Se eu pelo menos conseguir morrer de idade, já 'tá bom
Fim do mundo, raça e território em Ar condicionado, filme de Fradique
Luis Felipe Gómez Lomelí
| México | Angola |
março de 2021
traduzido por Mariana Costa
Resumo
As sociedades hegemônicas dependem da escenificação do controle do entorno para exercer, de fato, o poder sobre os corpos racializados e subalternizados em um território determinado. Essa escenificação requer tanto um discurso como uma territorialização que segregue as externalidades negativas das positivas, mas se rompe quando uma catástrofe real ou imaginária é avistada. Então, se revelam as ensambladuras entrelaçadas de territórios e de livretos ocultos dos diferentes atores sociais. Este artigo analisará esta revelação, que produz eco dos discursos escenificados sobre o Aquecimento Global, através do longa-metragem angolano de 2020, Ar condicionado, de Fradique. Em um contexto no qual uma pandemia imaginária assola o país: a queda dos aparelhos de ar condicionado.
Palavras-chave: Antropoceno, ar condicionado, Angola, ecocrítica, Fradique, saúde, raça, territorialização
Morrer de idade, de velho, morrer depois da expectativa média de vida para os seres humanos no mundo, é um privilégio de alguns. Morrer depois da expectativa média de vida da qual gozam as pessoas dos bairros mais privilegiados dos países mais ricos é uma ilusão. Segundo a OMS, para 2016, a expectativa de vida mundial era de 72 anos e, para a África, de 61.21https://www.who.int/gho/mortality_burden_disease/life_tables/situation_trends_text/en/. Mas dentro dos EUA, na cidade de Boston, a expectativa de vida no bairro Back Bay — majoritariamente um bairro branco — era de 90 anos e, em Roxbury — bairro com mais de 90% de sua população racializada, de acordo com a classificação estadunidense2U.S. Census Bureau, “American Community Survey, 2007-2011 Estimate: Roxbury”, acesso: 20 outubro de 2020, http://bostonplans.org/getattchment/60eb2dc7-61dc-4edc-b608-effba2ec54d0/ — era de menos de 593Galea, “Health and the City”, acesso: 10 junho de 2020, http://www.bu.edu/sph/2015/03/08/health-and-the-city/.. Roxbury é, nesses termos, mais distante de seus vizinhos em sua cidade de que dos habitantes da República Centro-Africana: o país com a menor expect ativa de vida do mundo, 53.3 anos4 https://ourworldindata.org/life-expectancy. Cinco anos de diferença é compartilhar o mesmo futuro. Mais de 30, viver em mundos diferentes. E, neste mundo, há mais de 1.400 milhões de seres humanos que sofrem de fome crônica5Veja o trabalho monumental: Caparrós, Martín, Hunger: The oldest problem, Brooklyn y Londres, Melville House, 2020, p. 351.. O trinômio saúde-raça-território é indissociável. Não por razões ontológicas, mas por um sistema no qual as externalidades, tanto econômicas como ambientais, são limitadas a lugares precisos e corporeizadas em determinadas populações. O epítome dessa disparidade territorial aparece em 1945 com a proliferação do consumo etno específico dos aparelhos de ar condicionado: uma micro territorialização das externalidades positivas (o ar fresco de um apartamento) e uma massificação das externalidades negativas (os gases do efeito estufa).
