literatura e poesia

periferias 6 | raça, racismo, território e instituições

ilustração: Juliana Barbosa

Alicerce

Mari Vieira

| Brasil |

março de 2021

E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados.
João Guimarães Rosa

O vento de hoje anuncia a chegada do ontem. As folhas da mangueira brilhavam intensamente sob a luz da manhã. O voejar das galinhas no poleiro anunciava a bem-aventurança. Nós acordávamos e olhávamos pela janela, abríamos a porta, abelhas zuniam, redemoinhos preguiçosos voltavam-se ao chão. A terra vermelha, fresca da noite, pairava desejosa de pegadas. Meninos e meninas seguiam, a convite da vida, acolhendo o dia que começava. A luz se derramava, acarinhava, nos envelopava e impelíamos a ir. 

O rio era caminho, travessia. Se intenso e caudaloso a ida ficava para outro dia. Observávamos. Se a água cedia espaço às pedras, era possível a travessia. Nas águas e nas pedras as letras que pássaros sapos peixes homens mulheres meninos e meninas liam. Ninguém discutia. A lição era simples e perene. Caudaloso. Bravio. Voltávamos. As janelas que assistiam ao nosso retorno não nos contestavam. Sabiam que à luz de hoje sobrevinha a chuva que ontem se derramou distante. O rio é longo e permeia paragens das quais só temos as notícias que ele traz. Cheio. Vazio. Sujo. Limpo. Muitos galhos. Folhagem intensa. Peixes vivos. Peixes sumidos. Cheiros que não temos. Cor que nos surpreendem. Trazia um mundo e levava o nosso mundo. 

A travessia ficava para outro dia. Aninhávamos nossas coisas. O mundo explodia de vivacidade. No ranger do engenho o anúncio da feitura da rapadura. Da cozinha ela colocava meio corpo para fora da janela e gritava “Aniceto, os menino não foi pra escola, choveu pras bandas de lá”. “Choveu, Ninha”. Os dois gritando para a voz ecoar para além do borbulhar alvoroçado do engenho. Não duvidavam da meninada. A verdade sibilava feito tia benzedeira que cura sem farmácia, inconteste. Alçávamos asas para outros afazeres. No quintal as galinhas pediam milho, eternamente famintas. Os cães pediam atenção, a casa, vassoura, o pião, para rodopiar, uma manga madurinha gritava por apetite, no engenho a rapadura para a gente provar. O dia corria versificado pelos afazeres. 

Do quintal à horta, da horta ao paiol, do paiol ao rio, novamente. Do rio ao curral. Lá por vezes ficávamos um pouco mais. O curral era dividido em repartições, quartos destinados a donos específicos. Debaixo do coberto só bezerros pequenos ou algum animal que estava adoecido. Era espaço de cuidado. Quem ia para lá sabia do misterioso olhar do gado que parecia nos dominar. Desta vez os bezerros estavam todos fortes, crescidos e acompanharam as mães ao pasto. Debaixo do coberto só um novilho sem razão de estar ali. O olho brilhava, parecia dialogar, mugindo manso de tempos em tempos. Queria carinho. Meninos e meninas, sob o sol ardente, gargalhavam possibilidades de fazer arte. Os pés vermelhíssimos anunciavam já atendidos os desejos da terra por pegadas. Travessia. Siricutiávamos para lá e para cá. Voltávamos ao rio que ainda caudaloso trombava mundo abaixo, “É… baixou só um pouquinho”. “Onde será que vai dá?” “Longe, muito longe. ” 

“Cheio desse jeito pode ir para onde quiser”.

 E seguíamos fazendo ensaios para a vida. O novilho continuava lá. Mugindo, querendo a gente, e nós, pipocando pelo mundo doidos de sonhos. Alguém aponta para um ninho de João de barro no alto de uma árvore e sugere. “Vamos ver se tem filhote?” “Eu vou se você montar no Rajado”. Ninguém falou nada. Ficamos, nós quatro, morando no silêncio do desafio. “Se subir, caí e machucar, pai mata nós”. “Se tá com medo nem inventa de subir, porque ai já sobe caindo”. “É nada”. “Eu vou montar no Rajado e você sobe até o João de barro. Depois escolhemos qual de vocês vai fazer o quê”.

Nina foi andando pela cerca, escolhendo o melhor ponto para se jogar no novilho. Gera foi para o ninho do João de barro. Tião e Nena ficaram onde estavam, risonhos de medos e coragens. Nina foi ganhando o novilho manhoso. Gera já estava a meio caminho do ninho. Nina pôs a testa na testa do novilho. O bichinho parecia querer ser montado. Ela se animou e esticou a perna. O bicho assustou e Nina caiu. Nena e Tião também se assustaram. Ninguém gritou. Criança que faz arte e ainda por cima se machuca apanha ─ todo mundo sabia disso. Os dois pularam dentro do curral, o novilho foi para outro lado. Levantaram Nina. “Foi nada, nem se machucou, vem pra cá, depois você tenta de novo”. Nina quase não chorou. Umas duas lágrimas contam mais como força e respiro que lamento.

