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periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023

Uma andorinha só não faz verão, mas duas sim…

Ensaio poético-visual aborda a vida cotidiana de migrantes no Rio de Janeiro

Pablo Vergara

| Brasil |

agosto de 2023

traduzido por Mariana Costa

Desde tempos remotos, seres humanos, assim como as andorinhas, percorrem o mundo em busca de estações, sonhos, trabalho e amores. Às vezes migramos de forma voluntária, com grandes mochilas de utopias nas costas, com vontade de conhecer, aprender e nos aventurarmos em uma nova cultura, uma nova forma de idiossincrasia e de nos aprofundarmos nos mistérios de um novo povo; isso é o que aconteceu comigo. Outras vezes, lamentavelmente, nos vemos forçados a migrar devido às dificuldades materiais da realidade e complexidade da sociedade moderna, resultado do modo de desenvolvimento ultraneoliberal da humanidade atual, em que a migração se tornou uma possibilidade para a superação de uma crise como essa. Mas, se não fosse suficiente explorar os migrantes, agora também pretendem bani-los completamente, fragmentando assim suas vidas, famílias e sujeitos. 

Embora o Rio de Janeiro possa ser considerado uma cidade cosmopolita, construída pela mão de obra de migrantes (tanto de outras regiões do Brasil quanto de outros países), é uma cidade contraditória onde o tema da migração ganhou destaque no mundo após o brutal assassinato de Moïse Kabagambe no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. Na "cidade maravilhosa" o  dia a dia das comunidades de migrantes veio à tona.

A comunidade migrante no Rio é diversa, principalmente a oriunda do Sul-Global. Thezis (31 anos), migrante congolês, reside em Nilópolis, Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro. Ele é praticante da cultura Sapeurs. Mili, é uma mulher venezuelana muito alegre que conseguiu um espaço na luta organizada por uma casa com os movimentos sociais que defendem o direito à moradia – Mili é uma artesã consagrada nas ruas do Catete. 

Essas duas pessoas migrantes são exemplos de luta e de como é possível reverter situações adversas e se estabelecer como sujeito no Brasil a partir das redes de apoio e solidariedade, com destaque à importância das comunidades e organizações de migrantes que constroem laços de cooperação — muitas vezes injeções de ânimo para quem deixou para trás profundas relações afetivas familiares, de amigos e com um território.

Imigrantes congoleses indignados retiram a placa “Tropicália” durante a manifestação na Barra da Tijuca, Foto:  Pablo Vergara | Imagens do Povo 2022
Thezis Luyindula Lutete (31 anos), imigrante congolês junto de sua filha Helena, Nilópolis, Rio de Janeiro, Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023
Mili,"pequenos olhos d’água", Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023

Abre brecha, companheira!

No horizonte de tristes naufrágios no Mediterrâneo, de navios inundados por um mar de gente, de muros monumentais em inóspitas fronteiras desérticas, ou de velhos e enferrujados trens que transportam migrantes centro-americanos para cruzar a fronteira rumo aos Estados Unidos, existem pontos fora da curva: aqueles migrantes de "pequenos olhos d'água", como dizia o poeta guerrilheiro salvadorenho Roque Dalton, "da semente chegam ao fruto". Esse é o caso de Sobeida Milagros de Ortiz, conhecida como Mili, uma migrante venezuelana de 60 anos, mãe de 5 filhos e avó de 15 netos. Ela mora na Ocupação João Almirante Cândido, organizada pela Frente Internacionalista dos Sem-Teto, localizada na rua do Rosário, no Centro do Rio de Janeiro.

Segundo o governo brasileiro, em cinco anos, mais de 700 mil migrantes venezuelanos entraram no país. Assim como Mili há uma série de exemplos, migrantes que tiveram que deixar seu território para buscar uma nova vida. Essa história é de esperança, coletividade e muito esforço no dia-a-dia, trazida até nós por uma mãe-avó que dá tudo pelos filhos e que sonha um dia voltar, talvez, à terra de Bolívar.

