Entrevistas

periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

foto: Abhishek Basu

"Além da semântica dos direitos humanos"

Entrevista com Pia Oberoi, Conselheira Sênior em Migração e Direitos Humanos para a Região Ásia-Pacífico do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos

por Daniel Martins e Felipe Moulin

setembro de 2023

Nos últimos anos, a Ásia tem experienciado um crescimento migratório exponencial em um vasto território, ampliando as complexidades culturais, étnicas, políticas, religiosas e econômicas. Como os fluxos migratórios dentro dos limites asiáticos estão redesenhando nossa compreensão e abordagem sobre migração?

Pia Oberoi: Quando olhamos para Ásia-Pacífico, às vezes, é muito difícil estabelecer fronteiras de onde ela começa e termina. Pelo menos 50% da população mundial vive nessa região. Em certa medida, não surpreende que essa população componha a maior parcela de migrantes. A maioria dos asiáticos permanece na região. E isto é bem típico, uma vez que sabemos que a maioria das migrações ocorrem entre lugares onde as pessoas têm recursos para viajar. Asiáticos viajam para regiões e países vizinhos, ou mais distantes, a depender de seus recursos. 

Pelo menos 50% da população mundial vive na Ásia-Pacífico. Em certa medida, não surpreende que essa população componha a maior parcela de migrantes

É interessante observar também o número de asiáticos que estão se mudando para continentes diferentes. A Europa sempre fez parte desta rota, e houve um momento, precisamente nos últimos três anos, em que bengaleses constituíam a maior parte da população que fazia a travessia pelo Mediterrâneo Central — da Líbia para Itália —, com alguns deles viajando para lugares ainda mais distantes. Isso demonstra a habilidade das pessoas em encontrar recursos, porque para viajar de Bangladesh para a Líbia, China ou para o Tampão de Darién demanda recursos. 

Li um relatório sobre os rohingyas que apresenta o número de nacionalidades asiáticas representadas no movimento migratório. É claro que não são a maioria do movimento no norte da Ásia Central, mas os rohingyas estão presentes ali, e também em outras rotas precárias, como podemos imaginar. 

Parte disso, obviamente, são rotas longas e bem estabelecidas. Podemos ainda falar em intermediários considerando o contexto de recrutamento de intermediários, mas contrabandistas e atravessadores estão criando rotas para as pessoas se deslocarem. Isso representa um número substancial de movimentos migratórios observados na Ásia, mesmo nos limites da região. É complexo, mas também um microcosmo do que se vê em outras regiões. 

Se pensarmos sobre as razões que levam as pessoas a migrar em todas as partes do mundo, a maioria está em busca de trabalho, porque, é claro, é assim que se consegue sobreviver. A migração laboral faz parte de todos os movimentos, mesmo que estejamos falando a respeito de movimentos de refugiados, ou mesmo migrantes clandestinos, ou qualquer outra classificação. A busca por emprego, ou trabalhos dignos, é certamente massiva. A maior parte do movimento da Ásia, e dentro da Ásia, é devido à migração laboral. 

Infelizmente, para nós pesquisadores, o quadro que encontro na Ásia, às vezes, é uma preocupação menor com as vulnerabilidades que vão além da pessoa como mão de obra. No começo deste ano, nós publicamos um relatório sobre os programas de migração de trabalho temporário dentro e fora dos limites da região da Ásia-Pacífico intitulado “We wanted workers but human beings came” (Nós queríamos trabalhadores, mas vieram seres humanos).

Sinto que na Ásia a migração é vista apenas a partir da mão de obra, e que teríamos que compreender a vida das pessoas migrantes apenas dentro dos limites do ambiente de trabalho.

Sinto que na Ásia a migração é vista apenas a partir da mão de obra, e que teríamos que compreender a vida das pessoas migrantes apenas dentro dos limites do ambiente de trabalho

Se não tentarmos compreender as diferentes formas em que pessoas se enquadram em situação de vulnerabilidade, ou seja, que elas têm vida e aspirações, e necessidade de uma vida em família, o trabalho se torna um tanto frustrante.

