"O caminho é curto, mas a trajetória é longa e, a estrada, erudita" — Hédio Silva Júnior
Juristas discutem estratégias para a superação do racismo institucionalizado no judiciário brasileiro, o recrudescimento do racismo religioso, e os avanços e desafios das ações afirmativas no país
por Silvia Souza
| Brasil |
abril de 2021
Defensor histórico das religiões de matriz africana no Brasil. Doutor em Direito, jurista cujo renome não se discute, a trajetória de Hédio Silva Júnior no Direito é marcante pela defesa dos direitos das pessoas negras, e enfrentamento ao racismo. Também é mineiro, vem de família, como por aí dizem “desestruturada”, tendo ido muito jovem para São Paulo, onde foi peão de obra aos dezesseis nos anos 70: à época, o Código Civil brasileiro estava longe de reconhecer nas famílias monoparentais o conceito legal de família. Hoje, por mais indigno que isso pareça, sobretudo considerando a realidade social do Brasil, país em que mães predominam como chefes de família, ainda mais em contextos de acentuada desigualdade social, quadro que invariavelmente — mais afeta sua população negra —, esse retrospecto jurídico de quase meio século demonstra como o Direito formula e se estabelece na lógica hegemonicamente branca e, ainda, da "família tradicional brasileira".
A trajetória de Hédio Silva Jr percorre também esse mesmo tempo e espaço, ainda em meio a toda indulgência à reformulação de novos tempos para o projeto de necropolítica contra a população negra e empobrecida do Brasil. No Direito, Hédio subverte essa lógica e projeto; inclusive por ter sido o primeiro advogado, homem negro, a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal, na defesa das Cotas raciais e ainda, em outra ocasião, defendendo o direito ao pleno exercício da religião de matriz africana, no que tange ao sacrifício de animais para fins de rituais religioso.
Hédio é fundador e preside o IDAFRO, Instituto de Defesa do Direito das Religiões Afro-brasileiras.
Silvia Souza: Quando foi que decidiu pelo Direito e como fez dele uma ferramenta de enfrentamento ao racismo em sua vida?
Hédio Silva Júnior: Talvez o despertar para o Direito tenha vindo de histórias que contava meu avô paterno Geraldo João Silva. Ele participava, duas vezes por ano, da condição de jurado, numa cidadezinha pequena no interior de Minas Gerais, Três Corações. Normalmente, homicídio. Ele me relatava a história do júri, aquela teatralidade, o papel do promotor, do juiz, dos jurados, e o papel do advogado.
"Sou filho de Xangô, no Candomblé o orixá ligado à justiça. Talvez essa conjugação tenha me levado ao Direito"
Contava essas histórias sempre com muito entusiasmo, com muita alegria, por ter tido a oportunidade de participar como preto, analfabeto, ferroviário. Aliás, ele nem poderia participar de júri porque era analfabeto mas, enfim, já estava em vigor o Código Penal e o Código de Processo Penal.
Certamente isso marcou muito minha trajetória. Depois, na militância, entendi que faltava um investimento nessa área tão estratégica do Direito que é a Litigância. Havia pouquíssimos advogados e advogadas negras. Foi aí que eu tomei a decisão de fazer Direito.
Tentei outros cursos, não deu certo e acabei indo para o Direito. Fiz a carreira acadêmica, mestrado e doutorado na PUC. Publiquei alguns livros.
No meu escritório, instituí uma área de advocacia pro-bono. Nessa época também tinha vínculo com uma Organização Não Governamental, com algum recurso para ações emblemáticas, ações que nós avaliávamos que deteriam potencial de criação de jurisprudência favorável, o que os americanos chamam de cultura legal.
"Acabei intervindo em ações emblemáticas, ações históricas no período recente do país"
Também sou filho de Xangô, no Candomblé o orixá ligado à justiça. talvez essa conjugação tenha me levado ao Direito. E acabei intervindo em ações emblemáticas, ações históricas no período recente do país. O Movimento Negro me escolheu para fazer a defesa das ações afirmativas no Supremo Tribunal Federal em 2012.
Também atuei num caso histórico, o de direito de resposta coletiva que as religiões afro-brasileiras ganharam contra uma emissora de televisão. Ainda, atuei num caso que talvez tenha sido o mais desafiador: defender, primeiro no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, e depois no Supremo Tribunal Federal, o direito ao abate religioso de animais, que é alguma coisa que judeus praticam, mulçumanos adotam como rito, como dogma, direito que nunca antes havia sido questionado.
Foram questionar o sacrifício da galinha, e foi quando usei a expressão no Supremo “a galinha da macumba”. Foi um momento importantíssimo.
"O Movimento Negro me escolheu para fazer a defesa das ações afirmativas no Supremo Tribunal Federal em 2012"
Mas, a gente tem nessa advocacia pro-bono dezenas de ações. Ações para que pais possam registrar filhos com nome africano. O primeiro reconhecimento judicial de um casamento realizado num terreiro afro-religioso de Porto Alegre; a absolvição de um sacerdote acusado injustamente de maus tratos por conta do abate de animais; a reversão de um caso, no interior de Minas, em que a polícia interveio e interrompeu um culto afro-religioso, apreendeu atabaques, e tentou indiciar o sacerdote por crime de perturbação de sossego. Foram dezenas de casos em que, talvez com a generosa ajuda de Xangô, nós obtivemos vitória na grande maioria, se não em todos esses casos.