Paulina, neta de Mili tocando o violoncelo na ocupação João Almirante Cândido. Ela faz parte do projeto Ação Social pela Música (ASM) no complexo de favelas do Alemão Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023

"Como o potro no escudo e o tricolor no céu"

Mili é uma mulher extremamente alegre e de uma energia mobilizadora. É uma dessas pessoas que roubam da gente um sorriso, com uma conversa sempre boa. Ela tem muitas histórias e uma rica trajetória de vida. Aos 60 anos, Mili tem juventude em seu espírito. Sempre calçando tênis All Star, é uma artesã politizada, simpática e amante da música, o que faz dela uma pessoa muito especial. Pouco a pouco, tem conseguido reunir sua família no lar onde vive atualmente; como ela mesma diz, “ eu reuni toda a família que criei”.

A família de Mili é uma família grande, que nos recebe ao som do cuatro venezuelano — instrumento de cordas do folclore musical —, semelhante ao cavaquinho, muito popular na Venezuela. Os pequenos netos procuram os maracás e a clave e em questão de instantes monta-se algo parecido com um pequeno grupo folclórico venezuelano-brasileiro. Paulina faz uma apresentação de violoncelo. Eu fui recebido assim na ocupação, ao mesmo tempo que me ofereciam café com cachaça. Bebi ingenuamente, pensando que era Cocuy — espécie de aguardente tradicional da Venezuela. Acontece que o Cocuy carioca tinha sido "batizado" com 51.

"Como el cocuyo en el aire, 
como la luna en el médano, 
como el potro en el Escudo y el tricolor en el cielo. 
Por aquí pasó, compadre, hacia aquellos montes lejos."

"Como o besouro no ar,
como a lua na duna,
como o potro no Escudo e o tricolor no céu. 
Por aqui passou, compadre, rumo àquelas montanhas distantes."1(Trecho de “Por aquí pasó”, poema dedicado a Simón Bolívar por Alberto Arvelo Torrealba [Venezuela, 1905 – 1971]) 

Sempre tive muito carinho pelo povo venezuelano: tão legais, simpáticos, divertidos e carinhosos. Carregam um sotaque muito especial, parecido com o dos cubanos; têm algo das Antilhas, do Caribe; uma mistura com a Cordilheira, onde os Andes se escondem — aquela cordilheira que nos une e nos separa ao mesmo tempo, ali em Táchira, em Mérida. Embora faltassem as arepas, o som do cuatro e suas cordas fazia com que eu me sentisse em algum conjunto habitacional de Caracas — quem sabe, na 23 de Janeiro, bairro em Caracas que é uma das maiores favelas da América Latina. Mili faz seu artesanato e vende na rua do Catete. Ela conta que entrou no Brasil por Pacaraima, Rondônia.

Os primeiros meses foram extremamente difíceis por conta do idioma. “Nos primeiros dias me deprimi e quis voltar; o que eu queria era vender meu artesanato, ainda que o artesanato se venda sozinho se alguma pessoa gosta”, ela contou sobre as primeiras dificuldades no Brasil. “Estive indo e voltando umas quatro vezes, de 2014 a 2017”. Depois de uma longa jornada por vários estados brasileiros, chegou ao Rio de Janeiro. “Meu ex-companheiro me ajudou com uma passagem para o Rio de Janeiro, e saí de Boa Vista direto para o Rio de avião.”

Ela veio primeiro sozinha, logo trouxe sua filha Gizele, uma linda jovem com problemas auditivos. “A situação política no meu país está difícil, as pessoas precisam saber que existe um embargo contra o meu país. Eu não sou perseguida política, nem refugiada. Conto minha verdade, te falo com sinceridade.” Mili conta que sempre foi viajante: “Com meu cuatro venezuelano, minha música e meu artesanato, sempre viajei. Agora, sim, fiquei para poder ajudar minha família, a que construí. Minha família é grande, minha avó era das Ilhas Canárias e meu avô afrodescendente”, ela  relata sobre sua grande família.

