raça, racismo, território e instituições
por Zukiswa Wanner
março de 2021
Hoje é 19 de janeiro, ano 2021, quando começo a escrever este texto. Na maior parte dos Estados Unidos ainda é dia de Martin Luther King. Hoje é também o dia em que seis anos atrás, no Quênia, de onde escrevo, crianças do fundamental foram atacadas com gás lacrimogênio. Motivo? Esses jovens cidadãos protestavam contra a tomada da área do parquinho da escola para a construção de um estacionamento de hotel de algum Chefão. Tanto as crianças quanto e o Chefão são cidadãos no país. Mas, incumbidos da escolha pelo certo ou errado, a instituição da polícia escolheu o errado e o rico em vez do certo e do pobre.
Durante o #blacklivesmatter, na esteira da morte de George Floyd, um amigo postou no Facebook "Quando você percebeu que vidas negras importam?". Eu interpretei como se quisesse dizer "quando foi que percebeu que você era considerado menos quê?
Dois anos de idade.
Foi nisso que pensei primeiro. Tive de ligar para minha mãe na Austrália para checar se isso eu não estava imaginando. Que isso eu não tivesse imaginado. Ela me disse que não. Eu estava com minha mãe. Uma ativista política da então Rodésia, exilidada na Zâmbia, conheceu e se apaixonou por um ativista sulafricano que me conceberam e a mim deram vida.
Dois anos de idade.
Minha mãe decidiu atravessar comigo até a então Rodésia, hoje Zimbábue, para que meus avós pudessem me ver pela primeira vez. Minha mãe é a primeira filha numa família de oito, então significava muito essa viagem. Ela não conseguiu, apesar de tudo. Pega cruzando ilegalmente, foi presa. E ali reside meu trauma. Lembro de chorar enquanto aquela policial rodésia branca não parava de empunhar seu tórax, questionando-a com perguntas, minha mãe tentando me manter quieta enquanto também respondia ao interrogatório.
Nossa fiança veio pelo meu avó, com ajuda dos camaradas ativistas políticos da minha mãe que estavam pelo país. Mas, até que completasse dez anos, as pessoas brancas me aterrorizavam, assim como eu acreditava que todo mundo falava inglês. Com muita dureza, assim como aconteceu com a policial que interrogou minha mãe.
Doze anos de idade.
Finalmente superei a desconfiança de criança e, na escola, conosco temos algumas pessoas brancas. Dentre as amigas está Charlie. Charlie tem a minha idade, apesar de estar uma série atrás. Ela mora na minha rua. Juntas a gente se diverte muito. Compartilhamos histórias sobre os garotos de quem a gente quer paquera. Juntas a gente volta para casa. Charlie e eu vamos ao quarto da minha mãe e brincamos com sua maquiagem e porta-jóias. Mas aí é que está: eu nunca estive dentro da casa de Charlie. Quando vou até sua casa, no portão fico à sua espera, chamando-a. Ela então aparece e aí vamos para a minha casa.
Um dia chego a seu portão, no mesmo momento em que chega Pierre, seu irmão. "Por favor, avisa a Charlie que estou aqui?", eu peço. E ele atende: "Charlie, sua amiga kaffir está aqui". Na África o Sul, kaffir equivale a nigger, pejorativo para pessoa preta. Escuto a mãe de Charlie dizer: "Pierre, vai lá e pede desculpa. Ela pode ter te escutado, você fala muito alto." Charlie corre ao portão antes que viesse o irmão: "Pierre está vindo para se desculpar. Por favor, só fala que está tudo bem". E eu pergunto a ela porque o Pierre se desculparia. Ela não diz. Eu saio de lá. Doze anos e eu percebo que Charlie não é minha amiga.
Dezenove anos.
Los Angeles. Meu voo desde Londres chega tarde a ponto de me fazer perder o voo para o Havaí, para onde ia fazer faculdade. Tenho que dormir na Cidade dos Anjos. Percebo rapidamente que esses anjos comigo não se parecem. Check-in na minha acomodação, onde está fechado o restaurante. Pergunto à recepcionista onde conseguir comida. Tem pizza do outro lado da rua, que eu atravesso. E percebo, ao chegar na pizzaria, que não tinha o dinheiro suficiente (estava então na minha fase vegetariana). Decido voltar para buscar mais dinheiro. Assim que deixo a pizzaria, alguém me grita um "hey". Acelero meu passo.
