Entrevistas

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

ilustração: Theo Carles

Kenarik Boujikian

Alternativas à cultura punitivista do judiciário brasileiro

por Cristiane Checchia

| Brasil |

julho de 2022

Neta de sobrevivente do genocídio armênio, Kenarik Boujikian nasceu em Kessab, Síria, em 1959. Imigrou para o Brasil com a família, aos três anos de idade, onde viveu a maior parte da infância em São Paulo e uma  parte em São José do Rio Preto. Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), desenvolveu sua carreira como juíza e desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde se aposentou em 2019.

Importante defensora dos Direitos Humanos, Kenarik Boujikian foi uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade que há mais de 30 anos atua em defesa da democracia, da dignidade da pessoa humana e pela democratização interna do Judiciário. Na AJD, integrou o grupo de trabalho e estudos Mulheres Encarceradas, que atua no sentido de denunciar os efeitos da política de encarceramento, especialmente sobre as mulheres, e apontar alternativas para dirimir o problema.

Em entrevista para a Periferias, realizada em novembro de 2021, Kenarik analisa criticamente o papel que tem exercido o judiciário como condutor do sistema de violência que impera na sociedade brasileirae que fragiliza ainda mais a população mais vulnerável e exposta aos efeitos do racismo, do patriarcado e da pobreza. Sua trajetória incansável e militância junto a outros defensores dos Direitos Humanos, contudo, seguem nos inspirando a buscar alternativas para um mundo mais fraterno e solidário, onde todas e todos tenham respeitada a garantia de seus direitos.


O encarceramento massivo e seletivo atinge a população mais fragilizada no Brasil. Sabemos como isso se relaciona com as questões do racismo, do patriarcado e da pobreza estruturais no país. Infelizmente, propostas para pensar o desencarceramento ainda geram muita desconfiança: as prisões ainda são vistas no senso comum como solução para inúmeros problemas, os mais variados possíveis. A sociedade aposta na prisão como solução para problemas extremamente complexos. Por que haveria tanta resistência em pensar em alternativas?

A sociedade enxerga, historicamente, a prisão como única solução para a prática de crimes. Essa é a trajetória do Brasil. Isso aparece sempre reforçado pela imprensa. O aumento da pena vem nessa esteira, sempre apresentado como solução. Existe um engano da própria sociedade quando isso se coloca, seja pelo legislativo, que elabora leis mais duras, ou pelos meios de comunicação. Assim, toma forma um discurso único que perdura há muito tempo, anos e anos, séculos, no Brasil. Romper com isso é muito difícil.

É mais cômodo jogar as pessoas para dentro de uma prisão. Isso é não fazer nada. É como se o Estado abdicasse do que é absolutamente necessário para termos realmente uma política de segurança para os cidadãos

Ainda na faculdade, nós tivemos que ler o famoso livro Dos delitos e das penas, do Beccaria, do século XVIII, que já dizia que não adianta aumentar a pena. Depois, eu acabei vivenciando isso, porque sou operadora do direito: fui juíza e presenciei o boom do sistema carcerário, com a lei de crimes hediondos.

Por que não pensamos em alternativas?  Porque é mais cômodo jogar as pessoas para dentro de uma prisão. Isso é não fazer nada. É como se o Estado abdicasse do que é absolutamente necessário para termos realmente uma política de segurança para os cidadãos. E nesse discurso, a imprensa exerce um papel fundamental. E não só: a esquerda é punitiva também. Basta ver vários projetos de governança criminal que tivemos quando os governos progressistas estiveram no poder.

Recentemente, uma mulher, mãe de cinco filhos, pobre e assolada pela fome, foi presa em São Paulo, acusada de ter tentado roubar em um supermercado dois pacotes de macarrão instantâneo para alimentar seus filhos. Depois de ter sido condenada em duas instâncias, sob a alegação de reincidência e periculosidade, essa mulher permaneceu presa por duas semanas, até que um juiz revisasse seu processo. O que dizer da invisibilidade desses casos, desses corpos, dessas vozes? A senhora diria que seu caráter é sintomático do funcionamento do sistema penal brasileiro?