 Lá do alto Gera gritou, “vem sobe é fácil”. Ninguém foi. Ficaram os três em pé na cerca falando nada. O novilho foi vindo querendo fazer as pazes. Os três levaram as mãos à testa dele. Ele abaixou a cabeça bonzinho. “Tenta de novo, Nina”. Nina esperou. Esperou ele babar na mão dela, uma baba carinhosa. Ela afastou-se dos outros. O bicho foi atrás, querendo pedir desculpas. “Ele gosta de você”. “Gosta, é meu amigo”. Foi rodeando em cima da cerca. Deu uma boa distância dos outros, pôs testa com testa novamente. Acarinhou. E ele foi chegando, encostando o corpo todo na cerca. Nina deitou a cabeça no pescoço dele. Abraçou o quente do pelo dele. Respirou com paciência. Enquanto os outros esbugalhavam o coração de espera. Ele não se mexeu, só coiceou algumas moscas que o incomodavam. Era novilho menino e também queria brincar. Nina esticou a perna muito devagar sobre suas costas. Ele não se mexeu. Ela não se mexeu. Ambos parados, esperando. Ela abraçava todo o corpo dele, enquanto olhava os companheiros com espanto e alegria. Demoraram um tempo. Às vezes, a paz consome silêncio. Os outros dois na cerca, calados, observavam e compreendiam a engenhosidade de Nina. No máximo balançavam as mãos num “vai, vai, vai”, sôfregos da ansiedade pela conquista. Nina foi. Sentou nas costas dele. Ele começou a andar calmante. Nina reinou sobre o novilho o mesmo tempo que um Beija-flor paira ante uma flor. Gera voltou e festejou junto num silêncio profundo e com olhos reluzentes. Medo de que qualquer palavra desmanchasse a conquista. 

“Agora Nena sobe até o ninho e Tião monta no Rajado”. Tião foi caminhando pela cerca. Esticando a mão para a baba do Rajado. Os três em silêncio aguardando o feito heroico de Tião. Nena ficou parada. Gera cochichou: “vai, Nena, sobe, tem dois filhotinhos”. Ela foi. Subiu sem problemas. Lá do alto Nena parou. Contemplou a imensidão, a metideza de Tião que desfilava quase bobo sobre o novilho. Apreciou o bico aberto dos filhotinhos. Ajeitou-se na árvore, apoiou as costas num galho, sentiu-se segura e esticou a mão para dentro do ninho. Levou uma bicada leve. Aguardou com os dedos pretos e magros bem perto do bico deles. Os bichinhos se acalmaram. Ela pegou um e logo o devolveu. Antes contemplou o imenso horizonte azul e soube porque voar. Depois subiu mais uns galhos viu o rio. Subiu outros, viu a casa de Sinhá Santa. Mais alguns e viu um canavial verdinho, uma casa pintada de branco com janelas verdes e ainda mais longe uma casa pintada de rosa. Subiu o que restava de galhos, viu lá no fundo o povoado e nele a escola, depois dela um mundo infinito. Não havia mais galho para escalar. Vislumbrava uma mancha verde, com traços de azul. Possibilidades, que atentada, pela lonjura a esfomeavam. 

Todos colheram suas vitórias. Fecharam as portas dos seus reinos e voltaram para casa. A comida fumegava no fogão. Encontraram pratos cheirosos e afazeres para depois da comida. Louça para lavar, mandioca para descascar, milho para debulhar, lenha para recolher. Sentaram os quatro num canto, os pratos cheíssimos de satisfação. Começaram a cochichar. “Gera desfiou o calção”. “E você? ” “Eu? Só sujei um pouco o vestido quando cai”. “Tião nem caiu”. “O Rajado é manso, Nina só caiu porque ele se assustou”. “Foi mesmo”. “Lá no ninho tem dois filhotes”. “Tem, uma gracinha, eu peguei um deles, só um pouquinho, cê ia gostar, Nina”. “É, ia mesmo. ” 

O pai e a mãe foram chegando para almoçar perto deles. Antes de se sentarem tocaram o cachorro para fora. A voz dos adultos foi ganhando espaço. Bem baixinho, Nina propôs, enquanto acompanhava o aproximar do pai e da mãe, “depois a gente volta lá pra Nena e Gera montar no Rajado e eu subir no ninho”. “Eu não, eu vou é atravessar o rio”. “Cê tá doida, Nena? Tá cheio demais”. “Num é hoje não, é depois”. Pra quê? Pra ir pra escola? “Não, né, só pra isso não."

"É pra ver o mundo”.


 

Mari Vieira | Brasil |

Escritora e professora com mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP. Nasceu no Vale do Jequitinhonha, MG. Tem contos e poemas nos Cadernos Negros e na coletânea Olhos de Azeviche v.2, entre outros.

@amarivieira 

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