Esse é meu primeiro dia na América. Prestes a ser furtada. "Hey" de novo grita a pessoa. Mais ainda acelero meu passo. Na sequência um homem me agarra. Um policial. Me sinto aliviado. OK. Pelo menos é um policial. Mas dura pouco meu alívio: ele me perguntou se eu carrego drogas comigo. Digo que não. Ele vasculha meus bolsos e só encontra meu passaporte e o dinheiro insuficiente que carregava comigo. "Vaza, não quero te ver por aqui de novo", ele diz. "Mas senhor", eu digo pensando racionalmente: "Você vai me ver de novo. Fiquei sem comer nada e vou voltar depois que pegar mais dinheiro". Ele me olha como se fosse eu a pessoa mais louca que ele jamais teria conhecido. "Ah é? Tá bancando a espertinha?". Ele me algema, a contragosto do colega, e me coloca dentro da viatura. Ao chegar na delegacia, me revistam de baixo a cima. Me fazem espaçar minhas nádegas. Tenho dezenove anos. Sempre respeitei as leis. Nunca tanta humilhação assim na minha vida eu sofri.
Eu vou fazer 45 neste ano.
Se eu fosse escrever cada humilhação a qual fui submetida por conta da cor da minha pele, em diferentes continentes, incluindo o meu próprio.
Se eu fosse mencionar as revistas aleatórias em aeroportos, apesar de ter passado por todos os processos de visto.
Se.
Eu escreveria muitos livros.
É uma honra editar como convidada a Periferias 6, Raça, racismo, território e instituições. Se o que você leu acima sobre minhas experiências te deixa triste, então não é no planeta terra que você vive, ou foi você que escolheu a cegueira diante do muito que acontece às pessoas negras ao redor do mundo. Que algo esta edição possa fazer para abrir seu olhar e te fazer não apenas questionar porque o racismo institucional resulta nas mortes de João Pedro Matos Pinto pelas mãos da polícia no Brasil, ou Augustina Arebu, morta pelo conhecido Esquadrão Especial Anti-Roubo (SARS) da Nigéria, ou Collins Khosa, morto em seu quintal por soldados na África do Sul — mas que tenha você efetivamente trabalhando contra esse racismo institucional.
Também espero que esta edição possibilite a seu público leitor não negro ver a interseccionalidade entre etnicidade, racismo, pobreza e território. Ressoando algumas das experiências daquelas pessoas que trabalharam conosco nesta edição, colombiana Maryuri Mora Grisales reconta seu trabalho na Sur 28. Esse é apenas um dos tantos textos que esperam sua leitura. Preste atenção e reflita quando Bob Controversista chama ao desafio a esquerda brasileira para ser melhor na esquerda e menos liberal em Na moral: progressistas e antirracistas, que tal ampliar o debate? Segure o fôlego sabendo o que já sabe sobre o tratamento a corpos negros quando mandam Nélio descer do ônibus por parecer suspeito em Pastor Alemão, de Utanaan Reis. Caso não conheça, que abra seu olhar para a luta curda por Zozan Sima, e entenda a interseccionalidade na se luta contra o racismo como mostra Mariam Barghouti em seu ensaio sobre a Palestina.
Merdi Mukore em seu ensaio nos mostra paralelos entre o racismo na França e o etnocentrismo em sua República Democrática do Congo. No conto de Howard Meh-Buh Maximus, dois jovens da mesma região de Camarões acabam encontrando dois diferentes destinos. Também vemos como de fato há instituições e nações que forçam a narrativa do "melhor negro" (geralmente expatriado vindo de um outro país) como apresenta Michelle Mashuro em seu ensaio sobre a Austrália. Também, há instituições geridas por pessoas negras, sob governos negros, que terão respeito zero a seus cidadãos negros (escolha qualquer país em África ou no Caribe e vão sobrar histórias da brutalidade policial contra cidadãos ou da corrupção corporativa do governo à custa dos cidadãos).
Na África do Sul, onde nasci, ativistas não negros pelos direitos animais fazem muito barulho sobre os mais negros membros da sociedade que sacrificam animais por convicções espirituais. Leia sobres os paralelos entre o racismo e protestos parecidos a esse na entrevista conduzida por Silvia Souza com o renomado jurista brasileiro Hédio Silva Júnior.