Silvia Souza: Sobre as suas sustentações no STF, tanto na Lei de Cotas quanto em relação ao direito ao abate de animais, o senhor ironiza o racismo e desvela a hipocrisia daquelas ações. Começo falando das ações das cotas raciais, a ADPF1Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, julgada em 2012 pelo STF. Sua defesa pelos movimentos negros foi brilhante: ironizou o fato de ser o problema do Brasil naquele momento as ações afirmativas, e as trouxe ao debate, inclusive com aporte de dados da época. A USP, por exemplo, tinha mais alunos africanos do que alunos negros brasileiros.
A Lei de Cotas2Lei nº 12.990, pelo Artigo Sétimo, prevê revisão passados dez anos, que se completam em 2022. Também a Lei de Cotas nos concursos públicos prevê revisão periódica, pelo órgão responsável, a SEPPIR, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, hoje submetida ao Ministério da Mulher, Família, e dos Direitos Humanos. Em entrevista, o senhor fala sobre “nunca ter havida tantos brancos pobres nas universidades, e como isso também decorre da política da Lei de Cotas”. Nesse contexto político atual, como avalia a política de cotas como um todo? A possibilidade de sua extensão, considerando se estrutura o judiciário brasileiro e o momento político que vivemos?
Hédio Silva Jr: A avaliação é positiva, muito embora nós tenhamos muitos problemas ainda, pois a Constituição Federal tutela o direito de acesso, assim como tutela o direito de permanência na educação escolar. A fragilidade ainda se encontra no que diz respeito à permanência dos nossos alunos. Nós tivemos um aumento exponencial no acesso desde 2001.
"A gente tem nessa advocacia pro-bono ações para que pais possam registrar filhos com nome africano"Já se vão vinte anos desde quando a Universidade Estadual do Rio de Janeiro tornou-se pioneira na adoção de políticas de ação afirmativa. Depois o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade das cotas, e finalmente foi aprovada como lei.
O contexto político em 2022, ano em que essa lei será submetida a uma avaliação, não poderá ser mais desalentador, primeiro porque temos um presidente da república que se refere a quilombolas como animais, como disse naquela infame frase, ainda mesmo em campanha, "que num quilombo que visitou o afrodescendente mais leve tinha sete arrobas". Essa expressão “arroba”, pra nós, tem uma carga ofensiva, uma carga aviltante, extremamente ultrajante, pois você pesa animais com essa unidade de medida, e não seres humanos. Ainda, segundo o presidente, não prestariam mais nem para procriar. Quer dizer, animais inúteis, foi o que disse, não com todas as letras porque ele mal articula duas ou três palavras. É um beócio, mentecapto total. Um presidente com frases racistas que nega o racismo no Brasil.
"A Constituição Federal tutela o direito de acesso, assim como tutela o direito de permanência na educação escolar"
Possivelmente o Judiciário será um lócus, um palco estratégico para que a gente possa tentar paralisar qualquer movimento no sentido de revogação da lei. Nós precisamos de mais tempo. Há muito ainda que ser feito, há muito que ser investido em termos de permanência no ensino superior.
Há uma questão que vez ou outra surge, e eu inclusive tive a honra de litigar recentemente para uma afro-descendente de Campinas, que foi aprovada para Medicina na Unicamp e eu entendi que a moça, muito embora não tivesse traços fenotípicos acentuados africanos, era uma afro-descendente. E eu assumi sua defesa e tive a sorte de perder em primeira instância, mas o tribunal deu ganho de causa reconhecendo que ela é afro-descendente e determinando que a Unicamp procedesse com sua matrícula.
"A fragilidade ainda se encontra no que diz respeito à permanência dos nossos alunos"
Entendo que as comissões de hetero-identificação precisam ser aprimoradas. Eventualmente isso pode ganhar vulto dentro do Judiciário, pode chegar ao Supremo Tribunal Federal e, com essa promessa de termos um ministro terrivelmente evangélico eu não sei como é que o STF, com sua composição daqui a quatro, cinco anos, vai lidar com um tema como esse.
O Movimento Negro vai precisar se mobilizar, os advogados terão papel destacado mais uma vez. Nós precisamos investir no aprimoramento dos jovens, dos jovens advogados e advogadas negras que ingressam no mercado de trabalho. Sempre digo isto: não basta você ser macumbeiro e advogado, e nem basta você ser preto e advogado, pois às vezes são temas que mexem com a nossa subjetividade, retiram aquela equidistância que é preciso ter para uma atuação técnica e, lamentavelmente, não tem repositório de jurisprudência, não tem curso, não tem nada nesse campo.