O discurso hegemônico atual sobre o antropoceno não só provém de loci de enunciação privilegiados e se valida socioendogamicamente, mas também atua como speechact construindo “realidades universais” que logo são replicadas por integrantes de sociedades subalternizadas6 O termo “Speech act” vem da teoria de performance, ver: Schechner, Richard, Performance Studies: An Introduction, Londres y Nueva York, Routledge,2013. Também se utilizará para a perspectiva do antropoceno desde os corpos racializados: Yusoff, Kathryn, A Billion Black Anthropocenes or None, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2018; para os conceitos de “resistência”, “discurso oculto” e “discurso público”: Scott, James C., Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts, New Haven, Yale University Press, 1990; para o conceitos de “assimilado”: Cabral, Amílcar, “Libertação nacional e cultura,” em Cultura em tempos de libertação nacional e revolução social: Amílcar Cabral, Samora Machel e Mário de Andrade, org. Marco Mondaini, Recife, Editora UFPE, 2016 e para o conceito de “cool”: Hind, Emily, Dude Lit: Mexican Men Writing and Performing Competence, 1955-2012, Tucson, The University of Arizona Press, 2019, pp. 146-180.. Assim, do que falamos quando falamos de “fim do mundo”? Como se dividem em parcelas os territórios no discurso institucional? Como se manifestam, por um lado, as resistências dos corpos racializados e, por outro, o conluio do assimilado cool nesse cenário? Ar condicionado (2020), filme angolano que estreou online no quarto mês da pandemia de Covid-19, apresenta algumas respostas. Conforme afirma Macedo: “se eu pelo menos conseguir morrer de idade, já ‘tá bom”7Fradique, Ery Claver, Ar condicionado, dirigida por Fradique, produzida por Geração 80, 2020. Esteve disponível online no YouTube We Are One: A Global Film Festival, de 6 a 16 de junho de 2020: youtube.com/channel/UChMc3c7Xvv6ol1Zv47Ja39A..
Como algo geolocalizado, a guerra ou a fome, o fim do mundo, para a minoria, significa algo mais distinto do que para as imensas maiorias: as pessoas privilegiadas são as primeiras a irem embora quando acontece um “fim do mundo” pontual. Ou melhor, sequer estiveram lá, como no caso dos projetos extrativistas ou da disposição dos aeroportos, aterros sanitários, etc... o que se conhece como racismo ambiental pelos termos ecologistas8 Para a classificação e explicação dos diferentes movimentos ecologistas, incluindo o racismo ambiental, ver: Merchant, Carolyn, Radical Ecology: The Search for a Livable World, Nueva York, Routledge, 1992.. Por isso é que, no discurso hegemônico sobre as mudanças climáticas, fala-se sobre um fim do mundo apocalíptico, para que seja um problema da “humanidade”. Chakrabarty afirma: “Não há salva-vidas aqui para os ricos e privilegiados… Observe a seca na Austrália ou os incêndios nos bairros abastados da Califórnia”9“There are no lifeboats here for the rich and the privileged … witness the drought in Australia or recent fires in the wealthy neighbourhoods in California”. In: Chakrabarty, Dipesh, “The climate of history: FourTheses”, Critical inquiry, Vol. 35, No. 2, 2009, p. 219..
Certamente, se existe um cataclismo mundial, como o meteorito que se chocou em Chicxulub, não haverá botes salva-vidas (pensar nisso como um filme do Titanic é significativo), mas, antes que isso suceda, a ideia do fim do mundo tem a ver menos com um cataclismo e mais, como menciona Siskind, com a dependência “em uma noção supostamente estável de “mundo”... o mundo entendido como a estrutura simbólica que sustentava os imaginários humanistas de emancipação, igualdade e justiça universais”.10 “On a supposedly stable notion of ‘world’ [con] the world understood as the symbolic structure that used to sustain humanistic imaginaries of universal emancipation, equality and justice. In:''Siskind, Mariano, "Towards a cosmopolitanism of loss: an essay about the end of the world." en Siskind. World Literature, Cosmopolitanism, Globality, Eds. Müller, Gesine y Mariano, Vol. 4., Berlín y Boston, Walter de Gruyter GmbH, 2019, p. 206.
