Solidariedade Bla(c)k e indígena
Questionando colonialismo e antirracismo
Michelle Mashuro
| Zimbábue | Austrália |
abril de 2021
traduzido por Rane Souza
A colonização é um processo contínuo. Não terminou quando os povos Bla(c)k1O termo Bla(c)k refere-se às experiências e histórias distintas de povos aborígenes, povos originários das ilhas do Estreito de Torres e demais povos de ascendência africana. Esse termo foi cunhado no contexto de acirrada luta política nas décadas de 1960 e 1970 em que os povos aborígenes da Austrália passaram a se autodenominar negros. (N. da T.) (Fonte: iupress.typepad.com) e indígenas passaram a ter direito ao voto tampouco acabou com a imigração de povos não-indígenas para a Austrália. Ao falar sobre raça, racismo, território e instituições na Austrália, é impossível travar essas discussões sem colocar os povos das Primeiras Nações no cerne da narrativa nesta terra que lhes foi roubada.2O termo gerações roubadas refere-se a crianças de povos aborígenes e povos originários das ilhas do Estreito de Torres que foram tiradas de suas famílias entre 1910 e 1970. Essa política de assimilação foi conduzida pelo governo federal australiano, agências estaduais e missões religiosas. (N. da T.) (Fonte: www.commonground.org.au/learn/the-stolen-generations - acesso em 30 de março de 2021)
A Austrália é um país jovem em comparação aos EUA, cuja colonização foi iniciada há mais de 530 anos. Em comparação, a Austrália tem apenas 250 anos. Existem muitas pessoas indígenas e não-indígenas vivas hoje cujos antepassados viveram os horrores da Austrália colonial e se lembram da geração roubada. A Austrália colonial pode ter apenas 250 anos. No entanto, os povos aborígenes habitam esta terra há mais de 50 mil anos. Logo, são uma das civilizações mais antigas do planeta.
A Austrália colonial pode ter apenas 250 anos. No entanto, os povos aborígenes habitam esta terra há mais de 50 mil anos. Logo, são uma das civilizações mais antigas do planeta
Como uma mulher negra na Austrália, entendo e sei como é ser tratada como o outro. Ser considerada menor por causa da cor da minha pele, textura do meu cabelo ou comida que como. Minha experiência com o racismo na Austrália difere da Diáspora negra ao redor do mundo. Embora, sem dúvida, tenhamos pontos de contato. Conectados em uma trama complexa de temas racistas recorrentes que se enredaram sem esforço para nos colocar uns contra os outros e fazer com que nos sentíssemos inferiores. Raramente, quando se discute racismo, questões pertinentes a colorismo, texturismo e afrofobia são abordadas. Geralmente, ainda que por motivos justos, discute-se a violência policial e os estereótipos atribuídos às mulheres negras.
Porém, pouco falamos sobre como, na escola, como uma imigrante negra, espera-se que você almeje menos, escolha opções de carreira que estão dentro de seu alcance. Não falamos sobre o fato de cabeleireiras negras preferirem que você alise o cabelo porque é mais fácil para elas. Tampouco falamos sobre como a supremacia branca perpetua as classificações com base na proximidade de uma pessoa com a branquitude. Quanto mais próxima da branquitude uma pessoa negra pareça ser, mais ela será tolerada. Pessoas negras, indígenas e de outras minorias étnico-raciais que moram na Austrália há muitos anos desprezam novos imigrantes e dizem que nunca serão tão ignorantes ou mal adaptadas quanto os recém-chegados. Tudo isso em uma tentativa de apaziguar a hegemonia branca.
O racismo é mais profundo que as microagressões do dia a dia ou a falta de recursos para sua comunidade simplesmente porque o governo não se importa o suficiente para fazer algo. A maneira como falamos sobre raça e racismo na Austrália limita-se a como abordamos os problemas com os quais os indígenas têm de lidar desde a chegada do homem branco. Progresso ou libertação para pessoas negras e de minorias étnico-raciais do Sul da Ásia e do Oriente Médio não é possível se os direitos indígenas não estiverem no cerne da discussão sobre racismo na Austrália. Simplificando, não há fim para a discriminação em um país que se recusa a reconhecer efetivamente os crimes de seu passado e continua a cometê-los.