"O contexto político em 2022, ano em que a Lei de Cotas será submetida a uma avaliação, não poderia ser mais desalentador"
Parte dos problemas certamente tem a ver com o racismo institucional que não desonera nenhuma instituição dos seus efeitos deletérios, inclusive das instituições jurídicas. Mas entendo também que nós precisamos aprimorar o encaminhamento judicial das demandas do povo preto e das demandas do povo afro-religioso, do povo de terreiro.
Então, eu estou muito preocupado com isso, e também porque tenho quase sessenta anos, já iniciei a contagem regressiva, daqui a cinco meses eu sou tecnicamente idoso e eu quero compartilhar um pouco do que eu aprendi nessas três décadas. Democratizar a informação e investir na formação de jovens advogados que possam assumir o bastão.
Silvia Souza: Na época em que as comissões de heteroidentificação foram criadas houve uma divisão de posições até mesmo dentro dos movimentos negros brasileiros, e o senhor menciona a necessidade de aprimoramento das comissões, e como isso pode chegar ao STF. Porque isso mexe também com a subjetividade do concursando, do vestibulando que está ali, passando pela comissão. É uma comissão que vai dizer para ele se ele é preto ou não. E, às vezes, a comissão não é plural como foi estabelecido no acórdão da ADPF 186, sendo composta apenas por pessoas brancas. Como é que o senhor avalia as comissões de heteroidentificação e quais são os aprimoramentos necessários nelas?
Hédio Silva Jr: Elas detêm um grau tamanho de subjetividade que, todas as vezes que o STF avaliou colegiados com poder de deferir ou não direitos com base em critérios rigorosamente subjetivos, o STF foi contra esse grau de subjetividade, ainda que o próprio Supremo tenha já se pronunciado a respeito da legitimidade da correção das comissões de heteroidentificação. Só que o Supremo se pronunciou sobre as comissões de heteroidentificação no contexto de outras ações, como razões de decidir, como elemento predominante, como tese predominante, mas não em parte dispositiva de julgamento algum. Então é diferente quando o assunto é fundamentação de decisão que não tem efeito vinculante, não é? Fundamentação de decisão não tem efeito nenhum. Ela até te permite manejar certas medidas, mas ela não vincula. "O racismo institucional não desonera nenhuma instituição dos seus efeitos deletérios, inclusive as instituições jurídicas"
Eu escrevi um parecer para a Universidade Federal de São Carlos, e não sei ainda se a UFSCar adota esse critério, mas eu dizia que nós temos uma série de documentos e eu vou citar só um: hoje, em fevereiro de 2021, qualquer garoto ao se inscrever no serviço das Forças Armadas é classificado racialmente, então, o garoto se tem 18 anos e não tem essa informação, o pai tem, porque foi classificado racialmente. Até 1975 todos os brasileiros eram identificados racialmente, com informação sobre cor no registro de nascimento.
Os formulários da área criminal, inclusive, para efeito da emissão do documento de identidade, tem informação sobre sobre cor. Então, se o documento do candidato ou do pai ou da mãe do candidato constar alguma informação diferente de branco ou de indío, ele deve ser considerado negro para fins das Ações Afirmativas. Fui bombardeado, como se hoje fosse cancelado. “Hédio está querendo congelar identificação racial e etc”.
"Até 1975 todos os brasileiros eram identificados racialmente, com informação sobre cor no registro de nascimento"
Depois veio aquela fase nefasta, em que queriam que o sujeito que lança a informação fraudulenta fosse criminalizado, punido por crime de falsidade ideológica.
Quer dizer, se tem um povo que sabe que prisão não é solução para nenhum problema social, é o povo preto, e nós vamos justamente pedir para prender?
Então eu tenho alertado. Porque acho que nós conhecemos o racismo brasileiro. De fato, nós o conhecemos. E entendo que essas comissões de heteroidentificação, e espero que isso não aconteça, mas elas hoje podem dar azo ao movimento dentro do judiciário que o recoloque a discussão, agora especificamente sobre o grau de subjetividade, e com isso tenho recomendado cautela. Por sorte, acabei atuando no caso, patrocinando uma ação que nasceu de uma recusa de uma comissão da Unicamp e o tribunal me deu razão.
"Se tem um povo que sabe que prisão não é solução para nenhum problema social, é o povo preto"
O caminho é curto, mas a trajetória é longa, e a estrada, erudita.
Veja só, a Constituição Federal utiliza quatro critérios para demarcar a diversidade racial brasileira: cor, raça, etnia e o adjetivo pátrio afro-brasileiro. É o único adjetivo pátrio que consta na Constituição Federal: afro-brasileiro.
Além disso, naquele famoso caso Ellwanger, aquele editor famoso do Rio Grande do Sul, que editava livros nazistas, negando o nazismo, e atribuindo aos judeus eventuais problemas enfrentados pela Alemanha, no julgamento do caso Ellwanger o Supremo problematizou ainda mais a questão da classificação racial. Porque além das quatro categorias previstas expressamente na Constituição, o Supremo diz que raça é construção social.
"Nós vamos justamente pedir para prender?"