Essa noção estável de “mundo”, essa estrutura simbólica que se sustenta na exploração da natureza e dos corpos das pessoas subalternizadas (relegadas à categoria do “inhuman”, como menciona Yusoff)11“Inhumano”. Ver: Yusoff, A Billion Black Anthropocenes, 65., e que, por sua vez, sustenta imaginários pretendidamente humanistas (“a mansão das liberdades modernas se sustenta sobre uma sempre crescente base de consumo de combustível fóssil”, diz Chakrabarty sem ironia)12 “The mansión of modern freedoms stands on an ever-expanding base of fossil-fuel use”. Ver: Chakrabarty, Climate of history, 208. é a que pode acabar para a minoria privilegiada. Esse é o fim de seu mundo.
A importância de abordar essa distinção reside em que a maior devastação do planeta não é causada pela “humanidade”, mas pelas minorias privilegiadas13 São muitos os trabalhos relacionados à diferença de consumo e rastro ecológico dos diversos setores da sociedade. Para uma análise que parte da economia e da ecologia é possível consultar Martínez Alier, Joan, El ecologismo de los pobres, Barcelona, Icaria Antrazyt - FLACSO, 2004. Para uma olhada rápida e divulgadora: https://en.wikipedia.org/wiki/Ecological_footprint. Para um exemplo talvez mais próximo, a pandemia de Covid-19, sobre a relación entre devastação ambiental, território e saúde, ver: Vidal, John, “Destroyed Habitat Creates the Perfect Conditions for Coronavirus to Emerge”, Scientific American, acesso: 22 de maio de 2020. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/destroyed-habitat-creates-the-perfect-conditions-for-coronavirus-to-emerge/.. E são estas que estabelecem os parâmetros da performance e articulam um discurso público que incita o medo. São essas minorias que jogam a carta dupla do macho cool: aqueles que “foram bárbaros” agora se apresentam como “civilizados”14Para o termo “performance” ver: Shechner, Performance Studies, 123; este conceito para questões ambientais resulta análogo ao da construção de fatos em Latour, Bruno, Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade fora, São Paulo, UNESP, 2000. Para a distinção entre discurso ou discurso público e privado ver Scott, Domination and theArts of Resistance, 1-69. Para a distinção entre o conceito de “coolness” na performance de gênero, ver: Hind, DudeLit, 146-180.. Isso está claro em Chakrabarty, historiador indiano: “as mudanças climáticas são a consequência inesperada das ações humanas e mostram, somente por meio da análise científica, os efeitos de nossas ações como espécie... Requer uma ação global”15 “Climate change is an unintended consequence of human actions and shows, only through scientific analysis, the effects of our actions as a species.. It calls for a global approach”, Chakrabarty, Climate of history, 219.. Esta é uma perspectiva edulcorada (“consequência inesperada”), repartidora de culpas (“os efeitos de nossas ações como espécie”), hierárquica (“somente nos demos conta através da análise científica”) e repartidora de responsabilidades (“é necessária uma ação global”); entretanto, quanto se busca salvar a humanidade ou que tanto se busca manter a estabilidade do “mundo” de uma minoria? Mais ainda, dado que esse discurso incide na performance das maiorias e dos assimilados — nas versões de Amílcar Cabral: quem deseja ser como o patrão e quem toma as ferramentas do opressor para subverter o sistema — quais são as margens de resistência possível?16 Utilizarei o termo em português de Cabral para sublinhar a diferença com o uso coloquial da palavra em espanhol, ver Cabral, “Libertação nacional e cultura”, 76. Esse termo é importante porque mostra duas versões do assimilado, diferente do termo coloquial mexicano “malinchista” ou do termo “comprador” de Ngügï, que só apontam aqueles que desejam ser como o patrão. Ver: VéaseNgūgīwaThiong’o, Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature, Oxford y Nairobi, James Curry Heinemann, 1986.