É de partir o coração ver a fotografia da favela Vila Autódromo resistindo às remoções para as Olimpíadas de 2016, assim como é a tragédia de Brumadinho em 2019. Memória congelada em imagens. Mas esta edição também transborda beleza. Ano passado, a exposição Origens #3, Festival Pangeia, foi realizada virtualmente, trazendo artistas a quem talvez nunca teríamos acesso: Cauã Bertoldo, Ione Maria, Isabella Alves e Cassimano, que compõem a exibição. Que você possa revê-los nesta edição de Periferias com resenha em que a curadora nos conta mais sobre a exibição. Luana Galoni desafiadoramente nos lembra como a negritude é vista a partir do outro:
Ao meu amor retinto
meu amigo retinto
meu autor retinto
meu pintor retinto
meu pai retinto,
eu os queria fazer só pai
só pintor
só autor
só amigo
só amor
Foi quando pensei: bravo! Que possamos viver para ver o tempo em que nós poderemos apenas ser. Até lá, entretanto, para as pessoas negras, que são e sempre tem sido meu público principal, desejo que esta edição mostre a pluriversidade das nossas experiências, mas igualmente, onde seremos aliados quando somos nós as pessoas em condição de poder e de tomar decisão. Que possamos chegar a esse tempo que não tenhamos que constantemente nos encolher para aparecer não ameaçadores. Que possamos viver para ver um mundo em que, parafraseando Martin Luther King, nós, nossas filhos, as filhas e filhos de nossos filhos não sejam julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo de nosso caráter. Mas se isso não ocorrer, que saibamos que nós temos um mundo de irmãos e irmãs negras, mas, também, de irmãos e irmãs não negras, e que somos parte deste mundo de irmãos e irmãs negras, e também de pessoas não negras, que amplificarão a voz de cada um e cada uma quando houver injustiça.
Quando o incansável editor executivo de Periferias, Daniel Martins, um homem que um ano atrás eu não conhecia, mas que se tornou uma caixa de ressonância e um irmão, me convidou para editar esta edição, disse sim porque eu gosto dele. Hoje, me sinto honrada por ter editado Periferias 6 como editora convidada, pois isso me abriu ainda mais os olhos para as similaridades das nossas experiências. E meus olhos foram capazes de se abrir mais ainda, assim como espero que aconteça com vocês, pois é brilhante a equipe de pessoas tradutoras que traduziram entre o Francês, Portugês, Espanhol e Inglês. Para que quem fala apenas uma dessas línguas possa entender toda a edição: Ana Rivas, Déborah Spatz, Edmund Ruge, Gabriela de Sousa, Jackson Schimidiek, Jemima Alves, João Calixto, Karla Rodrigues, Karolina Mendes, Laura Faria, Lemuel Robinson, María Ortiz, Mariana Costa, Rane Souza, Stephanie Reist e Tainá Almeida. Se há alguma monotonia nas palavras, isso Juliana Barbosa brilhantemente quebra com suas ilustrações e colagens. A editoração de imagem contou com a ajuda essencial de Felipe Moulin, enquanto Paloma Calado cuidadosamente diagramou entrevista, ensaios, contos, poesia, fotografia e arte nas quatro edições traduzidas.
Thank you, Gracias, Merci, Obrigada a todas as pessoas dessa equipe pelo excelente trabalho.
E para você — leitora, leitor —, que leia, veja, e reflita. E com a edição lida, que você possa ser humano diferente, determinada e determinado a mudar o mundo em que vive em qualquer pequena dimensão pela justiça social e racial. Assim foi com quem contribuiu nesta edição.
A luta continua.
Em solidariedade,
Zukiswa Wanner
Revista Periferias é uma realização da UNIperiferias e Fundação Tide Setubal, que agradecem às autoras e atores que participam desta edição, e aos parceiros da Revista: Itaú Social, Instituto Unibanco, Fundação Heinrich Böll, Observatório de Favelas, Afrolit Sans Frontieres, Oxfam Brasil, Instituto Pensamento e Ações em Defesa da Democracia — IPAD, Global Grace, Universidade de Dundee, Centro de Estudos Sociais de Coimbra, e MIDEQ — Centro de Migração, Desigualdade e Desenvolvimento do Sul-Sul.
Revista Periferias agradece, também, a Saulo Padilha, Letícia Coelho, Festival Pangeia e Exposição Origens, Hugo Dourado, e Bira Carvalho, pela contribuição no desenvolvimento desta edição.