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periferias 9 | Justiça e direitos nas migrações Sul-Sul

foto: Patrick Marinho

Makamba angolana na Maré

A pequena Angola é parte da constante reafricanização da cidade do Rio de Janeiro

fotografia por Patrick Marinho | texto por Rodolfo Teixeira Alves

| Brasil |

setembro de 2023

Fluxos populacionais formaram territórios simbólicos na cidade do Rio de Janeiro ao longo de sua história. E eles foram muitos, mas o principal desses fluxos, obviamente, foi o tráfico de africanos que durou do século XVI ao XIX e fez do Rio de Janeiro o maior porto escravista das Américas. 

Na segunda metade do século XIX, um fluxo de baianos somado a outros grupos sociais formou, na região central da cidade, um território simbólico denominado pelo artista Heitor dos Prazeres como “África pequena”. Daí que o nome pequena áfrica colou e passou a representar ajuntamentos urbanos cuja população local é de maioria negra, formados por africanos ou não.

Nos anos 1980, por exemplo, no bairro Lapa se formou uma pequena áfrica por conta do fluxo de estudantes de diversos países africanos, como Guiné Bissau, Angola e São Tomé, que vinham, por meio de acordos de intercâmbios, estudar nas universidades cariocas. Essa população africana, de maioria estudante, costumava se reunir em restaurantes e bares da região, sobretudo no D’África, que foi um importante espaço de sociabilidade africana e negra nas noites cariocas dos anos 1980. É prática comum, nesses locais, a formação de empreendimentos, como bares e restaurantes, que possibilitam o encontro e uma conexão, ainda que simbólica, com seu país de origem, através da música, da comida, do encontro com seus compatriotas.

No conjunto de favelas da Maré, nos anos 1990, também se formou um território africano que continua colaborando com a história multicultural da cidade do Rio de Janeiro. A pequena Angola, ou bairro dos angolanos, é como popularmente chamam a região em que se concentra a comunidade migrante angolana nas favelas Vila dos Pinheiros e Salsa e Merengue.

A construção da Maré como um território multicultural é parte da história da cidade do Rio de Janeiro. Essa construção foi feita por diásporas diversas, pelo cruzamento de grupos sociais e étnicos ao longo dos anos

Segundo o Censo da Maré (2019), produzido pela Redes da Maré, em todo o conjunto de favelas vivem 195 angolanos. Apenas na Vila dos Pinheiros são 56 pessoas, ainda que o próprio censo dê conta, entretanto, que esses dados podem ser subnotificados. Na experiência de quem vive no território, a presença angolana é simbolicamente  mais expressiva. Mesmo considerando apenas os dados notificados, entre a população estrangeira, a angolana é a maior, seguida pela portuguesa, com 24 pessoas contabilizadas pelo Censo.

A construção da Maré como um território multicultural é parte da história da cidade do Rio de Janeiro. Essa construção foi feita por diásporas diversas, pelo cruzamento de grupos sociais e étnicos ao longo dos anos.

Pessoas que se deslocaram de outras regiões do Brasil e de outros países, motivadas por projetos individuais ou familiares e/ou por razões econômicas, políticas e sociais.

Os mais de 20 anos de fluxo de angolanos também se inscrevem na história mareense com a pequena Angola. Além dos aspectos culturais que impactaram o território, essa população também ajudou a consolidar a economia local por meio da formação de comércios e espaços de sociabilidade.

Foto: Patrick Marinho | Imagens do Povo

Encontro com os amigos

Celso Marcos Pedro Miranda, conhecido como Fidel, é um dos moradores angolanos na Maré. Na perspectiva de Fidel, a comunidade angolana vem diminuindo. Fidel já conviveu com um “montão” de seus compatriotas na Vila dos Pinheiros. Nos últimos anos, ele viu algumas dessas pessoas migrarem para os Estados Unidos e Portugal em busca de outras oportunidades de vida.

Fidel chegou ao Rio de Janeiro no dia 03 de abril de 1996. Ele tinha 19 anos quando decidiu seguir os passos de seus amigos, deixando Luanda rumo ao Rio de Janeiro, sozinho. Havia nos 1990, em Angola, um fluxo migratório constante motivado pela guerra civil que durou até 2002. Estima-se que aproximadamente 600 mil angolanos migraram, motivados pelas crises políticas e econômicas que impactaram o país.

Nesses 26 anos morando na Vila dos Pinheiros, Fidel constituiu família e hoje tem três filhos: Ingrid, Davi e Julio. Seu primeiro trabalho no Rio de Janeiro foi como vidraceiro. Em Luanda, estudava e eventualmente ajudava um amigo em trabalhos de marcenaria e serralheria. Trabalho, trabalho mesmo, ele contou, foi quando chegou no Rio de Janeiro, com a vidraçaria. Isso durou cerca de cinco anos, até abrir seu primeiro bar, o Travessa da Fé, no início dos anos 2000. 

No começo, o bar ocupou um imóvel alugado. Depois, Fidel mudou para a loja em frente, que ele construiu ao longo dos anos. Um bar conhecido como Adega dos Angolanos, que funcionou por 15 anos na divisa entre as favelas Pinheiros e Salva Merengue. O Travessa era “o bar mais famoso daqui”, afirmou. Há um ano seu bar funciona num trailer, na mesma rua da favela, onde segue servindo comidas e bebidas para seu público, composto por angolanos e brasileiros.