Então eu tenho um julgamento com repercussão geral, com raça, cor, etnia, afro-brasileiro e construção social, então você imagina o conjunto de possibilidades que alguém tem para fazer frente a essas comissões de heteroidentificação e perguntar para ela qual das cinco categorias, as quatro constitucionais e a quinta deliberada pelo Supremo, as comissões estão utilizando para me classificar aqui?
Então é preciso cuidado, é preciso aprimorar. Porque eu temo muito, muito mesmo, e discuto isso bastante com a Professora Doutora Ellen Lima Souza, que é uma preta de pele clara, do meu temor de que isso venha, mais dia menos dia, a se tornar um problema. Não é alguma coisa que você possa tocar achando que é tranquilo, entendeu? Que isso é de menos importância ou de somenos importância, para usar uma expressão jurídica. É alguma coisa que, ao meu juízo, está merecendo a devida atenção.
Silvia Souza: Podemos falar um pouco sobre racismo religioso? O senhor mencionou a ação do STF em que fez a sustentação oral falando da famigerada galinha da macumba, com uma ironia que pra mim construiu uma das mais brilhantes sustentações que presenciei. O senhor mencionou também sobre a ação que atuou contra a TV Record e a rede mulheres, que foi um processo que durou mais de quinze anos, se eu não me engano, em 2009.
Hédio Silva Jr: Foi em primeira instância.
Silvia Souza: Isso, em 2019 houve uma decisão, foi quando as redes de televisão começaram a cumprir o direito de resposta das religiões de matriz africanas, correto? Um dado do Disque Direitos Humanos diz que, em 2019, 59% das denúncias das reclamações que chegaram eram relativas a intolerância religiosa, mais precisamente, 213 notícias. A gente tem atravessado esse momento em que as religiões, os terreiros, as casas de Umbanda, de Candomblé são atacadas, principalmente na periferia. As figuras que surgem como os traficantes de Cristo tem uma relação majoritária com a religião evangélica neopentecostal, especialmente no Rio de Janeiro, onde tráfico, milícia, e política atacam de toda a maneira as religiões de matriz africana.
Na época, em 2019, quando houve essa vitória, o senhor estava como advogado do CEERT3 Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Em entrevista para a revista JusDH, o senhor diz que a vitória dessa ação era o marco de um início de uma longa jornada contra o racismo religioso. Diante de todo esse cenário, com todas essas implicações mencionadas e com as que o senhor conhece muito mais profundamente, como avalia que estamos nessa jornada de enfrentamento ao racismo religioso, tanto dentro do judiciário, quanto na política e na sociedade como um todo?
Hédio Silva Jr: Primeiro é lamentável percebermos o crescente aparelhamento do espaço público por facções religiosas. E, eu vou citar um exemplo, aliás vou citar dois, o primeiro é o Conselho Tutelar. Em 2007 atuei numa ação. Uma menina de nove anos, acompanhada da mãe o tempo todo, no dia da cerimônia de saída da menina que estava sendo iniciada, a polícia, de madrugada, com dezenas de carros, deteve 40 pessoas, todas que estavam participando da cerimônia, e prendeu em flagrante cinco delas. Indiciou, prendeu em flagrante cinco, inclusive o Babalorixá, a mãe da menina, e olha que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que a família tem direito de transmissão da crença.
"A Constituição Federal utiliza quatro critérios para demarcar a diversidade racial brasileira: cor, raça, etnia e o adjetivo pátrio afro-brasileiro"
Isso não é um assunto do Estado, a crença ou a descrença. A Constituição Federal, no mesmo dispositivo em que protege a crença, ela protege a descrença, e isso não é um assunto que o Estado deva se imiscuir.
Faz uns seis meses, um caso em Araçatuba, envolvendo o Conselho Tutelar e a PM, o plantonista destitui a mãe da guarda da filha que estava sendo iniciada, de treze anos, acompanhada da mãe. Não é nem criança, é adolescente. E você sabe que há uma diferença entre adolescente e criança. A opinião de adolescente deve ser levada em consideração, aliás, a jurisprudência diz que, desde que haja constatação de que a criança tenha condições de avaliar a própria situação, ela deve ser ouvida. Oito, nove, ou dez mas, nesse caso, a menina tinha 13 anos.
O plantonista destituiu a guarda e chegou a notícia de uma mãe que perdeu a guarda de dois filhos, numa decisão liminar que está em vigor há um ano e dois meses, apesar de o ECA prescrever o período máximo de 120 dias para ação de destituição ou de suspensão do poder familiar. E lá se vão doze meses que está em vigor uma decisão precária, provisória, determinando que a guarda fique com uma tia, irmã da mãe que, por acaso, é neopentecostal. Todos os relatórios do setor técnico do Ministério Público foram favoráveis à mãe. Psicólogo, assistente social visitaram a casa, foram favoráveis à mãe.