 

Que lindas são as obreiras, como as estrelas… 

Mili viveu em diversos lugares do Rio de Janeiro: algumas favelas da Zona Sul foram seu refúgio. Ela dividia o aluguel com outros companheiros migrantes e assim foi transitando, como muitos. Passou por favelas conhecidas por abrigar grandes comunidades de migrantes latinos, como o “Chapéu Mangueira” e a “Babilônia”, favelas próximas à orla da zona sul, o que facilita o dia a dia de quem comercializa artesanato. 

Um dia chegou trabalhando nas ruas do Catete, onde cruzou com o destino de Andre de Paula, líder da FIST (Frente Internacionalista dos Sem-Teto). Esse encontro significou uma mudança estrutural na vida de Mili, que a partir daí encontrou espaço na luta pela moradia. Andre de Paula é conhecido por sua luta pela moradia no Rio de Janeiro, é coordenador e advogado da Frente Internacionalista dos Sem-teto. E foi pelas coisas da vida que Mili conheceu Andre de Paula. Isso significou um antes — e um depois. 

A partir daí, uma amizade que foi se firmando levou Mili a ocupar um espaço na ocupação João Almirante Cândido, que ela vem construindo há dois anos junto com sua família e companheiros do FIST. A ocupação foi um processo que ela construiu junto com as filhas: "Nos transformamos em pedreiras”, relata sobre o apartamento recuperado no centro do Rio. “Não vou te esconder nada, no início sofri muito, me trataram mal verbalmente. Conheci a maldade do brasileiro aqui”, acrescenta sobre as dificuldades que teve para consolidar um espaço. “O povo brasileiro é muito solidário, mas tem gente que se queixa do racismo e da xenofobia e são eles que se vendem como boas pessoas, mas não são”, continua. Essa é a história de Mili, migrante venezuelana que soube se mobilizar em amplas redes de apoio a organizações que articulam os migrantes.

Thezis Luyindula Lutete (31 anos) Sapeur e eletricista, morador de Nilópolis, Rio de Janeiro. Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023

O sapeur de Nilópolis

Era um domingo ensolarado, daqueles em que o calor da Baixada Fluminense derrete o asfalto, e parece aumentar ainda mais a temperatura quando se vê os vidros dos fornos onde giram os frangos assados. Estava no coração de Nilópolis, famoso bairro da periferia do Rio de Janeiro, onde está localizada a escola de samba Beija-Flor. Nesse bairro mora um Sapeur do Congo, Thezis Luyindula Lutete, de 31 anos. Quando cheguei na casa de Thezis, tive que esperar por ele na rua. Ele vinha chegando com a esposa, Camila Pereira Firmino de Sá, brasileira, e a filha Helena, carregado de sacolas; o curioso é que um longo sorriso se refletia à distância. Ele tem esse sorriso que ilumina tudo ao seu redor e, por casualidades da vida, trabalha como técnico eletricista, iluminando literalmente toda a cidade. A uns 200 metros, já o reconheci e gritei de longe: “Que sorriso você tem!”, e ele começou a rir. Parecia emocionado e feliz de saber que um fotógrafo havia vindo para retratá-lo.

Nossa relação tinha começado vários meses antes, ele passou a ser “Mon ami Thezis” e “Pablo mon ami”, por WhatsApp. Já estávamos em contato e foi exatamente depois de um curso de fotografia no Imagens do Povo que conheci a cultura Sapeur. Me Interessei pelo assunto e comecei a procurar contatos, o que me levou à família de Moïse Kabagambe, que me forneceu o contato de Thezis. Disseram-me que ele praticava a cultura Sapeur, o que me deixou curioso e intrigado para saber o que significava. "Cheguei ao Brasil no dia 16 de outubro de 2012; foi meu pai quem chegou primeiro e me convidou para conhecer a família que ele já tinha formado. Ele está no Brasil há 27 anos, e eu há 11. Quando meu pai saiu do Congo, eu tinha um ano, e nunca o conheci pessoalmente.