A realidade é que a colonização é um esforço coletivo. Você pode ser, simultaneamente, oprimido e opressor
A realidade é que a colonização é um esforço coletivo. Você pode ser, simultaneamente, oprimido e opressor. Pessoas não brancas que se mudam para a Austrália precisam entender sua posição como colonos em um estado colonial, em terras onde os proprietários originais não detêm soberania. Entenda como suas ações contribuem para a contínua colonização dos povos indígenas, não por culpa dos próprios indígenas; mas, simplesmente, como resultado do sistema. Acredito que uma boa forma de descrever o privilégio é compará-lo a um gráfico de barras. Você tem mais sorte em algumas áreas que em outras.
No caso de pessoas negras e de minorias étnico-raciais do Sul da Ásia e do Oriente Médio que se mudam para a Austrália, temos uma quantidade imensa de privilégios em comparação aos povos aborígenes. Em primeiro lugar, podemos nos dar ao luxo de deixar nossos países de origem e nos mudar para a Austrália em busca de uma “vida melhor”. Os povos aborígenes não têm essa opção.
Pessoas não brancas que se mudam para a Austrália precisam entender sua posição como colonos em um estado colonial, em terras onde os proprietários originais não detêm soberania
Em segundo lugar, existe um imenso privilégio de poder pisar na terra de outra pessoa e chamá-la de lar sem depender da permissão dessa pessoa. Como colonos na Austrália ou mesmo no Canadá, nos EUA ou na Nova Zelândia, as pessoas fazem isso o tempo todo. Construímos um lar em um solo que testemunhou genocídio e gerações de abusos. Atualmente, os povos indígenas têm pouca ou nenhuma voz sobre como suas terras ou seu povo são tratados, recebem cuidados e que futuro terão.Embutido no cerne da Austrália está o racismo e o surto de covid-19 apenas o amplificou. No início de julho de 2020, os moradores de uma torre de habitação pública em Melbourne, Victoria, foram sujeitos a um “bloqueio rígido” perpetrado pelo Diretor de Saúde de Victoria, Brett Sutton.
O governo vitoriano ordenou que os moradores das torres fossem trancados em seus pequenos apartamentos, alguns com famílias de cinco ou mais pessoas compartilhando um apartamento de dois quartos. Incapazes de sair, receber visitas ou mesmo comprar mantimentos. Os moradores só podiam sair de casa para desempenhar trabalho e serviços essenciais. No entanto, muitos dos moradores não eram trabalhadores essenciais e não podiam faltar ao trabalho. Esses esforços deveriam conter a disseminação da Covid-19.
Progresso ou libertação para pessoas negras e de minorias étnico-raciais do Sul da Ásia e do Oriente Médio não é possível se os direitos indígenas não estiverem no cerne da discussão sobre racismo na Austrália
Pessoas que são política e socialmente marginalizadas foram submetidas a medidas extremas sob o pretexto de proteger o público mais amplo de um surto de Covid. Este incidente demonstra como raça e classe socioeconômica foram usados como uma ferramenta para determinar o status de quarentena. Medidas extremas foram tomadas em nome da saúde pública. Contudo, essas mesmas medidas não foram aplicadas a australianos brancos e estrangeiros em quarentena em hotéis. Muitos dos moradores das torres tinham ascendência aborígene, eram pessoas com deficiência, pessoas negras e pessoas de minorias étnico-raciais do Sul da Ásia e do Oriente Médio.
Policiamento ostensivo e vários policiais armados estavam situados do lado de fora dos edifícios para garantir que os moradores e o público cooperassem com o bloqueio. As medidas geraram indignação de moradores, familiares e amigos que não conseguiram ver seus entes queridos. O governo forneceu aos moradores ingredientes vencidos e outros alimentos que não atendiam às necessidades alimentares dos moradores que seguiam regimes alimentares halal3Halal é um regime alimentar prescrito no Corão, livro sagrado da comunidade muçulmana. (N. da T.), vegetariano ou kosher4Kosher é um regime alimentar prescrito na Torá, livro sagrado da comunidade judaica. (N. da T.).
Os procedimentos foram implementados com o intuito de mitigação de riscos. Todavia, apenas expuseram a tolerância do governo australiano e da sociedade à violência e à óbvia falta de consideração para com as comunidades marginalizadas e vulneráveis. Os moradores foram tratados como cidadãos de segunda classe, como pessoas passíveis de descarte, que não eram uma prioridade para o governo vitoriano.