Hoje, no novo espaço, Fidel diz que tem mais tranquilidade e que, embora o movimento não seja tão grande, dá para garantir o arroz com feijão de seus filhos. Em seu antigo bar, sexta-feira era o dia da semana em que a muvuca de angolanos se reunia para comer e beber. Ali se dava a opção de comer um prato típico de Angola, como funge ou mufete, que Fidel servia com feijão de óleo de palma, aipim, banana da terra, farinha, molho à campanha e peixe.

Seu trailer fica na esquina, na entrada de um beco. A decoração do espaço privilegia o vermelho; tem os escudos dos times de futebol do Rio desenhados. No centro da parede, as bandeiras de Angola e Brasil juntas, simbolizando que aquele espaço une os dois países. Com 26 anos como residente no Brasil, Fidel agora está dando entrada no requerimento de naturalização brasileira. Ele busca obter o passaporte brasileiro. Diz ser ele mais fácil de  obter um aqui do que enfrentar a burocracia angolana.

Desde que chegou na Vila dos Pinheiros em 1996, Fidel nunca mais voltou para Angola. Pesa o preço da passagem, que ele estipula em totalizar 10 mil reais de custos para viajar a Luanda. Com esse dinheiro, disse, seria melhor investir na construção de um kitnet na Vila dos Pinheiros. 

Em 2010, seu irmão visitou e adorou o Rio de Janeiro. Mas é pela internet que ele mantém contato com seu país de origem, recebe notícias de seus parentes e fica sabendo sobre os acontecimentos de Luanda. Ele é crítico aos governantes de Angola. Para ele, seu país não vive uma democracia: ainda é necessário conquistá-la.

Fidel é da primeira geração de angolanos a chegar à Vila dos Pinheiros em meados dos anos 1990. Naquela época, ele conta, as pessoas vinham sozinhas. Foi aos poucos que esse “bairro de angolanos” foi crescendo. Aqui, algumas pessoas investiam em empreendimentos, como bares, padarias e lan houses — um tipo de loja, hoje extinta, famosa no começo dos anos 2000 por oferecer acesso a computadores com internet.

Nesses últimos anos, Fidel viu muitos dos seus compatriotas partirem e poucos chegarem na Vila dos Pinheiros. Para ele, o Rio é uma boa cidade, mas trabalho por aqui é difícil, e por isso as pessoas estão considerando outros países e cidades para viver.

Fidel por enquanto continua onde sempre esteve nos últimos 26 anos. Na Vila dos Pinheiros que ele viu crescer; na favela que ele formou família e criou seus filhos. Segue investindo em seu bar, que às sextas-feiras ainda reúne pessoas do entorno para comer e beber, ouvir música de todos os ritmos, como pagode, funk, hip-hop e alguns ritmos angolanos. Entre as opções gastronômicas que oferece, prevalecem as comidas brasileiras, que tem o arroz com feijão como base. Mas se chegarem lá e pedir o mufete — se tiver peixe —, ele faz.

Prestes a completar um ano no novo espaço, seu objetivo agora é dar um nome ao bar. Fidel pensa em um nome tradicional, africano. Falou em Ku-di-sanga kua makamba, frase em quimbundo que pode revelar sua escolha. Traduzida, seria o Encontro com os amigos.

Foto: Patrick Marinho | Imagens do Povo
Foto: Patrick Marinho | Imagens do Povo
Foto: Patrick Marinho | Imagens do Povo

In my hood

Nizaj é cria do Salsa e Merengue, favela vizinha da Vila dos Pinheiros e Vila do João. É lá, na Rua C, que ele escreve seus raps que "dão o que falar até no meio do Congo". É o que diz sua música in my hood, que fala do sorriso das pessoas do Salsa e Merengue e das correria da vida de um favelado.

Nizaj é o nome artístico de Nzaje Vieira Dias, músico, ator e percussionista. Nizaj é angolano, da capital Luanda, mas mora na Maré desde os 2 anos de idade, quando veio de Angola com sua família, em 1999. Hoje, com 25 anos ele vem investindo na sua carreira musical, em parceria com seus colegas da coletivo Black Owl Record — gravadora que funciona na Maré.

“Eu sou Luanda e também sou Rio” é como Nizaj se apresenta, um Mc Angolano, cujo flow evidência a confluência de sotaques que caracterizam suas músicas. Suas letras apresentam as vivências de Nizaj e canta a Salsa e Merengue que é o seu lugar de enunciação e imaginação de mundo. Ele é cantor dessa pequena angola que se formou na Maré. E é no Salsa que ele encontra acolhimento e se reconhece nessa comunidade angolana que, como ele canta em in my hood, "mais de 5000 pessoas que já tomaram o espaço todo".

 

Foto: Patrick Marinho | Imagens do Povo

in my hood | Nizaj
Diversidade que comanda
Eu sou Luanda e também sou Rio

Olha o meu povo como é que anda
Só de ver eles, mano eu sorrio
Não me pergunte sobre wakanda cheguei aqui não foi de navio
Essa história que nunca desanda 21 anos dentro do Brasil

Brota pra ver, que engraçado
Olha os colégio estão levantado
Várias crianças num fut bolado
Tem até piscina e as casas do lado


 

Patrick Marinho | BRASIL |

Nascido e criado na Maré, no Morro do Timbau. Patrick fotografa de modo independente desde os 18 anos, pesquisando o cotidiano dos moradores locais com ênfase nos trabalhadores informais.

@commarinhoo

Rodolfo Teixeira Alves | BRASIL |

Antropólogo e fotógrafo radicado no Rio de Janeiro.

@rodolfotalves

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