Esse é um dos retratos do sistema prisional. Como podem achar que uma mulher que praticou essa subtração precisa ficar presa para a garantia da segurança da nossa sociedade?  Isso é um delírio.

Esse caso é absolutamente chocante, mas revela um pouco desse jogo das pessoas que estão no sistema. O que passa na cabeça de uma juíza que enxerga perigo social em razão desse furto, um juiz que deixa uma mulher com cinco filhos dentro de uma prisão? E não foi só uma juíza, pois após a primeira instância, houve recurso e o caso foi para o Tribunal de Justiça de São Paulo. Depois, a defesa teve que recorrer ao STJ, que é mais uma instância, para conseguir reverter. A juíza colocou com todas as letras, em sua decisão, que essa mulher, que subtraiu suco Tang, Coca-Cola e miojo, colocava, em liberdade, a ordem pública em risco, agravando a instabilidade no país.

Penso que essa situação dramática revela quanto o judiciário só está aberto para as pessoas empobrecidas para abrir a porta da prisão, como se lá encontrassem justiça.

O Sistema de Justiça e todos os outros direitos que temos previstos na nossa Constituição não se conectam em nenhum momento para que pessoas empobrecidas acessem direitos básicos como saúde, educação, moradia. Para todos esses direitos, as portas estão fechadas, mas para que entrem para prisão, as portas são escancaradas

O judiciário, o Sistema de Justiça e todos os outros direitos que temos previstos na nossa Constituição não se conectam em nenhum momento para que pessoas empobrecidas acessem direitos básicos como saúde, educação, moradia. Para todos esses direitos, as portas estão fechadas, mas para que entrem para prisão, as portas são escancaradas. Quase não temos avanços, pelo contrário. Essa é uma triste constatação, pois a verdade é que nós temos um perfil de Judiciário que ainda não assumiu o papel que lhe foi posto na Constituição de 1988, que é o de garantir os direitos fundamentais. Este é o papel do juiz em todos os processos, em relação a todos os direitos.

Não tem sentido existir um judiciário, com todos os atributos que lhe são próprios, como independência judicial, inamovibilidade, irredutibilidade de salário, com todas as suas garantias, se a função constitucional de garantir o direito não for cumprida. Dentro do direito penal, do processo penal e da execução penal, nós temos uma série de regras previstas na Constituição Federal: onde elas estão? Olhamos para dentro das prisões e nos perguntamos: onde está a dignidade humana?

Em 2016, você teve que responder a um processo disciplinar no TJSP simplesmente por ter feito cumprir a lei, ao emitir alvarás de soltura de pessoas em prisão preventiva, já presas há mais tempo do que determinavam suas penas. Que reflexões você tem sobre o caso?

Eu já trabalhava no Tribunal de Justiça, na 2ª Instância e, quando recebi um determinado processo, vi que a pena daquela pessoa já havia sido cumprida. Foi quando bateu um desespero. Como eu era a relatora, o processo estava sob minha responsabilidade, e há casos em que o magistrado da 2ª Instância pode e deve decidir sozinho, monocraticamente. São as cautelares, os casos de urgência. Depois, estas decisões podem ou não ser confirmadas pela turma julgadora. Nesse caso, mandei expedir o alvará de soltura, justamente porque a pena fixada já estava cumprida. Depois, houve o trâmite normal e o caso foi para a turma julgadora.

Tempos depois, o desembargador não se conformou, justificando que eu decidi monocraticamente — sozinha —, e no tribunal se julga pelo colegiado, o que é mesmo a regra. Mas há essas exceções nos casos de urgência, sempre submetidos posteriormente à turma.

Na representação, ele dizia que eu tinha feito isso em onze processos, apesar de terem sido mais: foram 50 casos. Então, informei quantos tinham sido os processos e quais tinham sido meus despachos.

