Editorial

periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

ilustração: Didi Assis

Os alcances e desafios de um projeto inédito sobre migrações Sul-Sul

abril de 2024

@_mulambo

Periferias 9, Justiça e direitos na migração Sul-Sul, é lançada na esteira do Simpósio Internacional do MIDEQ Hub, realizado em setembro de 2023, na cidade do Rio de Janeiro. A migração entre os países do chamado Sul Global — denominação que reúne os países em posições não hegemônicas, em geral, no sistema econômico e político mundial — é um dos fenômenos mais presentes e, paradoxalmente, mais invisibilizados do contemporâneo. Com efeito, as narrativas sobre migração são hegemonizadas ainda pelas representações, interesses e lógicas do Norte Global. 

Neste quadro, ter realizado um evento desta magnitude no Rio de Janeiro carrega dois aspectos singulares e com forte carga simbólica e material: o primeiro é o fato de o Simpósio do MIDEQ ter como anfitriã a Uniperiferias — um think tank oriundo da favela e fundado por intelectuais e ativistas periféricos. O segundo grande aspecto que marca o evento é o fato de ele contribuir de forma efetiva para fortalecer uma rede inovadora e potente de pesquisadores e ativistas de diferentes países periféricos.

Essa rede está dedicada à construção de novas referências epistemológicas, éticas e políticas no tratamento da questão migratória, que superem as lógicas coloniais e eurocêntricas ainda hegemônicas. Isso porque acreditamos que apenas deste modo poderemos atingir o objetivo central que sustenta nossa caminhada: melhorar de forma efetiva as condições de vida das comunidades migrantes e ampliar as possibilidades de construção de uma humanidade plena, que supere as diversas formas de violência ainda presentes, para quem as barreiras nacionais sejam dissolvidas; que possamos celebrar novas formas de viver.

As conclusões, aprendizados e novos questionamentos da equipe do MIDEQ no Brasil são plurais, com elaborações que demandam diferentes linguagens para serem compartilhadas a partir de uma urgência de comunicar mais. Somam-se a esta edição a publicação do livro Acesso à justiça: reafirmando direitos para as populações haitianas no Brasil — com organização de Heloisa Melino e Ismane Desrosiers —, o documentário Chache Lavi — com direção de Clementino Junior — e a animação A batida não para — com produção em parceria com a produtora britânica Positive Negatives. 

É necessário reconhecer que a experiência dos haitianos ao migrar para o Brasil é repleta de atravessamentos e desafios. Esse é um ponto comum aos migrantes do Sul Global, seja no âmbito do deslocamento Sul-Norte ou Sul-Sul. Esses fluxos trazem à tona uma série de questões complexas que tendem a se tornar conflitivas: desafios (e oportunidades) a partir de uma crescente diversidade identitária, étnica, nacional, religiosa e linguística; intolerâncias diversas; racismo e xenofobia; questões relacionadas à integração cultural e econômica do migrante no país de destino; as representações sobre os sujeitos migrantes e seus países de origem; as formas de reparação ao país de origem pela perda de população com maior grau de qualificação educacional e profissional, entre outras. 

A chegada massiva de haitianos nas fronteiras brasileiras foi não só uma surpresa, um fluxo inédito, mas sobretudo uma oportunidade de o país refletir sobre o próprio racismo — o institucional e o cotidiano —; de sua sociedade e de sua governança migratória. Fez questionar quais princípios orientam o projeto de país para o Brasil — de separação e criminalização, ou de acolhimento, integração e garantia de direitos. São muitos e distintos os recursos que possibilitam a uma pessoa migrante se sentir em casa, ser bem acolhida e ter condições de ter uma vida digna. Entender esse conjunto foi uma das nossas buscas ao longo da pesquisa de "Acesso à Justiça".

 

Heaven Crawley, diretora do MIDEQ Hub e do Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas, traz como ponto de partida para a edição que a compreensão e a prática da  justiça e dos direitos deve ser sistêmica — não restrita ao fenômeno da migração.

Pia Oberoi, conselheira sênior da ACNUDH Ásia-Pacífico, reflete em entrevista sobre as complexidades culturais, étnicas, políticas, religiosas e econômicas presentes nos fluxos migratórios na Ásia, assim como analisa as diferentes aceitações da governança das migrações em relação aos direitos humanos.

Paulo Abrão é atualmente diretor-executivo do Washington Brasil Office, e foi secretário nacional de Justiça do Brasil de 2011 a 2014, quando presidiu o Conselho Nacional para Refugiados. Em entrevista, Paulo compartilha dos bastidores  da governança migratória no país e os efeitos e consequências da migração haitiana para a reformulação da política de migração do Brasil.

A partir da perspectiva jurídica e da governança institucional da migração, Caroline Nalule e Heaven Crawley reforçam a necessidade de três dimensões da justiça: redistribuição, reconhecimento, e representação; leia no ensaio Repensando o acesso à justiça para migrantes do Sul Global.

Música e cantigas, movimento e dança, tecidos e vestes são elementos para explorar a criatividade das linguagens para comunicar novas perspectivas artísticas sobre o trabalho do MIDEQ em torno do Acesso à justiça, escreve em ensaio o ganense Gameli Tordzro.

Zukiswa Wanner — escritora zambiana e com base em Nairóbi — é a fundadora do Festival Afrolit Sans Frontieres e foi editora convidada em Periferias 6 e 8 "Raça, racismo, território e instituições (2021)" e "litafrika: encontros artísticos (2023)". Pessoa central na conexão da Periferias com as literaturas africanas, Zukiswa participa de Periferias 9 com um trecho de seu livro Men of the South (Kwella books, 2010). Homens do Sul (em tradução livre), obra ainda inédita em português, aproxima a masculinidade negra de três homens africanos de três mundos completamente distintos. Mfundo é músico e pai, Mzi é um homem gay casado, e Tinyae é zimbabueano na África do Sul. É sobre Tinyae o trecho que publicamos.