"É lamentável percebermos o crescente aparelhamento do espaço público por facções religiosas"
Todos os relatórios apresentados pelo conselho tutelar foram desfavoráveis à mãe. O pronunciamento judicial considerou a especulação feita pelo Conselho Tutelar em detrimento da perícia técnica feita pelo setor técnico do Ministério Público, e além de retirar a guarda da mãe, proibiu qualquer contato. Há um ano e dois meses essa mãe não tem nenhum contato com esses dois filhos. Quando você vai ler o processo, o substrato qual é? Intolerância religiosa.
Em escolas públicas, quantos casos não chegam ao nosso conhecimento? De professores que querem fazer da escola pública um puxadinho do seu templo, que humilham, que constrangem, que ofendem, que traumatizam crianças de oito, nove, dez anos porque ela é ateia ou por que é afro-religiosa ou por que porta um símbolo qualquer da macumba.
"A Constituição Federal, no mesmo dispositivo em que protege a crença, ela protege a descrença, e isso não é um assunto que o Estado deva se imiscuir"
Eu vi o caso de duas meninas católicas, em que sobrou doce e bala da festa de aniversário delas, e levaram para escola, mas era mês de setembro, e a professora as desautorizou, porque essas balas e doces seriam do demônio. Então, nós estamos vivendo um aumento temerário dos efeitos da propagação diária do ódio religioso. Todos os males do planeta são atribuídos à macumba. Aquecimento global, é macumba. Buraco na camada de ozônio, é a macumba. Degelo no Ártico, é macumba. Frigidez é macumba. Impotência é macumba. Trincou a dentadura, é macumba. Desemprego, é a macumba. Falta de casa própria, é a macumba. Qual é o resultado prático que você tem? Você induz brasileiros a agredirem, como no caso da menina do Rio de Janeiro, que foi apedrejada.
É a barbárie, é o esgoto, é a infâmia você apedrejar uma menina na rua, de onze anos, a Kailane, porque estava trajando indumentária religiosa. Eu sou pessimista e vou te dizer mais: em breve, nós vamos ter conflito de rua no Brasil em função do racismo religioso. Por quê? Porque se há um sentimento caro a qualquer indivíduo, inclusive para os que não crêem, é o sentimento de convicção religiosa. Nesse caso, não é pra levarmos em conta o preceito, o que determina a Constituição, pois o sentimento religioso é algo caro ao indivíduo. Ninguém tem o direito de ofender a outrem, de aviltar, de ultrajar, de atacar.
Agora, no Rio de Janeiro, isso parece ter se tornado normal. Toda semana aparecem traficantes de Jesus, bonde de Jesus. Entra ano e sai ano e você não ouve falar de resultado de inquérito, de identificação de autor, de prisão de alguém.
"Se há um sentimento caro a qualquer indivíduo, inclusive para os que não crêem, é o sentimento de convicção religiosa"
Já até falei sobre federalização, pois tem que levar isso para o âmbito da justiça federal. Mesmo hoje havendo dúvidas sobre a imparcialidade da polícia federal, confio na qualidade técnica de atuação da maior parte de juízes federais e dos procuradores da República.
Pois chegamos a um ponto completamente inaceitável. Depredaram e incendiaram aqui e ali. Aqui não pode ter terreiro, nessa rua você não pode andar de branco.
Quer dizer, é a barbárie, na sua forma mais cruel. E isso é resultado desse discurso de ódio que cotidianamente programas de rádio e TV. A ANCINE, a Agência Nacional de Cinema demonstra que o maior conteúdo das TVs abertas, hoje, no Brasil, são os programas religiosos. Não é nem novela, nem BBB, nem noticiário, ninguém perde para programa religioso. Em si só não seria o problema, eu diria, muito embora meio de comunicação social no Brasil configura-se em serviço público, não é? Então já é questionável se o meio de comunicação social pode ser utilizado para proselitismo religioso.
Mas o que se vê não é proselitismo religioso, o que se vê é a propagação do ódio religioso, e tem mais, não venham me dizer que é crítica às religiões, porque a única que é criticada é a macumba. E a gente sabe o nome disso: racismo religioso.
Silvia Souza: Professor, a federalização dos crimes por motivação de ódio religioso, intolerância religiosa, seria uma alternativa razoável, por exemplo, para a diminuição desses crimes?
Hédio Silva Jr: Penso que há uma alternativa, Sílvia. Há quantos anos nós estamos ouvindo falar de depredação, de invasão de terreiro na Baixada Santista? Agora com o tal do Complexo de Israel, no Rio de Janeiro. Não se tem uma notícia sequer de inquérito relatado.
Entra ano sai ano, não há inquérito relatado, apontando indícios de autoria. Outra coisa que eu tenho dito, eles muitas vezes gravam o constrangimento, o sacerdote sob ameaça de arma pesada, obrigam o sacerdote a destruir o artefato religioso e põem aquilo na mídia. O nome disso é terrorismo. Não é racismo. Racismo tipifica crime de três a cinco anos, terrorismo é de doze a trinta.