Outra característica que marca a composição da Ásia são, por um lado, países muito ricos, como Japão ou Coreia e, por outro, países muito empobrecidos, como Nepal ou Laos, além de países de renda média, como Índia, Malásia e Tailândia. Em certo sentido, há aí uma espécie de microcosmo do mundo, e é de onde vemos surgir muita complexidade. Há ainda países que produzem refugiados, como por exemplo Mianmar, que, atualmente, infelizmente há cada vez mais refugiados, assim como o Afeganistão. NaÁsia temos todos os tipos de movimentos.

 

Qual o papel da Tailândia no contexto da migração asiática?

A Tailândia é um caso interessante porque é um país de origem — não apenas para a região, muitos trabalhadores tailandeses vão para Coréia e recentemente vimos um número expressivo de imigrantes tailandeses na Suécia —, mas é também um país de destino, de modo que temos trabalhadores migrantes de Laos, Mianmar e do sul da Ásia, e há ainda os refugiados de Rohingya. Que o país tenha se tornado um país de trânsito, esse é um fenômeno muito interessante.

Acabamos de publicar o relatório “Online scam operations and trafficking into forced criminality in Southeast Asia” (Operações de golpes online e tráfico forçado para criminalidade no Sudeste Asiático). Muitos cassinos estão localizados em áreas de fronteiras afetadas por conflitos e zonas de trânsito, especialmente zonas econômicas. Tiveram que fechar os cassinos por causa das restrições da Covid, e isso se estendeu por um longo período na Ásia, até a primavera de 2022. Tivemos, então, uma longa paralisação. Pessoas eram traficadas para essas operações, e forçadas a trabalhar como golpistas, persuadindo outros indivíduos a enviar dinheiro. Nos últimos dois anos, centenas de milhares de pessoas foram traficadas no Mianmar, Laos, Camboja e, cada vez mais, nas Filipinas. 

Nos últimos dois anos, centenas de milhares de pessoas foram traficadas no Mianmar, Laos, Camboja e, cada vez mais, nas Filipinas

Li um caso de uma pessoa que veio do Brasil, foi capturada e resgatada de um desses centros de golpes. Enfrentam situações terríveis nesses lugares. As pessoas são mantidas em cativeiro e forçadas a atingir metas de quanto dinheiro devem extorquir, além de serem torturadas, privadas de comida e não poderem sair. Pessoas morreram tentando escapar, ou por não receberem qualquer tipo de assistência médica. Se pensarmos em como lidar com esse tipo de situação na região, a maioria das pessoas que são liberadas desses centros é tratada ou como criminoso, porque cometeram crimes, ou como imigrante ilegal, porque não têm documentos, visto, ou permissão de trabalho. Muitas pessoas são detidas, porque não conseguem apoio de seu país de origem ou de embaixada. 

É intrigante que a Tailândia tenha se tornado esse país de trânsito. E há muitos desses centros na fronteira Tailândia-Mianmar. Pessoas estão sendo re-traficadas entre Mianmar e Camboja pela Tailândia. É uma situação terrível que provavelmente vai piorar. 

 

A Tailândia tem uma relação específica com o mar e a indústria da pesca. Sabemos que os fluxos migratórios têm uma relação legal e ilegal com esse mercado — especialmente com migrantes que chegam do Laos e do Camboja. Qual é a relação entre o mar, a indústria pesqueira e a migração?

Existem duas formas em que a Tailândia participa desses movimentos. Primeiro, através da indústria pesqueira que é conhecida há muito tempo por ter difícílimas condições de trabalho. Às vezes, essas práticas chegam a um alto nível de exploração, quando pessoas se tornam literalmente prisioneiras. A maioria delas foi encontrada em barcos, trabalhando na pesca em alto-mar. Há uma série de preocupações, principalmente com relação ao tráfico para exploração de mão de obra. 

Mas é claro que as pessoas não estão vindo para serem escravizadas em barcos. Elas chegam com a expectativa de ter um emprego específico, com condições dignas de trabalho. Contudo, há um descompasso entre as condições apresentadas em seus contratos e as condições reais. Além disso, às vezes, os trabalhadores são semiletrados e não têm nem condições de ler os documentos e contratos assinados.