Bem, fui punida por isso. Uma loucura você ser punida por uma obrigação! Porque o juiz não pode deixar, o Estado não pode deixar ninguém por um dia mais de prisão! O Estado tem o dever de ressarcir a pessoa que ficar um dia a mais na prisão!

Então, esse quadro revelou algumas questões. No final, acabei recorrendo ao Conselho Nacional de Justiça, que deu uma decisão muito boa: afastou a punição e questionou o Tribunal de Justiça de São Paulo por fazer algo estapafúrdio, pois, ali, eu cumpria meu dever, quando, normalmente, tudo o que vai ao CNJ são casos de juízes que não cumprem com o seu dever. Eu estava tendo cuidado com o processo. É uma obrigação agir de ofício nesses casos, quando há irregularidade e uma pessoa precisa ser solta.

Tudo isso revela que, primeiro, existe essa cultura extremamente punitivista, porque o que mais incomodava era que eu havia soltado pessoas. E isso não é de agora: lembro de quando estava na Vara de Execuções Criminais, nos anos 90, promotores não estavam gostando de algumas decisões de progressão em regime, em crimes hediondos, caso na sentença não houvesse proibição, e também deferia, quando possível, indulto humanitário para pessoas portadoras de HIV em estágio terminal. Incomodaram-se, foram ao Tribunal e fui tirada desta vara. Veja, isso aconteceu em 1993, e se repetiu comigo já mais no final da carreira, só que, desta vez, com instauração de processo contra mim.

Muitas vezes, alguns juízes decidem de uma determinada forma e acabam sendo sancionados, perseguidos, ou deslocados de jurisdição. Simplesmente tiram de lá. Isso acontece porque nós temos um sistema que quer controlar o pensamento de todos os juízes, o que está absolutamente errado. O meu processo acabou sendo positivo porque evidenciou duas coisas: mostrou a questão da Independência Judicial, de como ela é vulnerada pelo próprio Tribunal de Justiça, e mostrou, com dados reais do mundo prisional, que tinha muita gente dentro da prisão sem que devesse estar lá.

A Lei de Drogas, promulgada no Brasil em 2006, acompanha uma tendência mais ampla na América Latina. Qual é o sentido dessa lei e quais os seus efeitos sobre a população mais vulnerável, sobretudo a população negra e pobre das periferias urbanas?   

A guerra às drogas — ainda sem entrar no mérito específico da lei — não tem sentido por não resolver nem a questão da pessoa que é simplesmente usuária, nem a questão do tráfico propriamente dito, que faz circular muito dinheiro no mundo inteiro, nem, ainda, a questão do “pequeno traficante”. A origem dessa política é nos Estados Unidos, e repercute em toda a América Latina. No Brasil, não foi diferente, tendo sido absorvida como uma solução, mas acabando entrando no mesmo bojo e lógica da lei de crimes hediondos.

A guerra às drogas não tem sentido por não resolver nem a questão da pessoa que é simplesmente usuária, nem a questão do tráfico propriamente dito, que faz circular muito dinheiro no mundo inteiro, nem, ainda, a questão do “pequeno traficante”

Para muitas pessoas que participaram da elaboração da Lei de Drogas, havia a ideia de que ela seria mais benéfica para os chamados pequenos traficantes, pois a própria lei prevê atenuantes. Ou seja, pode-se diminuir a pena de quem tem pequena quantidade de droga,  que não tem envolvimento com organização criminosa. A pena poderia ser reduzida para até 1 ano e 8 meses. A nossa lei também prevê a possibilidade de substituição da pena, quer dizer, o nosso sistema permite a substituição da pena de prisão por outras penas que não são de prisão. Realmente, muitos pensaram que isso iria favorecer o desencarceramento, mas esqueceram de ver quem são os operadores da justiça: esse juiz que deixa uma mulher presa pela subtração de uma coca-cola, um suco tang e o miojo, que custam cerca de R$21,00.