"Já é questionável se o meio de comunicação social pode ser utilizado para proselitismo religioso, mas o que se vê ali não é proselitismo religioso, o que se vê é a propagação do ódio religioso"
A qualificação tem que ser terrorismo. Do meu modesto ponto de vista, o Estatuto da Igualdade Racial, apesar de parte dele não servir para absolutamente nada, tem alguns dispositivos com alguma utilidade, e eu entendo que o Estatuto da Igualdade Racial classifica templo religioso como espaço cultural, então o dano ao templo não é um dano a propriedade privada, o dano ali é o dano ao patrimônio cultural, é crime ambiental porque em dano ao imóvel privado a pena é de seis meses de detenção. Agora, em crime ambiental, em dano ao patrimônio cultural, a pena é de três a cinco anos. Então, trata-se de terrorismo e crime ambiental, o que demanda endurecimento. Não é mais possível conviver com essa naturalização que aumenta mais a cada dia mais. É lamentável.
Silvia Souza: Lamentável, mesmo. E o senhor mencionava o grande espaço que as religiões neopentecostais têm na mídia, e como isso também reverbera na política. A gente tem uma bancada evangélica expressiva dentro do Congresso Nacional, com fortes posicionamentos, inclusive, aos projetos de leis voltados para o punitivismo, para armamento. Eu acompanhei a bancada evangélica em 2019 e 2020 no Congresso Nacional, acompanhei principalmente a tramitação dos decretos de leis editados em 2019 em relação ao porte e posse de arma, uma prioridade do Governo Federal que teve o apoio massivo da bancada evangélica. Isso é um contraponto com o cristianismo, que tem a vida, o ser humano, à semelhança de Deus. Como esse discurso se justifica, e como esse discurso pode ser incorporado tão facilmente pela população brasileira, e vou ousar dizer, em especial pela população preta, pobre e periférica, haja visto o número enorme de igrejas neopentecostais de várias denominações nas periferias do Brasil, cujos fiéis se compõem, em grande parte, pela população preta, pobre e periférica. Como reverter esse cenário?
Hédio Silva Jr: Veja só, eu que não sou da área de estatística, acabei coordenando uma pesquisa pela Prefeitura de São Paulo, a pedido do então secretário Maurício Pestana, juntamente com uma socióloga muito competente e proficiente, a professora Lena Garcia. Fizemos um recorte do censo de 2000 ao censo de 2010, e os dados são muito interessantes.
"Muitas vezes gravam o constrangimento, o sacerdote sob ameaça de arma pesada, obrigam o sacerdote a destruir o artefato religioso e põem aquilo na mídia"
Primeiro, como sabemos, a base das confissões neopentecostais é preta. Cerca de 70%. Por outro lado, 70% da macumba é branca. A base da macumba é branca. E, é interessante pegar o perfil do preto neopentecostal e o perfil do preto macumbeiro. O neopentecostal ganha menos que três salários mínimos e tem baixíssima escolaridade. E o preto macumbeiro tem educação superior, uma boa parte, e ganha mais de dez salários mínimos.
Ou seja, quanto mais empoderado, mais livre ele se sente para se identificar com uma macumba. De outro lado, quanto mais humilde e menos escolarizado, eventualmente até enxerga o terninho e a bíblia como uma forma de aceitação social, porque eu sempre digo, o cara já é preto e você vai querer que ele seja também macumbeiro? É um fardo, pesado demais para o cara carregar, não é?
"O nome disso é terrorismo, não é racismo. Racismo tipifica crime de três a cinco anos, terrorismo, é de doze a trinta"
Então, estamos tratando de empoderamento. É educação, é informação, porque quanto mais empoderado, mais ele se sente livre para professar a religião do seu povo. E, quanto menos escolarizado mais ele avalia que, eventualmente, talvez ali seja um caminho para ser aceito socialmente, e isso é uma questão gravíssima e paradoxal. Não é que todos os pretos tenham que ser macumbeiros, a gente é um povo, nós somos 120 milhões de brasileiros. Nós não somos baratas. Não é todo mundo ser da mesma religião, mas, chama a atenção o fato de 70% dos neopentecostais serem constituídos por negros, mas na televisão, na ponta, você não os vê.
A base das confissões neopentecostais é preta. Cerca de 70%. Por outro lado, 70% da macumba é branca
No dia em que os macumbeiros do país inteiro, diante do recenseador, declararem sua pertença racial real, nós vamos ter a macumba como a segunda ou terceira maior religião do país. Só para citar o Rio Grande do Sul, que tem 60 mil terreiros, sendo um dos estados mais brancos do país. Se você contabiliza que a cada terreiro você tem cerca de cinquenta adeptos, nós estamos falando que no Rio Grande do Sul tem três milhões de macumbeiros. Se englobar a Umbanda em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais...
Silvia Souza: São 3 milhões que não estão no censo, não se autodeclaram…
Hédio Silva Jr:Nós precisamos de visibilidade e precisamos de organização, pois vou dizer: eles têm mais pirotecnia do que número. E essas eleições demonstraram bem isso. O último prefeito do Rio de Janeiro saiu pelas portas dos fundos, com tornozeleira eletrônica e em breve vai para a cadeia. No dia em que tivermos organização e número, eu não tenho nenhuma dúvida que constituiremos bancada nas câmaras de vereadores, bancada na assembleia.
