composta pelo presidente da APN, Rubem Cesar Fernandes, e do diretor de criação André D’Ávila.
O fórum discutiu a questão dos refugiados e as migrações motivadas por crises, inclusive crises econômicas. Foi uma convocação inédita dos Estados Membros da ONU para debater essa questão. Um dos focos do evento foi o entendimento do esporte como instrumento de integração da população refugiada. Os Pérolas Negras integraram um evento de abertura do Fórum.
A APN se tornou uma referência mundial importante por ser a primeira com atletas refugiados com permissão de pertencer a uma federação e atuar como profissionais. No Fórum, os Pérolas Negras reiteram e foram exemplo de como a prática esportiva é um instrumento poderoso de inclusão. APN ficou uma semana em Genebra. Após a aclimatação ao inverno europeu, os atletas participaram das atividades previstas. Gravaram reportagem para Rede Globo (Brasil) e jogaram o campeonato de futebol, no dia 16 de dezembro, com diversos beneficiários de projetos internacionais que atuam com o esporte com refugiados. Seis times foram formados, com nove integrantes cada, sem divisão de gênero ou nacionalidade. A competição aconteceu em apenas um dia, o que não limitou a potência daquilo que foi esse evento. Uma jogadora afegã comemorou o gol de um haitiano sobre o time com sírios e palestinos. Ficamos com essa recordação deste que foi um encontro de celebração da inclusão e do respeito a pessoas migrantes e refugiadas no mundo.
Marcelo Wilkes | BRASIL |
Músico, jornalista e gestor de projetos.
Bernardo Girauta | BRASIL |
Tradutor e Revisor.