Essas perguntas são colocadas implícitamente em Ar condicionado (2020), longa-metragem dirigido por Mario Bastos, ou Fradique, ao abordar uma necessidade criada, recente, a de condicionar o ar. Os aparelhos de ar condicionado (AC) e de aquecedores definem uma territorialização atmosférica que pode ser pequena como um apartamento ou imensa como um shopping. Também pode ser imaginada como uma rede de nódulos — por universidade, por bairro, por país — com duas populações diferenciadas devido a que o desenho implica a segregação para minimizar o intercâmbio termodinâmico: quem está dentro (as minorias mundialmente privilegiadas) e quem está fora. A “necessidade” dos aparelhos de ar condicionado e aquecedores também é a causadora do maior consumo elétrico doméstico no mundo.17 Os números variam de sociedade a sociedade, mas os picos de consumo elétrico doméstico nas sociedades acostumadas ao uso generalizado de sistemas de ar condicionado e aquecedor – ou seja, as sociedades ricas – sempre ocorrem durante o mês mais frio do inverno e durante o mês mais quente do verão. Para o caso do Japão, porexemplo, ver: Honjo, Keita et al .“Dynamic lienear modeling of monthly electricity demand in Japan: Time variation of electricity conservation effect”, PloS one, vol. 13, no. 4, 2018. E a geração de eletricidade é uma das indústrias que mais contribuem para a produção de gases do efeito estufa18Ver documentos do IPCC em www.ipcc.ch e do IGBP, em www.igbp.net. Então, o que aconteceria se estourasse uma “pandemia” que fizesse com que esses aparelhos caíssem das paredes por todo o país?
Assim começa Ar condicionado. Depois dos créditos iniciais, se define ar por “1. Fluido que envolve a Terra... 5. Aparência, aspecto. 6. Modo)19 Fradique y Ery Claver, Ar condicionado.; condicionar por “1. Tornar dependente de condição. 2. Pôr condições a. 3. Acondicionar”20 Idem, ibidem; por último — ar condicionado como aparelho. As acepções 5 e 6 do ar, unidas às de condicionar, implicam uma releitura da definição do aparelho a partir da dependência recursiva que leva a uma vontade de colocar condições, ou controlar a natureza, e uma necessidade de aparentar dito controle para manter um “modo” ou uma forma de comportamento determinado entre certo grupo de pessoas.
Após as definições, em fundo negro, a voz em off de uma comentarista de rádio indica que são sete da manhã, e logo vemos, em primeiro plano, Zezinha sentada no transporte coletivo sem ar condicionado enquanto a voz em off fala sobre o “aumento de mortos por causa do calor” por todo o país e sobre o colapso dos “ar condicionados”, que a Associação Angolana de Refrigeração, Ar Condicionado, Aquecimento e Ventilação realizou uma chamada ao governo para resolver “esse mistério”, pois suspeita-se de uma conspiração chinesa para vender ventiladores21 Idem, ibidem. Zezinha chega, então, ao seu destino, quase na esquina da Rua Major Kanhangulo com a Calçada Comandante Veneno, próximo à rua Rainha Ginga — ou Rainha Njinga —, onde se filmou quase todo o longa22 As ruas que foram utilizadas como set podem ser vistas na comodidade de sua casa, no Google Maps, Google Earth e outras plataformas cartográficas digitais.
Estamos no centro de Luanda, a alguns passos do Ministério das Relações Exteriores e da Fundação Agostinho Neto; é uma zona abastada e em constante mudança, testemunha da Luanda antiga de edifícios “portugueses” e a nova Luanda de edifícios erguidos por guindaste metálicos. Seguimos os passos de Zezinha em um plano sequência que se inicia quando abrem a porta da van e termina com ela diante de um prédio que tem o muro repleto de ACs, enquanto a voz em off afirma, que no saldo de ontem consta “uma pessoa [que] morreu, três pessoas ficaram feridas e um carro de marca Toyota Lexus estacionado...” que fora afetado. Tudo por causa da queda dos ACs. Corte para: Zezinha e Matacedo, o guarda do prédio onde ela trabalha, estão tomando chá na lavanderia. Zezinha fala do ar “real”, do vento do mar que a faz lembrar de seu pai, quando seu celular toca e se escuta a voz furiosa do patrão perguntando por que ainda não funciona seu AC. Desliga. Pergunta a Matacedo se foi a casa de dona Ana para prestar condolências no velório, ele responde que não, e ela insiste para que ele vá.