Silvia Souza: Bancada da macumba.
Hédio Silva Jr: No congresso! E vamos eleger um macumbeiro à presidente da República ou uma macumbeira presidenta da República. Por que nós temos essa característica, nossos espaços são espaços de inclusão. A gente nunca usa esse espaço para prejudicar, para diminuir ou para depreciar a nenhuma outra religião. A gente é uma religião includente e não uma religião hegemônica, de exclusão, de ataque a qualquer outra religião.
"O neopentecostal ganha menos que três salários mínimos e tem baixíssima escolaridade. E o preto macumbeiro tem educação superior, uma boa parte, e ganha mais de dez salários mínimos"
Silvia Souza: Vamos falar sobre o judiciário brasileiro, já que o tema dessa edição é raça, racismo, território e instituições. O último censo do judiciário mostrou que esse poder é 80,34% branco, 78,9% cristão e 62% masculino.
Predominantemente masculino, ou seja, o poder judiciário é branco, cristão e heteronormativo. Por outro lado, a população carcerária é predominantemente preta. De acordo com os dados do DEPEN4 Departamento Penitenciário, 63% da população carcerária é preta ou parda. O racismo no sistema de justiça é indiscutível. O senhor acredita no sistema de justiça brasileiro para o enfrentamento ao racismo?
Fiz uma pesquisa para o PNUD5Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento sobre boas práticas de enfrentamento ao racismo no sistema de Justiça. Olhei para a Justiça Criminal dos tribunais do sudeste . A intenção da pesquisa era encontrar boas práticas para nortear futuras políticas do CNJ6 Conselho Nacional de Justiça. Na pesquisa, busquei por jurisprudência e teses. Analisei 1336 acórdãos e encontrei doze, entre quinze decisões, consideradas positivas dentro dos critérios estabelecidos. Isso gerou um catálogo de jurisprudência e teses. O problema central é que a maioria dos juízes sequer analisam as teses em suas decisões. Eles sequer se debruçam sobre elas. E ficam repetindo aquelas decisões que não reconhecem a existência do racismo no sistema de justiça criminal.
Como é que o senhor vislumbra sistema de justiça em termos de justiça criminal, punitivismo, desencarceramento, de políticas anti-punitivistas, inclusive, pois falar em desencarceramento não é necessariamente falar em não punição, mas em outras formas de ressocialização. O senhor ainda acredita no sistema de justiça brasileiro?
Hédio Silva Jr: Eu acredito no judiciário mesmo porque, como advogado, nunca prestei concurso público, nunca quis fazer outra coisa, e tenho paixão pela advocacia privada. Então se eu não acreditar, se eu não acreditasse no judiciário eu abdicaria do meu ofício e iria fazer outra coisa. Ele reflete os problemas que a sociedade tem? Reflete. Ele é contraditório? É contraditório. Ele tem, certamente, dentre três poderes, a propensão mais conservadora? Tem. Mas ele tem também decisões cambiantes.
"Estamos tratando de empoderamento. É educação, é informação, porque quanto mais empoderado, mais a pessoa se sente livre para professar a religião do seu povo"
Na área penal não há nenhuma dúvida. Eu estava lendo esses dias uma decisão pioneira sobre o judiciário utilizar como prova de identificação fotografia de rede social. Quer dizer, quem é que pauta e quem questiona isso?
O advogado tem papel de suma importância em fazer com que teses que denunciam o racismo na justiça criminal sejam apreciadas nas decisões dos juízes. Nós, advogados, é que vamos lá bater no judiciário para que o acusado não seja condenado com base em uma única prova. Tive um professor brilhante na graduação que dizia “atue em cada processo como se fora o único processo”. Então, quem é que tem essa obrigação, esse cuidado, esse zelo, até porque é fiscalizado pela sociedade, pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pelo cartorário, pelo meirinho, pelo cliente? O advogado. O defensor público menos, o advogado, mais.
"No dia em que macumbeiros do país inteiro, diante do recenseador, declararem sua pertença racial real, nós vamos ter a macumba como a segunda ou terceira maior religião do país"
Se não é o advogado que vai lá e diz que não é possível que alguém seja condenado com base em uma única prova frágil, como a do reconhecimento por fotografia retirada do facebook, e isso remonta à questão da importância do aprimoramento da litigância, aquilo se naturaliza, o tribunal referenda, o STJ referenda, e pode ser que no Supremo, a depender da forma como chegar no Supremo, pode ser que o Supremo já tivesse derrubado aquilo há muito tempo, entende?
Quer dizer, o judiciário é uma instituição que reflete os valores da sociedade, é uma instituição que tem uma decisão como esta, de tirar a guarda da mãe porque a mãe é juremeira e tomava vinho e fumava charuto dentro de casa. Bom, se for tirar a guarda de mãe e pai que toma vinho e fuma em casa possivelmente não se ia ter família substituta para poder acolher tanta criança.