A Austrália falhou em realmente retificar seu passado e reconhecer que precisa melhorar o tratamento dispensado não somente aos imigrantes que chegam ao país mas, também, aos proprietários originais das terras
A Austrália falhou em realmente retificar seu passado e reconhecer que precisa melhorar o tratamento dispensado não somente aos imigrantes que chegam ao país mas, também, aos proprietários originais das terras. É por isso que as atrocidades contra as comunidades sem privilégios são repetidas inúmeras vezes. Sem soberania e justiça para os povos das Primeiras Nações, não podemos esperar empatia e humanidade dos colonizadores que são incapazes de reconhecer seus erros. Em outubro, o Premier vitoriano, Daniel Andrews, ordenou que a Djab Wurrung fosse cortada para dar lugar a uma rodovia. A Djab Wurrung, também conhecida como "Árvore da direção", era uma árvore sagrada para os povos indígenas de Djab Wurrung.
Por meses, as pessoas protestaram contra o plano do governo de derrubá-la e construir uma rodovia. Com cerca de 350 anos de idade, a árvore não estava na lista de proteção estadual e, portanto, não se qualificava para proteção. A derrubada de Djab Wurrung é uma história tão antiga quanto o tempo, ilustrando os esforços contínuos e violentos de colonização e racismo que assolam a Austrália e todos os estados coloniais. Infelizmente, o policiamento excessivo e a profanação de terras sagradas não são incidentes isolados. São os efeitos decorrentes da recusa e da falta de consciência de assumir a responsabilidade pelo sofrimento de milhões.
Os casos da derrubada de Djab Wurrung e do bloqueio às torres de habitação pública mostram ao mundo como a Austrália branca vê os imigrantes e os povos indígenas de forma diferente, mas, em última análise, de forma parecida. São tratados da mesma maneira na medida em que ambos são considerados inferiores à sociedade branca, como se não fossem merecedores de dignidade. Porém, são tratados de formas distintas porque a supremacia branca usa ferramentas diferentes para separar e desumanizar imigrantes e povos aborígenes. Imigrantes são considerados trabalhadores devotados, mais inteligentes e vistos como pessoas em busca de uma vida melhor, por isso abandonam a vida que tinham antes. Indígenas, por sua vez, são considerados o oposto: preguiçosos, pouco ambiciosos e selvagens perante o homem branco.
Esses estereótipos não existem apenas na Austrália, mas, também, no Reino Unido, na África do Sul e nos Estados Unidos. Logo, esses estereótipos resultam apenas em um nível de separatismo que permite que a supremacia branca prospere porque nos diferencia quando somos mais parecidos que os brancos gostariam que percebêssemos. Muitos imigrantes acreditam que indígenas são preguiçosos e se consideram melhores. Essa mentalidade está relacionada a uma tentativa de se aproximar da branquitude para se encaixar e não ser como aqueles que são considerados piores. Mas a piada é que eles / nós nunca seremos como as pessoas brancas. O separatismo é uma ferramenta da supremacia branca para garantir que não usemos nossas diferenças e semelhanças como pontos fortes. Quando tratamos pessoas que são semelhantes a nós como o inimigo, apenas fazemos o jogo dos nossos opressores, destruir uns aos outros é um resultado intencional.
Quando tratamos pessoas que são semelhantes a nós como o inimigo, apenas fazemos o jogo dos nossos opressores, destruir uns aos outros é um resultado intencional
Como uma mulher negra imigrante que cresceu na Austrália, vivenciei o racismo em primeira mão. Sei o que é ser negligenciada, sabotada e ignorada. Testemunhei a brutalidade contra pessoas que compartilham minhas raízes na terra onde passei minha infância. Em minha terra natal, o Zimbábue, meu povo conquistou sua independência dos colonos britânicos em 1980. Meus ancestrais sabem o que é recuperar sua casa depois de tê-la invadida e moldada por outrem ao longo de gerações. Porém, aborígines e habitantes das ilhas do Estreito de Torres não podem dizer o mesmo; eles ainda não provaram o sabor da liberdade.