Em menos de oito minutos já são claros os pólos da sátira e o ponto de vista. Partimos de repensar o que significa “ar condicionado” para enquadrá-lo em um desejo de controle e aparência. Seguimos com a apresentação do discurso hegemônico que se mostra como um tema que deveria importar a todos, para logo concentrar-se em um grupo particular e invisibilizar as vítimas corporais, carentes de nome, mas destacando a marca do carro de luxo que foi danificado. O ponto de vista se centrará em Zezinha, quem trabalha como empregada doméstica desde que foi tirada da ilha onde morava, e em Matacedo, um homem de meia idade que padece do ouvido por sequelas de guerra (às vezes não consegue ouvir nem dormir), que porta uniforme, mas não armas; que faz as reparações domésticas e carrega as bolsas de mercado dos inquilinos. Seguiremos aos dois tratando de cumprir com a ordem do Dr. Nok, cujo ar condicionado não caiu do prédio (ainda), embora tenha parado de funcionar, por isso manda que o consertem.
O filme não se detém em mostrar os luxos ou o sofrimento da classe alta por ter perdido seus aparelhos de ar condicionado, seu fim do mundo. Mas que nos atentemos à perspectiva de Matacedo e Zezinha, aos seus territórios — a rua, o quarto de serviços, o pátio onde estão os geradores dos ACs –—, os vemos fazendo seu dia-a-dia, sobretudo Matacedo — tomando banho, conversando, passando o tempo com outra empregada doméstica que lhe guarda comida que sobra dos seus patrões e que ele divide com seus amigos enquanto jogam damas sobre a calçada. Não é o cotidiano que imagina o patrão — que se mostra em inumeráveis filmes que romantizam a servidão, desde Gone with the Wind (1939), de Victor Fleming, até Roma (2018), de Alfonso Cuarón — no qual trabalham sem descanso. Mas que mostra esse “discurso oculto” que sempre acompanha o discurso público: as estratégias de resistência através de pequenas mentiras, de fugir do olhar fiscalizador para jogar com os amigos.
Com a mesma economia narrativa se descreve a classe privilegiada: chega o Dr. Nok e pergunta “esta merda não está pronta?”, Zezinha e Matacedo começam a responder e são interrompidos por ele: “eu não quero saber se está tudo a cair ou não. O meu não cai... Aqui mando eu. Fui claro?” A ideologia e a performance ficam claros: é um macho com poder, obcecado por exercer o controle sobre seu entorno animado e inanimado, um individualista para quem não importa o que aconteça no resto do mundo, porque tem a ilusão de que “ali”, no seu mundo, manda ele. Desde a perspectiva de Hind é um macho cool, pois não só é capaz de dizer bobagens, mas também de afirmar coisas sem sentido sem perder o status civilizatório de seu título: é um “doutor”. A partir do que afirma Cabral, o Dr. Nok representa a essa elite assimilada que tem adotado os modos e as necessidades da elite mundial: ele tem que continuar tendo um ar condicionado, ainda que todos estejam caindo a pedaços ou continue o aquecimento global.
O pânico das classes acomodadas é referido só pelas vozes do rádio e da televisão. Estas dizem que o primeiro passo para arrumar o problema é “demitir o governo”, desmontar e recolocar todos os ACs e criar “uma política social que esteja alinhada com as condições climáticas de nosso país”, que já basta de importar “modelos estrangeiros”. Insistem em que, ainda que estejamos “na época mais fria do ano”, a quantidade de mortos segue aumentando. Todos os mortos não têm nome, nenhum morreu pelo calor, mas “as dezoito províncias do país estão em alerta” e se criou uma comissão de vinte especialistas para investigar a queda dos ar condicionados e controlar a onda de calor”. Outra voz de mulher na rádio diz: “boa tarde, vizinha, o que é que você faz sentada frente à minha porta?”. A vizinha está ali, aproveitando o ar fresquinho que sai dos vãos da porta, porque a sua é “um forno”. Então, nos inteiramos de que não é um diálogo espontâneo, mas um anúncio comercial: “diga adeus ao calor da sua casa”.