A outra maneira envolve os desafios impostos pelo mar no movimento dos refugiados rohingyas de Mianmar. Esse é um problema regional que afeta não apenas a Tailândia, mas também a Malásia e a Indonésia, cujas costas litorâneas não têm proteção marítima adequada. No ano passado, tivemos o ano com mais mortes marítimas para pessoas que viajavam de barco desde o ano de 2016. Ocorreram mais de dois mil desses movimentos, com uma margem de 300 a 400 mortes e muitas outras pessoas desaparecidas no mar. Esse é um movimento muito perigoso. Milhares de pessoas estão perdendo a vida. 

E as respostas estruturantes são muito tímidas por parte dos governos para proteger os direitos das pessoas na Ásia. Já mencionamos que esta é uma região muito grande e que engloba muitos países. Se considerarmos a proteção das pessoas no mar, não existe uma boa resposta de busca ou resgate. Não há uma boa resposta de desembarque. Os barcos não têm permissão para atracar. Pessoas morrem no mar porque são mandadas de volta. 

 

Apesar da diferença de contextos, experiências e motivações, existe uma ideia muito bem estruturada de que tudo é ilegal, e os países de destino são vítimas. O que impede uma abordagem baseada em direitos humanos para as pessoas em movimento?

Partindo da Ásia e indo um pouco mais adiante: existe um problema específico na Ásia. É uma região do mundo em que, de modo geral, se observa um menor índice de ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos. Percebemos que não há uma compreensão sólida, ou aceitação, dos direitos humanos como um princípio organizador da sociedade. 

Há muitos desafios e muita resistência, bem como a ideia de que os valores asiáticos divergem dos ideais dos direitos humanos, do tipo: “Não precisamos desse negócio ocidental chamado direitos humanos”. Isso significa que, com algumas exceções, se observarmos de forma geral, não há uma estrutura legal de proteção aos refugiados. A Tailândia e a Índia, por exemplo, não possuem sistema de asilo. 

É uma abordagem muito transacional da migração. “Vamos te receber quando precisarmos. Você virá para trabalhar em casas, fábricas, pesca, e assim por diante, mas, quando não precisarmos mais de você, você tem que partir. Você não tem direitos enquanto estiver aqui, portanto, não tem necessidade de estar em contato com sua família ou filhos, não precisa de assistência médica, porque você está aqui apenas para trabalhar. Se você conseguir chegar aqui como refugiado, você está ilegal, então será detido.” 

Esse é um elemento transacional, uma representação instrumental de pessoas em movimento que tem ganhado cada vez mais prevalência. Se olharmos para os corredores da Ásia e para os países do Golfo, a ideia é exatamente a mesma: a pessoa migrante está ali apenas enquanto precisarem dela. Depois, ela precisa ir embora, e pode estar ilegal em qualquer outro lugar.

Mas vai além disso. Em países europeus e nos Estados Unidos compartilham da ideia de que a migração laboral precisa ser o mais temporária possível. Cidadania não é algo disponível como um direito para pessoas que já vivem nesses países por mais de 15 ou mesmo 20 anos. Os laços com o país se tornam extremamente frágeis, mesmo que você tenha vivido ali por um longo tempo.

É claro que todo mundo tem direitos humanos. Assim que você pisa no país, você tem direitos porque você está naquele país, seja legal ou ilegalmente. Mas a situação tem se invertido. Países europeus, como o Reino Unido por exemplo, estão retirando a cidadania de pessoas sob o argumento de que são uma ameaça para a sociedade.

A ideia é de que “se você está em situação irregular, nós assumimos que de forma alguma você seja um ser humano”. Isso é algo que aperfeiçoaram na Ásia porque trata-se de criminalização. Uma vez que você criminaliza, você polariza juridicamente, de modo que o migrante não é só ilegal perante a lei, mas é desumanizado aos olhos da população e do governo. Isso é muito perigoso. 