"Nossos espaços são espaços de inclusão. A gente nunca usa esse espaço para prejudicar, para diminuir ou para depreciar a nenhuma outra religião"
Apesar de tudo isso na área criminal, nós não tivemos, no período das cotas, antes da manifestação do Supremo, nenhuma decisão que tivesse sido capaz de paralisar a implantação do sistema de ações afirmativas. Então, por isso que eu não gosto de generalizações.
Entendo o judiciário ser uma instituição de tendência conservadora e branca. Por outro lado, hoje nós temos cotas para preto na magistratura, cotas para preto no Ministério Público, cotas para preto na Defensoria Pública. Em dezembro, eu inclusive tive a honra de fazer a sustentação oral quando Conselho Federal da OAB aprovou cota para preto nos cargos eletivos da Ordem. Nós vamos juntar a juventude negra e prepara-la para a magistratura, para o ministério público, para as polícias, para a polícia federal.
Temos que ter gente preta ali, também tensionando. Nós temos uma promotora de justiça no Bahia que você deve conhecer, a doutora Lívia Santana. Ela está na promotoria dos crimes de racismo e delitos de intolerância, rigorosamente comprometida com a legalidade.
"Nós vamos juntar a juventude negra e prepara-la para a magistratura, para o ministério público, para as polícias, para a Polícia Federal"
Ela não está lá comprometida com a macumba, com o preto, ela está comprometida com a legalidade. Porque o que se exige do operador do Direito, e isso a sociedade pode exigir, é que ele decida de acordo com a lei. As convicções, os achismos, as preferências, as crenças ou descrenças, a pessoa que use na própria casa. Pois um dos princípios que regem a administração pública é o princípio da imparcialidade. Ali a pessoa tem que julgar de acordo com a lei e não de acordo com aquilo que acha.
Silvia Souza: Sobre a imprescritibilidade da injúria racial e sua atuação no STF no caso, o que o senhor diz sobre essa ação que discute a imprescritibilidade da injúria racial?
Hédio Silva Jr: Sobre isso eu não tenho dúvida. Aliás, escrevi sobre o mérito em 2001. O inciso 42 do artigo quinto diz: a prática do racismo, a despeito da junção que se possa fazer sobre a constitucionalidade de tipo penal aberto, a prática do racismo se inclui a qualquer conduta, inclusive, à ofensa.
Eu escrevi isso em 2001, mas como advogado, preto e tudo. Agora, um desembargador aqui do Tribunal de Justiça, figura respeitada, com vida livre e etc, escreveu que a prática do racismo é uma espécie de crime imprescritível, inafiançável e tudo mais.
Estou atuando nesse caso com o meu querido Paulo Iotti. Nós estamos habilitados, já fizemos a sustentação oral e, como a votação na turma foi de cinco a zero, basta um voto agora pra gente ratificar de vez que não há diferença ontológica entre injúria racial e crime de racismo.
"O que se exige do operador do Direito, e isso a sociedade pode exigir, é que ele decida de acordo com a lei. As convicções, os achismos, as preferências, as crenças ou descrenças, a pessoa que use na própria casa"
Silvia Souza: O senhor comentou do projeto para potencializar advogados negros e negras. Quais são seus planos para o futuro enquanto advogado, mas também enquanto sujeito negro que que vive nessa sociedade brasileira?
Hédio Silva: Olha, eu tenho hoje uma atuação bastante intensa nos tribunais superiores, na segunda instância e nos tribunais superiores, e quero continuar na litigância porque eu sou movido a desafio. Eu tenho paixão pela litigância. Mas eu vou a partir de agora destinar mais tempo à formação e ao treinamento. O projeto está bastante adiantado, ele vai tentar fazer uma série de pontes. A gente deve lançá-lo em breve.
Silvia Souza: Professor Hédio o senhor já pensou em ocupar uma cadeira como ministro do STF, se fosse convidado, quem sabe daqui há alguns anos. O senhor já se imaginou nesse lugar?
Hédio Silva Jr: Você sabe que quando o presidente Lula pensou no nome do nosso ilustre Joaquim Barbosa, o segundo da lista era o meu, mas a distância do meu currículo para o de Joaquim era abissal. Joaquim com doutorado na França, com mestrado na Alemanha, Procurador da República. Mas, o segundo nome foi o meu. E, qualquer brasileiro, qualquer advogada e advogado negro se sente lisonjeado quando tem o seu nome lembrado para um cargo no Supremo, mas não me vejo nesse lugar mais.
Eu agora quero me dedicar ao treinamento dos jovens. Quero me dedicar à produção de conteúdo, artigos, livros, repertório de jurisprudência porque cresce assustadoramente o número de ações judiciais decorrente de racismo e, lamentavelmente, na maior parte dos casos a gente não tem êxito.
transcrição Cynthia Rachel Esperança
Silvia Souza | Brasil |
Advogada, especialista em Direitos Humanos, diversidades e violências pela Universidade Federal do ABC, especialista em advocacy e pesquisadora em criminologia e racismo, realizou sustentação oral no STF em 2019 sobre prisão em segunda instância sendo reconhecida como a primeira mulher negra a proferir sustentação oral naquela corte.