As vozes do rádio e da televisão sublinham, então, a ideologia e a performance das classes privilegiadas expressas no personagem do Dr. Nok: 1) a catástrofe de alguns se transforma em um alerta nacional apesar de que as condições ambientais sejam as mais favoráveis do ano, o cacimbo; 2) se o governo não consegue manter a estabilidade das classes privilegiadas, é preciso fazê-lo renunciar; 3) se ridiculariza aqueles que estão excluídos dos microterritórios condicionados e 4) se escenifica a apropriação do discurso contestador ao hastear a rejeição aos modelos estrangeiros e afirmar que se buscará controlar a “onda de calor” com políticas sociais.
Matacedo e Zezinha se deslocam por territórios que não têm AC, onde ninguém parece estar morrendo por causa do calor. Assim, percebemos a incredulidade das maiorias diante do pânico dos ricos, “nesta terra prometida [onde] todos os pecadores são santos”. Dita diferença é acentuada quando Matacedo e Zezinha recuperam o ar condicionado do Dr. Nok na oficina de Kota Mino, um eletricista que extrai as recordações humanas dos condensadores dos ACs e os grava em vídeo-cassetes.23Para a consulta de palavras angolanas, como “cacimbo” ver: https://dicionarioegramatica.com.br/publicacoes-fixas/palavras-de-angola/ Matacedo diz: “aqui dentro estão nossas memórias”. Mas ela responde ao ver as imagens de pessoas privilegiadas comendo carne: “nossas com quê?”, nosso bairro não tem ar condicionados. Kota Mino explica que antes nossas memórias caíam das árvores, como as frutas, mas que agora só caem ar condicionados: por isso só têm essas.
O giro fantástico continua por alguns minutos quando Kota Mino explica sua máquina onde “nenhuma de nossas memórias ficará fora”: em um quarto está o esqueleto de um jeep militar sem motor, com cabos e plantas por todos os lados — “as últimas da cidade”, afirma e segue: se algo dá errado, temos as plantas. Escuta-se o hino nacional de Angola e o ar condicionado do jeep liga. Mas funciona somente por um instante, durante o qual Matacedo, por fim, consegue dormir e recordar e ver e ouvir outros momentos da cidade e a música diz “sonho para não esquecer”, até que Zezinha o acorda porque isso é uma loucura, uma estupidez; colocam o AC do patrão em um carrinho de supermercado e saem logo depois que Kota Mino presenteie, como um tesouro, uma semente de casuarina a Matacedo.
Aqui se mostra a outra acepção do assimilado no personagem de Kota Mino, que utiliza as ferramentas da estrutura hegemônica para tentar revertê-la e construir uma máquina que contenha todas as nossas memórias, as memórias anteriores ao ecocídio, não somente aquelas que pertencem às classes privilegiadas que impulsionaram e dele usufruíram. Também, mediante as inquisições de Zezinha como a suspensão do giro mágico, se sublinha a prática de apropriação que parte do discurso hegemônico: o futuro das classes altas é seu futuro, o antropoceno é culpa de todos. E, por sua vez, convida a abraçar a petição que faz Kathryn Yusoff desde o título de seu livro, A Billion Black Anthropocenes or None: a história do mundo, entendendo que “história”, como “história ambiental”, não pode ser reduzida à da maioria ecocida.