É algo que aperfeiçoaram na Ásia porque trata-se de criminalização. Uma vez que você criminaliza, você polariza juridicamente, de modo que o migrante não é só ilegal perante a lei, mas é desumanizado aos olhos da população e do governo. Isso é muito perigoso

Em um mundo muito mais conectado de várias maneiras, seja do ponto de vista tecnológico ou financeiro, é impressionante a forma como existem tantos obstáculos nos movimentos físicos reais das pessoas. E temo que isso vá piorar cada vez mais. Mesmo entre acadêmicos, todos os dias ouvimos falar de pessoas que tentam viajar entre uma conferência e outra e, por virem de uma determinada parte do mundo, não conseguem obter um visto.

Há também restrições com relação aos voos. Se você tentar viajar numa rota Sul-Sul, é muito mais difícil do que se você apenas quiser ir da Europa para outra parte do mundo. Essa é uma preocupação e algo que deve ser questionado não apenas por ativistas, mas também por pesquisadores e acadêmicos.

 

Na Ásia, há disparidades em relação à garantia de direitos aos migrantes?

Alguns países contam com sistemas melhores que outros. A Tailândia é um exemplo bastante interessante. Quando surgiram preocupações sobre o tráfico de pessoas de Mianmar, foram implementadas respostas estruturais. O Japão e a República da Coreia são signatários da Convenção de Refugiados de 1951. Eles estabeleceram um sistema de asilo que, em teoria, fornece todos os direitos associados e é o que chamamos de um sistema desenvolvido de asilo. No entanto, a taxa de reconhecimento é muito baixa e pouquíssimas pessoas recebem asilo.

Países como a Austrália e a Nova Zelândia, que são, evidentemente, parte da Ásia-Pacífico, possuem tanto o sistema de migração como programas de migração laboral. Não podemos dizer que seja uma situação terrível. O desafio está, quando nos voltamos para os países do leste asiático, no fato de que a ideia de “quem merece direitos” é muito arraigada.

Na Ásia, essa não é uma discussão atípica e faz parte de como sistemas de governança de asilo e migração foram organizados em praticamente todo o mundo.

O que estamos tentando fazer no ACNUDH (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos) não se trata de dizer “acabem com a proteção aos refugiados ou com a proteção às pessoas traficadas”, mas, sim, de afirmar que os direitos não devem existir em silos.

A ideia, mesmo nos Estados Unidos e na Europa, é julgar uma pessoa em relação à outra. Uma merece direitos porque é refugiada, de acordo com a Convenção de 1951, e o país tenho obrigações com ela. A outra pessoa não tem direitos resguardados porque é um migrante irregular que veio se juntar à sua família, apenas para dar um exemplo teórico. 

Sob a lei dos direitos humanos, todos têm o direito à vida familiar. Contudo, a maneira como nossos sistemas de governança e migração estão organizados não é compatível com os direitos humanos universais. Estamos tentando assessorar a construção de caminhos pelos quais as pessoas possam vir ou permanecer legalmente, mesmo que não sejam refugiadas. Elas podem querer estar com sua família, podem estar fugindo das mudanças climáticas e dos desastres ambientais.

Nossos sistemas de governança e migração não são compatíveis com os direitos humanos universais

Nossos sistemas de governança e migração não são compatíveis com os direitos humanos universais.

Estamos tentando assessorar a construção de caminhos pelos quais as pessoas possam vir ou permanecer legalmente, mesmo que não sejam refugiadas. Elas podem querer estar com sua família, podem estar fugindo das mudanças climáticas e dos desastres ambientais.

Não há qualquer dispositivo — mesmo no Pacífico, onde isso literalmente se tornou uma questão de vida ou morte, e as pessoas ou afundam ou nadam, enquanto a ilha onde vivem desaparece — e não temos nenhum caminho na região para fornecer algum tipo de resposta. Há caminhos de proteção a refugiados entre Austrália e Nova Zelândia, mas nada para as pessoas que enfrentarão desafios reais à medida que as mudanças climáticas estão acelerando.

Isso não é trivial. Além dessa relutância real em grande parte da Ásia em ratificar tratados de direitos humanos, não há muita diferença, são os mesmos desafios que o resto do mundo enfrentará. Até então, não acredito que tenhamos elaborado as respostas corretas.