E aí, os juízes, ao invés de deixarem de aplicar a pena de prisão e substituírem as penas, aumentaram a situação de aprisionamento, o que também ocorreu pela política do Executivo de realizar prisões, independentemente de qualquer coisa. O Executivo começou a fazer essa política a rodo, motivado por um discurso eleitoreiro que só engana o povo.

Os efeitos são sentidos pela população mais vulnerável, mais exposta à violência, pois há uma cadeia muito complexa que atinge não os grandes traficantes, mas sim aquele indivíduo que está com quantidades pequenas.

Tive um caso muito emblemático, o da Cintia, presa portando menos de 1g de crack, sentenciada à pena de oito anos de prisão em regime fechado. Essa mulher era jovem, devia ter uns 24 anos, era ré primária, tinha bons antecedentes, não tinha nenhum inquérito policial e tinha um filho. O que muda na segurança da sociedade com a prisão dessa mulher? Ela ficou cerca de quatro anos presa. Eu era relatora do caso e achei que ela devia ser absolvida, não achei que houvesse prova que sustentasse que a droga era dela. Mas fui vencida, perdi no julgamento, já que os outros dois desembargadores mantiveram a condenação e reduziram a pena para cinco anos. Sugeri: “Vocês não querem aplicar pelo menos o redutor, previsto nessa lei desde 2006?” E responderam: “Não, aqui a gente não aplica o redutor”.

Quem mais sofre com essa guerra às drogas é a população em maior situação de desigualdade social. Se qualquer pessoa de um bairro da classe alta paulistana é pega com essa quantidade de droga, não vai dar em nada. A depender de onde se mora, será considerado tráfico e a pena vai ser pesada, uma vez que a Lei de Drogas aumentou  a pena mínima do  tráfico, que passou de três para cinco anos, em regime fechado. As poucas coisas boas da lei raramente são usadas.

Não há nenhum sentido na “guerra às drogas” e os efeitos sobre a população que vive em condição de desigualdade é torná-la ainda mais vulnerável e mais sujeita à violência que o sistema policial e o sistema de execução criminal impõem

Uma crítica muito forte é feita pelos tribunais superiores em relação aos julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo, por simplesmente desconsiderar que a lei prevê a redução, a partir de determinada pena e circunstâncias, e também a substituição da pena.

A prisão tem que ser, na verdade, pelo nosso sistema, a última opção. Mas acontece que essa regra não é aplicada. Quem vai sofrer mais com isso são as pessoas que moram na periferia, são as pessoas empobrecidas, em sua maioria negras. Não há nenhum sentido na “guerra às drogas” e os efeitos sobre a população que vive em condição de desigualdade é torná-la ainda mais vulnerável e mais sujeita à violência que o sistema policial e o sistema de execução criminal impõem.

Quais os efeitos da política de aprisionamento massivo e seletivo sobre as mulheres?

Em relação às mulheres, é pior ainda. No perfil das mulheres encarceradas, há tempo, o percentual de crimes violentos em que elas se envolvem é mínimo. A maioria delas é jovem, a grande maioria é de mulheres que assumem a chefia da família, a maioria tem filhos. O grande percentual das mulheres que vão presas é por crimes relacionados à droga. Aliás, a taxa de encarceramento das mulheres passou por um crescimento vertiginoso na última década e meia, próximo a 500%.

Se é feito um levantamento dos processos sobre a quantidade de drogas, o que já fiz em meus processos, a quantidade é mínima. Não estou dizendo que são todos os casos, mas me refiro à regra geral. 

Falta, sim, compreensão da realidade brasileira, e os efeitos disso são perversos. Um estudo de um ex-conselheiro do CNPCP [Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária] demonstra que os reflexos que se dão quando uma mulher é aprisionada são muito diferentes dos que se verificam quando um homem é aprisionado.

Isso tem um impacto na vida familiar, porque elas são chefes de família ou assumem a família de algum modo. Há um impacto ao redor de toda a comunidade em razão dessa prisão. Uma pesquisa antiga, realizada em São Paulo pela Funap, perguntava aos homens que conseguiam trabalhar na prisão o que faziam com o dinheiro que recebiam. Gastavam com as próprias despesas. Já as mulheres presas que trabalhavam, mandavam para a família, para cuidar dos filhos.