Mas quando o filme parece tomar o grave giro da crítica social às classes altas, quando Zezinha, por fim, convence Matacedo de que deve ir à casa de dona Ana ao velório, e ele diz que a dor de dona Ana é a sua dor, que ele sabe o que ela perdeu — diferentemente dessa gente dos bairros ricos —, e Zezinha recalca que não devem ir por “causa desse corpo frio”, mas que “vamos por nós, por nossa causa”, então presenciamos um dos últimos giros da sátira: o velório é para um aparelho de AC que deixou de funcionar, com fotos do artefato em pequenos altares com velas acesas e três mulheres choram diante do “caixão” do eletrodoméstico. Matacedo não chora, nem se aflige.
Assim, Ar condicionado não só problematiza — e satiriza — a ideia do fim do mundo para a minoria privilegiada através do olhar incrédulo das maiorias para quem essa necessidade inventada — o ar condicionado — é uma ilusão, mas também estabelece como essa necessidade é também o desejo de milhões de pessoas. Ter um AC, como metáfora de ser parte da elite e adotar seus modos, é precisamente o temor que sentia Cabral diante do perigo de que os movimentos de libertação nacional fossem cooptados pela minoria assimilada: que se repetisse a história quando outras histórias não são contadas.
Para as minorias, representadas pelo Dr. Nok, esse fim do mundo implica a perda de um modo de vida (de seu imaginário humanista?) e o dessabor causado pela possibilidade de perder o controle do meio ambiente, incluindo os seres humanos e não humanos: “aqui mando eu”. Dito temor incide diretamente no discurso progressista e positivista que encontramos nos debates sobre o aquecimento global: as melhores gestões ambientais têm que partir do grupo etnoespecífico de países privilegiados e, mais particularmente, de certos microterritórios aclimatados artificialmente, escritórios corporativos... Um discurso que, como Dr. Nok, pode usar termos contraditórios como "desenvolvimento sustentável", porque é mais fácil expressar coisas sem sentido e continuar sendo cool do que aceitar que a ideia hegemônica de que "desenvolvimento" carrega o problema que enfrentamos.24 Este temor, tanto de perder o controle do discurso como de perder o modo de vida ao que estão acostumados, e ter que fazer aquilo que faz a imensa maioria das pessoas (por exemplo, lavar os pratos, tem estado presente também na cobertura da pandemia de Covid-19 nos meios etnoespecificamente privilegiados. Veja, por exemplo, Wittenberg-Cox, Aviva, “What Do Countries with the Best Coronavirus Responses Have in Common? Women Leaders”, acesso: 10 de junho de 2020. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/avivahwittenbergcox/2020/04/13/what-do-countries-with-the-best-coronavirus-reponses-have-in-common-women-leaders/#12c5c9b13dec. Ou esta de Bremmer, Ian: The Best Responses to COVID-19 Pandemic”, acceso 14 de junio 2020, https://time.com/5851633/best-global-responses-covid-19/, e esta de Carras, Christi: “Cómolos ricos y famosos están lidiando con la pandemia de Coronavirus”, acesso: 14 de junho de 2020. https://www.latimes.com/espanol/entretenimiento/articulo/2020-03-15/como-los-ricos-y-famosos-estan-lidiando-con-la-pandemia-de-coronavirus.
A irmandade da minoria privilegiada se mascara pela retórica: seu problema é apresentado como algo que nos diz respeito a todos e nos afeta a todos igualmente. Como speech act, o discurso da midiático e institucional estabelece a existência do problema como “os mortos pela onda de calor”. A onda de calor existe, ainda que seja a época mais fria do ano e que as mortes não tenham relação. Assim, ao estabelecer quem são as vítimas e quem não tem nome, implica que quem não tem AC não faz parte do mundo que importa, da raça que importa, e não merece a atenção das instituições. Pior: eles deveriam se sentir privilegiados e se sacrificar, resolver o problema do patrão.