 

Como podemos construir uma estrutura e uma abordagem compartilhada de direitos humanos?

Temos realizado esse trabalho no ACNUDH desde 2010 e, antes disso, eu já tinha trabalhado na área com organizações não-governamentais por dez anos. Passei muito tempo dialogando com governos na tentativa de fazê-los mudar de ideia com relação a como agem, já que, evidentemente, não acreditamos que estejam gerenciando a migração da maneira correta. Lembro com clareza de ouvir um representante da Alemanha se pronunciando durante o auge da “crise” de refugiados e migração na Europa, em 2015. Ele entrou em contato com o ACNUDH para basicamente dizer: “Sabemos que precisamos melhorar a proteção dos direitos, mas a sociedade não vai permitir, porque são muitas pessoas e estamos sobrecarregados. Portanto, primeiro precisamos mudar a opinião pública e, então, poderemos atuar melhor como governo”. 

Nos últimos anos, este quadro tem sido muito comum: se você diz que o problema está na forma em como o público percebe a migração, então precisamos compreender melhor esses sentimentos. Quais são suas atitudes? Quais são suas percepções? E o que pode mudar sua opinião? Recentemente, realizamos pesquisas em larga escala na Malásia e na Austrália para de fato tentar compreender esse debate polarizado do: “Você apoia os direitos dos refugiados ou apoia os trabalhadores migrantes?” Realmente, é a sociedade civil lutando entre si. O público está confuso e nenhum desses governos — o que, na época, foi diferente no caso da Austrália — queria garantir quaisquer direitos.

O que é fascinante na pesquisa — que é bastante representativa, uma pesquisa com big data que contou com a participação de 1.200 pessoas em cada país, uma pesquisa quantitativa e também qualitativa com grupos focais — é que a maioria das pessoas em ambos os países sentiu que os direitos humanos eram um valor importante para a sociedade. Portanto, uma sociedade decente protege os direitos humanos. 

De forma muito significativa, com uma pequena diferença entre Austrália e Malásia, por muitas razões, eles também sentiram que receber pessoas de outros países era também um sinal de uma sociedade decente. E isso era algo que, como sociedade, eles deveriam fazer. “Devemos acolher as pessoas.” Outra coisa bastante interessante foi que, em ambos os países, quando perguntamos o nível de satisfação com as atuais políticas de migração do governo, quase 45% respondeu: “Não temos ideia. É uma situação complexa que não entendemos”. É por essa razão que as pessoas evitam o assunto, mas quando você começa a perguntar: Você sente que deveria acolher pessoas de outros países? Você sente empatia por pessoas que estão sofrendo? Você receberia pessoas que estão fugindo da perseguição? A resposta é sim para todas as três perguntas.

A mesma quantidade de pessoas disse que deveríamos aceitar pessoas que estão fugindo da miséria econômica. A ideia de que um refugiado é mais aceito do que um migrante econômico não foi demonstrada em nossa pesquisa, em nenhum desses países.

O desafio é ir além da semântica dos direitos humanos e realmente observar como as comunidades funcionam

A solução é se aproximar das pessoas onde elas estão. Esses grandes debates sobre se os migrantes produzem benefícios economicamente. Sim, como economistas, em nível global, deve-se apresentar esses argumentos aos governos, com toda certeza. Mas isso apenas confunde as pessoas. Alguém pode dizer que, estatisticamente, os migrantes acrescentam 12% ao PIB, entretanto, as pessoas não entendem isso. Mas elas entendem quando dizem que seus filhos estão indo para a escola com pessoas de origens migrantes, ou têm vizinhos trabalhando nos correios que são migrantes.

Quando a questão se aproxima das comunidades, e isso vimos na pesquisa — quando está mais perto da realidade das pessoas — então se torna mais real. Pode haver alguns conflitos menores, mas não vimos isso em nossa pesquisa pessoas dizendo para não receber migrantes ou pessoas em movimento.

O desafio é ir além da semântica dos direitos humanos — porque isso está se tornando uma guerra cultural — e realmente observar como as comunidades funcionam.