Quem assume os filhos quando a mulher é presa? A família da mulher, ou seja, é uma outra mulher que assume

Isso mostra como o aprisionamento de mulheres reflete na vida da família e da comunidade. Quem assume os filhos quando a mulher é presa? A família da mulher, ou seja, é uma outra mulher que assume. Quem passa pela revista vexatória numa prisão? A mulher que vai visitar o homem, porque a mulher que está presa não é visitada por homens, em geral. Ela é visitada, de regra, pela mãe, irmã. O percentual de mulheres presas que recebem visita masculina é mínimo.

A questão se agrava pela expectativa social que se tem em relação ao papel das mulheres. Aguarda-se uma certa ”santidade” das mulheres e isso gera um grau de reprovabilidade social infinitamente maior. Se uma mulher é condenada, sua invisibilidade é maior.

Vale mencionar uma decisão que encontrou muita resistência dos juízes e desembargadores: foi a primeira decisão do Supremo Tribunal Federal em Habeas Corpus coletivo para mulheres presas provisoriamente. É um tipo de ação que atinge todo um grupamento, no caso, todas as mulheres encarceradas sem condenação definitiva, que cumprissem alguns requisitos, como não ser reincidente, ter filhos e não ter praticado certos crimes. O STF determinou que elas permanecessem em prisão domiciliar e eu ouvi desembargadores afirmando que fariam de tudo para não aplicar a decisão do STF! Veja que no caso da mulher presa pelo furto do suco tang, coca-cola e miojo não houve cumprimento dessa decisão do Supremo Tribunal Federal.

No momento em que realizamos esta entrevista, conforme os dados do Infopen a população carcerária do Brasil é de cerca de 688 mil pessoas. Eram quase 800 mil pessoas, antes da pandemia. Se nenhuma mudança na legislação fosse feita e apenas se cumprisse a lei e penalidades alternativas, uma proporção muito considerável dessas pessoas poderia estar fora das prisões. Que benefícios para a sociedade isso traria? 

Eu acho que tem uma coisa que era importante falar: que dessas tantas pessoas que estão presas muitas estão presas sem necessidade. A prisão provisória, aquela em que o indivíduo ainda não tem uma condenação com trânsito em julgado, tem que ser exceção. E quantos desses presos estão nessa condição? Cerca de  40%1No último censo do Infopen este número caiu para cerca de 25%, em virtude das liberações facilitadas durante a pandemia. Esse diminuição, a nosso ver, inclusive reforça o argumento que a juíza desenvolve aqui.. Há um desvirtuamento do nosso sistema, quando deveria ter na prisão a exceção. Pelo nosso sistema normativo, só se prende em última instância, em caso de necessidade absoluta. A prisão é exceção, tanto no decorrer do processo como depois.

E aí, nós temos um grande número de pessoas que não deveriam estar presas provisoriamente. É muito comum juízes acabarem usando a prisão provisória como se fosse uma antecipação de pena, mas isso a lei não prevê, a lei coloca outros parâmetros. Há ainda o impacto social, que podemos calcular pelo impacto econômico. O custo médio mensal por pessoa presa é de cerca de três salários-mínimos.

O sistema prisional, já está mais do que provado, não traz solução para a violência social e para o sistema de segurança

Vamos pensar na base de um custo de apenas dois salários-mínimos para a manutenção de uma pessoa dentro do sistema. Só com essa prisão da Cintia, que durou quatro anos, o Estado gastou cerca de R$105 mil, calculando por baixo. Qual o benefício para a sociedade com essa prisão? E essa criança que ficou quatro anos sem a mãe, sem alguém que cuidasse diretamente dela? Como dimensionar a questão emocional? E para essa mulher, que não trabalhou durante esse tempo? Em termos econômicos, há um gasto que não é explicitado para a sociedade em geral. A prisão gera custos altíssimos, mesmo com suas péssimas condições. E o sistema prisional, já está mais do que provado, não traz solução para a violência social e para o sistema de segurança. Eu, particularmente, em certos casos, não consigo ver outra alternativa senão a prisão, mas o que vemos é o uso abusivo da prisão pelo Judiciário.