Um exemplo inequívoco de país incapaz de aceitar e assumir responsabilidades pelas atrocidades de seu passado são os EUA. Os Estados Unidos têm uma longa história de escravidão, ganância capitalista e genocídio que, em última instância, resultou em ponte escola-prisão5A ponte escola-prisão refere-se à tendência observada nos EUA de que números desproporcionais de jovens de minorias étnico-raciais, principalmente, rapazes negros, saem das escolas públicas para ocupar vagas nos sistemas de detenção. Muitos desses jovens têm problemas de aprendizado ou histórico de pobreza, abusos e negligência e se beneficiariam de acesso a serviços educacionais e atendimento psicológico. Porém, eles são punidos, isolados e encarcerados. (N. da T.) (Fonte: https://www.aclu.org/issues/juvenile-justice/school-prison-pipeline ), escravidão moderna e trabalhores que recebem menos que um salário mínimo. Não podemos nos enganar pensando que é possível acessar instituições racistas sem responsabilizá-las por suas atrocidades passadas. O racismo é um comportamento praticado. Ademais, a história provou que os estados coloniais se aperfeiçoaram nessa prática.
"Pois ser livre não é apenas livrar-se dos grilhões, mas viver de uma forma que respeite e aumente a liberdade dos outros."
Nelson Mandela entendeu que a liberdade não é singular, não se limita à opressão da própria realidade. Ele sabia que a verdadeira liberdade e o verdadeiro trabalho significavam libertação e liberdade para todos. Portanto, quando falamos de antirracismo, não devemos esquecer de incluir o povo da terra que ocupamos. Na Austrália, não temos o direito de falar sobre raça sem entender nosso nível de privilégio, mesmo quando nossas experiências são ruins. Não há libertação negra ou justiça para as pessoas negras sem a liberdade e soberania dos povos indígenas seja em solo australiano ou estadunidense.
Quando falamos sobre raça, racismo, território e instituições, devemos nos posicionar da maneira certa e não habitar o vácuo de nossas próprias experiências
Portanto, quando falamos sobre raça, racismo, território e instituições, devemos nos posicionar da maneira certa e não habitar o vácuo de nossas próprias experiências. As pessoas negras sempre estão em desvantagem. No mundo todo, a afrofobia gera afro-pessimismo. Contudo, para começo de conversa, não devemos esquecer o privilégio que temos ao nos instalar e ocupar terras que não são nossas. O fato de sermos sempre os mais discriminados não pode servir de desculpa. Vencer as Olimpíadas da Opressão não nos concederá nossa libertação. Devemos estar cientes de que nossa existência pode ser prejudicial e contribuir para a contínua colonização dos povos das Primeiras Nações.
Quando temos consciência de nossa posicionalidade e dos espaços que ocupamos, isso pode se tornar uma fonte de força. Governos calcados no racismo e no genocídio nunca buscarão fazer o melhor por nós. Enquanto se recusarem a assumir e enfrentar os crimes de seu passado, eles continuarão a prejudicar ativamente nossas gerações futuras.
No mundo todo, a afrofobia gera afro-pessimismo. Contudo, para começo de conversa, não devemos esquecer o privilégio que temos ao nos instalar e ocupar terras que não são nossas. O fato de sermos sempre os mais discriminados não pode servir de desculpa
Os esforços de libertação e direitos humanos não podem depender de promessas vazias do governo. Em vez disso, devemos buscar compreender melhor nossos próprios preconceitos e usar nosso privilégio para ajudar aqueles que, provavelmente, não dispõem dos mesmos recursos.
Na Austrália, as pessoas negras têm o poder e o privilégio de amplificar as vozes e as preocupações dos povos das Primeiras Nações que estão em desvantagem ainda que em diferentes termos. Ajudar aqueles que nem sempre podem ajudar a si mesmos é onde manifesta-se o verdadeiro ativismo e poder. Pois, uma vez que possamos garantir direitos e liberdades para o povo da terra em que habitamos, podemos lançar as bases para um futuro em que haja igualdade real para todos.
Falar sobre raça como uma pessoa negra em terra roubada é complicado; não é possível ter uma abordagem única para os debates. Trata-se de algo enredado à colonização contínua, aos governos da supremacia branca e ao genocídio. Ao compreender melhor a terra em que estamos e os direitos dos proprietários tradicionais, podemos seguir em frente em nome de liberdade e libertação verdadeiras.
Michelle Mashuro | Zimbábue |
Michelle Mashuro é escritora e estudante de psicologia de Brisbane, Austrália. Atualmente, mora em Birmingham, Inglaterra. Quando não está comendo ramen, assistindo TV ou lendo, ela está escrevendo artigos para várias publicações ou trabalhando em seu livro. Michelle espera se tornar psicóloga especializada em relacionamentos, autora de livros campeões de vendas e dominar a arte de ser uma pessoa adulta.
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