Oferecer recursos às pessoas e lideranças dentro das comunidades e criar políticas de inclusão e integração. Isso se tornou uma questão de identidade, uma maneira muito eficaz de dividir as pessoas. Quanto mais eliminarmos esses ruídos e tivermos momentos de conexão, teremos cada vez mais direitos protegidos.

 

Quais foram as conquistas mais importantes do ACNUDH nas últimas duas décadas? Quais são os desafios?

Os desafios se relacionam a esse tipo de recuo global. Nos anos 1990, houve um momento, e talvez o 11 de setembro tenha de alguma forma mudado a dinâmica, em que havia quase uma aceitação global da relevância de uma estrutura de direitos humanos. Hoje, estamos muito distantes disso. Temos desafios para estabelecer os direitos humanos como os princípios organizadores das sociedades ao redor do mundo. Isso evidentemente é um desafio para nossa sociedade, mas também para o ACNUDH, como guardião dos direitos humanos dentro do sistema internacional e da ONU.

Os desafios também são de nossa responsabilidade, porque somos muito tecnocratas em relação aos direitos humanos. Somos advogados, e a linguagem que usamos e as questões que escolhemos abordar, muitas vezes, tendem a ser vistas como bastante esotéricas. É a primeira vez na história do ACNUDH que realizamos esse tipo de pesquisa baseada em comportamento. E isso é algo que vamos mudar, se realmente quisermos entender toda a questão. Os direitos humanos são uma parte fundamental, não fazem parte de algo que pertence a um alto escalão político, eles realmente dizem respeito a você, a sua vida e a como sua família e seus filhos vão viver.

Temos desafios para estabelecer os direitos humanos como os princípios organizadores das sociedades ao redor do mundo. Isso evidentemente é um desafio para nossa sociedade, mas também para o ACNUDH, como guardião dos direitos humanos dentro do sistema internacional e da ONU

Quando comecei no ACNUDH, estávamos apenas começando a criar um programa sobre migração e direitos humanos para a agência a nível global. O desafio era, ironicamente, dada a estrutura universal dos direitos humanos, entender onde nos encaixaríamos, agregaríamos valor e onde poderíamos dar voz aos direitos humanos e aos migrantes.

Claro, você tem o ACNUR, a OIT, a OIM e a ONU Mulheres, entre outros. De forma muito consciente, tomamos a decisão de nos concentrar onde poderíamos agregar valor. Não apenas dizer que os refugiados não têm direitos humanos ou que todos os trabalhadores migrantes não têm direitos humanos, mas começamos a olhar para as áreas intermediárias. Por exemplo, o trabalho que realizamos sobre direitos humanos nas fronteiras internacionais, que realmente não se tratava da proteção de refugiados, mas dos direitos de todas as pessoas nas fronteiras.

Todas as pessoas cruzam fronteiras internacionais de vez em quando, e todos enfrentamos vários graus de discriminação e de distinção, e precisamos ajudar os membros dos Estados a entender quando isso é inaceitávelPor exemplo, tratar pessoas de diferentes partes do mundo de maneiras diferentes, como as pessoas que vêm da migração Sul-Sul. Disso sentimos muito orgulho. É como contribuímos — qualificando os valores dos direitos humanos.


 

Pia Oberoi | ÍNDIA |

Conselheira Sênior em Migração e Direitos Humanos para a Região Ásia-Pacífico, baseada no escritório de Bangkok do Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas (ACNUDH), responsável pelo desenvolvimento e implementação de pesquisas e políticas sobre migração e direitos humanos na região. Antes, foi Diretora da equipe de migração global do ACNUDH, onde liderou o trabalho global do Gabinete sobre questões políticas e jurídicas relacionadas com os direitos humanos de todos os migrantes e as intersecções entre migração e direitos humanos. Liderou o trabalho sobre os direitos dos migrantes do Secretariado Internacional da Anistia Internacional e foi consultora especializada para ONGs e grupos de reflexão política na região Ásia-Pacífico e ao redor do mundo. Pia publicou e lecionou sobre migração e direitos humanos, e é doutora em Relações Internacionais pelo St Antony’s College, Universidade de Oxford.

@pia_oberoi

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