Frankétienne é um dos principais intelectuais haitianos, reconhecido principalmente pela obra escrita em crioulo haitiano. É escritor, poeta, dramaturgo, pintor, músico e ativista do Haiti. No trecho publicado de O monólogo de Piram, peça de teatro nacionalmente conhecida, Frankétienne explora a saudade e o pertencimento haitiano com o fenômeno migratório do sujeito em diáspora.

A poesia da afro-colombiana Rosa Chamorro adentra a migração intra-regional de migrantes colombianos no Chile, em especial em busca de trabalho com a mineração de cobre no norte do país. Ela dialoga com a poesia de Tawona Ganyamatopè Sitholè, educador e poeta da Namíbia que explora sentidos ancestrais da migração com a natureza.

Jailson de Souza e Silva e Richemond Dacilien, pesquisadores da Uniperiferias, resgatam a história do Haiti e colocam em questão uma proposição radical, mas lógica e absolutamente justa para a Revolução Haitiana:  a de ser ela — e não a Revolução Francesa — o marco republicano para o Sul Global. O corredor migratório Haiti Brasil conecta o primeiro país a abolir a escravização das Américas, com o último. À época, as elites brasileiras temiam que a história cruzasse as fronteiras e as pessoas escravizadas no Brasil se inspirassem na luta pela liberdade haitiana.

A fotografia popular, sobretudo sob a perspectiva do Imagens do Povo — projeto do Observatório de Favelas, Rio de Janeiro — é um signo criativo da revista Periferias, principalmente a partir da participação de Bira Carvalho (1970 — 2021) como editor de fotografia da revista, a quem celebramos em memória. O caminho aberto por Bira em 2018 foi retomado em 2022 na edição impressa especial Encruzilhadas do Futuro, e agora tem continuidade nesta edição com os ensaios fotográficos Uma andorinha só não faz o verão, mas duas sim, por Pablo Vergara, e Makamba angolana na Maré, com fotografia de Patrick Marinho e texto de Rodolfo Teixeira Alves. 

A Academia Pérolas Negras se consolidou na cidade do Rio de Janeiro como um time profissional de futebol formado por migrantes, especialmente haitianos. Projeto estruturante, a APN foi criada em  Porto Príncipe em 2009 pela organização Viva Rio. Passados 14 anos, os resultados são evidentes e se torna cada vez mais possível o trabalho profissional com futebol para migrantes. 

A migração haitiana já fez esta a maior comunidade de migrantes no Brasil, mas hoje provém da Venezuela o maior fluxo migratório no país. Pia Riggirozzi, Natalia Cintra, Tallulah Lines e Bruna Curcio, em Recursos visuais são políticos compartilham de trabalho em campo — que se tornou fotolivro — na cidade de Manaus com mulheres e meninas venezuelanas. Centralizar vozes das mulheres deslocadas em relação ao desafios para o cuidado e saúde,  e combate às violências, é um primeiro e passo fundamental para efetivar a formulação e o aprimoramento de políticas públicas para mulheres migrantes no Brasil.

No Estreito de Darién se testemunha uma das mais graves consequências da desigualdade produzida pelo capitalismo. Cruzar a selva do Darién colombiano e panamenho tem se colocado como a rota possível para parte expressiva de migrantes na América Latina — mas não apenas — que buscam migrar para o Norte Global. Apesar de não ser este o fluxo migratório que norteia esta publicação, no Darién os migrantes e atores envolvidos são todos do Sul Global. Igualmente, deverão partir da própria governança da Colômbia, Panamá e demais países da América Latina as estratégias para garantir os direitos essenciais às pessoas que buscam essa travessia. Yolanda Chois Rivera, ativista e pesquisadora colombiana, compartilha sua experiência com a trágica história de cinco ganenses que buscaram a travessia em 2017 com a narrativa Remoção.

A dificuldade para a obtenção de documentação representa um grande obstáculo para o acesso a direitos para migrantes etíopes  na África do Sul — sobretudo crianças —, conforme compartilham Mackenzie Seaman e Henrietta Nyamnjoh em "Mais expectativas, menos direitos". Difíceis condições de moradia para migrantes nepaleses são contrapostas à prática do direito ao  lazer em feriados religiosos muçulmanos como o Eiduma brecha para o encontro e celebração nepaleses em Kuala Lumpur —, contam as narrativas de Seng-Guang e Sheril A. Bustamante, respectivamente.

No Vale do Jordão, a Kafala é um sistema de apadrinhamento de trabalhadores migrantes em contextos rurais que representa enorme obstáculo para o acesso a direitos básicos para a comunidade egípcia na Jordânia, relatam Ayman Halasa, Rawan Rbihat e Hala Abu Taleb.

Periferias 9 reúne um conjunto plural e diverso em proveniência e perspectiva sobre leituras e estratégias para a busca do acesso a direitos e à justiça nas migrações. A Uniperiferias agradece às pessoas que construem está edição, ao MIDEQ Hub e às organizações parceiras pela caminhada comum: Fundação Tide Setubal, Unicef 1Mio, Fundação Heinrich Böll, Instituto Unibanco. Que as vivências, reflexões e proposições aqui presentes contribuam para que possamos perceber o processo migratório em toda sua potência, riqueza e beleza. 


 

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