Com o tempo, mantivemos contato por meio de cartas", conta Thezis. Ele relata que conheceu o Brasil pela televisão: “Vi ‘Cidade de Deus’ e comecei a formar uma imagem sobre o Brasil. Por telefone não tinha noção, mas pela televisão comecei a imaginar como era o Brasil. Nunca conheci fisicamente meu pai, mas ele organizou os documentos e comprou uma passagem para que eu viesse do Congo para o Brasil com 21 ou 22 anos.” Thezis nos diz que inicialmente não queria vir para ficar – tinha um projeto em curso como modelo no Congo e pensava morar na Europa e viver da cultura Sapeur, mas ao chegar ao Brasil foi se estabelecendo pouco a pouco.

“Meu pai me deu um pequeno dicionário Larousse francês-português; fui estudando e aprendendo”, assim conta. Thezis começou a trabalhar como ajudante de obra em contratos temporários e foi resolvendo sua documentação. Conta que teve muitas dificuldades para receber pelo seu trabalho, já que nem sempre pagavam o combinado ou demoravam muito para pagar. Foi assim que conheceu pessoas de uma empresa de eletricidade.

Thezis já tinha uma formação completa como técnico eletricista no Congo, e um corte elétrico em uma obra mudaria seu destino. “Um belo dia, preparei meu currículo e me apresentei na porta da empresa. Gostaram de mim quando me viram e logo me abraçaram. Chegaram dois supervisores, agradeci e entreguei meu currículo. Alguns dias depois, recebi uma ligação para começar a trabalhar, ainda como ajudante.” Thezis conta: “Comecei como ajudante e pouco a pouco fui legalizando meus documentos como eletricista. Me qualifiquei como profissional e me destaquei.”

As origens de Thezis na cultura Sapeur vem desde sua juventude no Congo. Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023
Thezis está se preparando como Sapeur. Foto: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023
Thezis as a sapeur. Photo: Pablo Vergara | Imagens do Povo 2023

Desde muito pequeno, Thezis conta que faz parte da cultura sapeur, que seu pai era um Sapeur no Congo e que ele sempre gostou de se vestir bem. Desde muito cedo, aprendeu sobre a SAP: “Hoje sou muito reconhecido, me respeitam muito pela qualidade de elegância que apresento ao público”. “SAP” é a abreviação de La Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes", uma espécie de associação de pessoas elegantes, uma filosofia de vida que surgiu no Congo após a libertação da República Democrática do Congo. “Quando nos vestimos de forma elegante, demonstramos que somos elegantes e no mesmo nível”, descreve Thezis. “Quando você passa despercebido, você está à beira da morte”, acrescenta nosso Sapeur da Baixada Fluminense.

 

Solidariedade e comunidades

A solidariedade e a cooperação são extremamente necessárias para os migrantes. Muitas vezes, elas são o suporte emocional que nos ajuda a criar raízes no novo país, a poder comer e a ouvir nossa língua nativa, o que nos conecta com nossas comunidades e gera uma sensação de permanência no exterior.

Um migrante, para poder se realizar, precisa muito territorializar práticas que carrega em sua memória afetiva, ou seja, poder dispor de elementos que expandem sua subjetividade e plenitude, bem como laços comunitários que se tornam muito importantes para o desenvolvimento de um migrante, seja esporte, cultura, musicalidade, gastronomia ou práticas que nos conectem com nosso passado-presente, pois somos o que também já fomos. Poder construir esse movimento dialético é essencial na construção do cotidiano de um migrante.


 

Pablo Vergara | CHILE |

Fotógrafo documentarista, Pablo concentra seu trabalho na fotografia social, conflitos socio ambientais no eixo dos direitos humanos e movimentos sociais. Trabalha com os temas: migração, conflitos agrários, direito à moradia, agroecologia, comunidades remanescentes e documenta o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Atualmente produz e dirige o Documentário de "Açu dos desgostos" sobre os Atingidos do Porto do Açu, Rio de Janeiro. É formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade do Chile (2010). Tem diploma de fotojornalismo e projetos fotodocumentais pela Universidade Autonoma do México (2023) é atualmente faz parte do Programa de Mentoria para Latinoamerica da VII Academy de fotografia internacional, Bósnia, Sarajevo (2024). É morador na Ocupação Urbana Vito Giannotti, Rio de Janeiro.

pablo.vergara.c@gmail.com

@pablo_vergara_foto

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