Podemos pensar que uma vasta parcela da população brasileira permaneceu sujeita à ação discricionária e discriminatória da polícia e do sistema penal e prisional, que manteve uma série de fatores de continuidade em relação à ditadura (1964-85), ou, em uma perspectiva mais ampla, em relação ao nosso passado escravista, racista e patriarcal. Como a gente poderia colocar o problema prisional no radar de prioridades de setores sociais comprometidos com a democracia? Há alternativas possíveis para pensarmos em um mundo mais justo, menos violento e com menos prisões? Quais seriam bons exemplos na maneira de como lidar com o problema do aprisionamento? Há países que estão adiante nesta discussão? Para onde podemos olhar?

Como fazer com que as pessoas possam ver isso? A gente precisa fazer uma reflexão maior do papel que a prisão tem cumprido na sociedade brasileira, a quem ela está servindo?

Os setores sociais comprometidos efetivamente com a democracia devem começar a fazer esse tipo de reflexão para que a gente possa ter outros caminhos. O sistema de justiça tem sido mais um condutor realizador do sistema da violência que impera na sociedade brasileira, e nós não conseguimos realmente sair desse emaranhado escravagista.

A sociedade civil organizada tenta avançar através de princípios, os documentos internacionais que existem sobre essa temática, mas nem sempre a gente consegue fazê-lo em termos reais. Em termos reais, está muito difícil, ainda, especialmente neste momento catastrófico de destruição absoluta de direitos. Falando desse legado que comentei, tem um trecho O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, do Darcy Ribeiro, que acho muito marcante:

“Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pastos da nossa fúria. A mais terrível das nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhe caem às mãos..." É essa a reflexão que nós precisamos fazer — ver onde estão as nossas cicatrizes.

Como nós vamos avançar? Não vamos conseguir avançar para uma outra sociedade enquanto não fizermos o ajuste de contas em relação às cicatrizes dos nossos torturados na época da ditadura e na época da escravidão. Não há como avançar se a gente não fizer a reflexão. Nós precisamos com urgência fazer essa reflexão que o Darcy Ribeiro no livro, de que gosto bastante. Acho que ele abre uma chave para a gente se olhar no espelho brasileiro nos diversos períodos da sua história.

Há uma parte expressiva do universo jurídico em nosso país que acaba sendo mantenedora de múltiplas violências.  Contudo, em sua formação e atuação profissional, você agiu no sentido oposto. Como você vê sua trajetória na magistratura e militância?

Eu digo que trago na veia a história de sobrevivência, porque minha avó é sobrevivente do genocídio armênio, que aconteceu em 1915, quando ela ficou órfã. Acho que daí vem meu compromisso ancestral com os Direitos Humanos. Fui juíza por trinta anos, mas nunca abri mão de exercer a cidadania e ser uma militante, concomitante à magistratura. Em todas as minhas relações, seja como profissional ou militante,  sempre fui guiada pelos Direitos Humanos. Nos processos, com a primeira máxima, que é uma obrigação de todos os juízes, de ser a garantidora dos direitos e no restante da vida, fora do espaço do sistema de justiça, contribuir com meus limites para que tenhamos efetivamente um mundo mais humano.

transcrição: Ana Mayara Esperança Ribeiro e
Cynthia Rachel Pereira Lima


 

Cristiane Checchia | Brasil |

Historiadora e professora de Literatura Latino-Americana na UNILA. É coordenadora do projeto Direito à Poesia, que realiza oficinas literárias em prisões de Foz do Iguaçu. www.direitoapoesia.com.br

cristiane.checchia@unila.edu.br

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