Mas para as minorias — aqueles que só acessam os benefícios do AC em seu local de trabalho, espreitando à porta da vizinha ou, como dona Ana, economizando por anos — esse fim do mundo é o fim do futuro, dos sonhos de progresso econômico que se vislumbra nas torres que constroem a “nova Luanda”. Diante do desastre de um futuro impossível, Kota Mino se resguarda no arquivo de recordações e de plantas. Zezinha na renúncia: “meu maior medo era morrer afogada nos meus próprios sonhos. E Matacedo em uma esperança simples: “se eu pelo menos conseguir morrer de idade, já ta bom”.
Morrer de idade, velho, é a antítese do fim do mundo. Não aos 90 anos de Back Bay, em Boston, ou sequer aos 72 anos da média mundial. Morrer de idade, de velhice, é um privilégio alheio aos 1400 milhões de pessoas que não conseguem comer nem o mínimo necessário, aos residentes do bairro de Roxbury em Boston, algo alheio aos chamados trabalhadores essenciais e alheio aos habitantes de todos aqueles lugares do mundo onde está instalada a economia extrativista, cujos benefícios vão para outro lugar: para cidades com grandes desenvolvimentos. Morrer de idade é privilégio de uma minoria cool. Aquela minoria que Caparrós acusa ao dizer que usa "a humanidade como forma de culpa [que lhes] basta para mandar sacos de grãos, para não se privar de ganhar muito dinheiro, não para buscar o verdadeiro fim do problema".25 Caparrós, Hunger, p. 363. A tradução ao espanhol me foi fornecida por e-mail pelo autor, em 10 de junho de 2020.
No melhor dos casos, como disse Ramón López Castro, para as imensas maiorias racializadas do mundo, “o fim do mundo é sempre o presente”26 Ramón López Castro, videoconferência privada do Conversatorio de Ciencia Ficción, 22 de maio de 2020. . Ou pior, o fim do mundo já passou por nossos territórios e vivemos e nascemos já em um mundo pós-apocalíptico.
CABRAL, Amílcar. "Libertação nacional e cultura." In Cultura em tempos de libertação nacional e revolução social: Amílcar Cabral, Samora Machel e Mário de Andrade, Org. Marco Mondani. Recife: Editora UFPE, 2026, pp. 33-58.
CAPARRÓS, Martín. Hunger: The oldest problem. Brooklyn y Londres: Melville House, 2020, pp. 351-363.
CHAKRABARTY, Dipesh. "The climate of history: Four theses." Critical inquiry, vol. 35, n. 2, 2020,pp. 197-222.
FRADIQUE, y Ery CLAVER. Ar Condicionado. Film. Dirigidopor Fradique. Producido por Geração 80, 2020.
GALEA, Sandro. "Health and the city." Boston University School of Public Health.8 de marzo 2020. Accesso 15 mayo 2020. http://www.bu.edu/sph/2015/03/08/health-and-the-city/.
HIND, Emily. Dude Lit: Mexican Men Writing and Performing Competence, 1955-2012.Tucson: The University of Arizona Press, 2019, pp. 146-180.
LÓPEZ CASTRO, Ramón, videoconferencia privada del Conversatorio de Ciencia Ficción con Luis Felipe Gómez Lomelí. 22 de mayo de 2020.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. London and New York: Routledge, 2013, pp. 132-169.
SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven: Yale University Press, 1990, pp. 1-69.
SISKIND, Mariano. Towards a cosmopolitanism of loss: an essay about the end of the world. Vol. 4, in World Literature, Cosmopolitanism, Globality, by Gesine Müller and Mariano (Eds.) Siskind. Berlín y Boston: Walter de Gruyter GmbH, 2019, pp. 205-206.
YUSOFF, Kathryn. A Billion Black Anthropocenes or None. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018, pp. 1-65.
Luis Felipe Gómez Lomelí | México |
Doutor em filosofia da ciência e doutorando em literatura. Universidade de Kansas, Departamento de Espanhol e Português. Lawrence, Kansas, EUA.