Narrativas

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

foto: María Paz Córdova Lagos | Marión Silva

Maternar na prisão

Experiências de mães, ex-privadas de liberdade em Valparaíso, Chile, e o trabalho com ações reparadoras a partir das artes

Vania Gallardo López e Eva Lineros Vega

| Chile |

novembro de 2022

traduzido por Nathália Guereschi e revisado por Mayara Alexandre Costa

O presente texto surge a partir de um acionar comunitário que desenvolve a coletiva Pájarx entre Púas, integrada por mulheres e dissidências encarceradas, ex-encarceradas, ativistas e artistas. A partir do ativismo feminista e a pesquisa-ação, nos unimos para questionar as estruturas de (in)justiça e castigo que operam nessa sociedade, como também para construir novas formas de nos relacionar, utilizando as artes junto com nossas corporalidades individuais e coletivas como uma ferramenta de transformação das múltiplas formas de exclusão e violências que habitamos por nossa condição de gênero, classe e etnia. Dessa maneira, trabalhamos para transformar dor em movimento e movimento em liberdade. 

Nos interessa ecoar as vozes das nossas companheiras encarceradas e ex-encarceradas do nosso território, enfatizando suas experiências de maternidade na prisão. É sabido que falar de cárcere nessa sociedade globalizada e capitalista significa levantar véus de invisibilização histórica, estruturas que na atualidade continuam se reproduzindo e permitindo a transgressão dos direitos humanos das pessoas que estão privadas de liberdade. 

Habitamos a era da precarização da vida, uma crise sistêmica que vulnera a dignidade humana e que repercute profundamente sobre os corpos das mulheres privadas de liberdade, já que, mesmo quando essas representam apenas 7% de toda a população penal a nível planetário, durante as últimas décadas tem aumentado em 53% sua taxa de encarceramento (Walmsley, 2018), sendo castigadas por sobreviver à pobreza, em sua maioria, condenadas por delitos não violentos, relacionados a drogas (40,8%), roubos (22,4%) e furtos (10,7%). (GENCHI, 2019).

Nos posicionamos a partir de uma perspectiva ativista e transfeminista para abordar a problemática da maternidade na prisão, por meio dos relatos de nossas companheiras - mães e pessoas com experiências de privação de liberdade dentro do Centro Penitenciário Feminino (CPF) de Valparaíso entre 2015 e 2020. Dessa forma, elas constroem um uso ativo de sua memória individual  e coletiva para compartilhar suas experiências, evidenciando que o encarceramento gera uma quebra do vínculo mãe-filhe e em consequência, uma fragmentação de milhares de famílias, comunidades e de um tecido social complexo. 

Logo, se questiona o desenvolvimento de ações reparadoras a partir das artes para trabalhar na reconstrução dos vínculos afetivos e comunitários dentro e fora da prisão. Trata-se de um modelo de trabalho que a Coletiva Pájarx entre Púas tem desenvolvido dentro da região de Valparaíso para responder à problemática da prisão e a exclusão de mulheres, dissidências, maternidades e infâncias em contexto de encarceramento. 

Os testemunhos e obras apresentadas neste artigo correspondem a entrevistas, conversas, criações de colagem e intervenções sonoras, realizadas dentro e fora dos cárceres femininos pela coletiva, esses correspondem a espaços  de diálogo e criação que tem sido desenvolvidos simultaneamente a processos de acompanhamento, focados na reparação pessoal e comunitária. Assim, se transparece o consentimento informado de cada uma das vozes desse relato e nos posicionamos contra qualquer forma de extrativismo acadêmico.

As obras gráficas que acompanham o presente artigo correspondem a colagens realizadas pelas artistas María Paz Córdova Lagor e Marión Silva, projeto da Fundação e Coletiva  Pájarx entre Púas baseadas na obra “Líneas de Vuelo” (“Linhas de Vôo”), intervenção realizada em B.A.S.E Tsunami Março 2021 Valparaíso, Chile, com as artistas sonoras Jasmina Al-Qaisi e Jimena Royo Letelier que revela a realidade das mulheres privadas de liberdade no centro penitenciário feminino de Valparaíso, Chile.

Para participar da experiência convidamos xs leitorxs a escanear o seguinte código que acompanha as peças gráficas expostas no artigo. 

Maternar na prisão: desde dentro e para fora
O ingresso à prisão

 Segundo dados recentes, 90% das mulheres encarceradas no Chile são mães de ao menos um filho (Larroulet, et al., 2021). Além disso, são chefes de casa monoparentais, o que se relaciona diretamente com os motivos que as levam a delinquir, já que muitas vezes são o único suporte econômico e emocional para suas famílias. O que foi dito anteriormente significa que muitas delas se viam obrigadas a se separar de seus filhes quando ingressam à prisão, enquanto outras ingressam ao cárcere estando grávidas, e portanto, devem cumprir suas condenações junto de seus filhes até que tenham idade de dois anos, tão logo são separados de maneira abrupta e sem o acompanhamento devido.

Assim nos conta Patrícia, que viveu o encarceramento sendo mãe e, posteriormente, a separação de uma filha lactante e junto a isso,o rompimento de seus vínculos: “quase sempre as mãos que delinquem, o fazem pelos filhos, foi assim comigo, porque o pai não está, porque ninguém nos salva” (Paty, 54 anos, Valparaíso).

Muitas mulheres atravessam distintas etapas do exercício de sua maternidade durante sua estadia na prisão, no entanto , para os fins desse artigo ambos os processos serão caracterizados separadamente; em primeiro lugar, a maternidade dentro da prisão e, em segundo lugar, a experiência de maternar à distância, devido a separação forçosa produto do encarceramento da progenitora. Dessa forma, será possível compreender os distintos processos que constituem as experiências das mulheres-mães privadas de liberdade.

“Quando você está presa, sofre demais, estar privada de liberdade, entre quatro paredes, não ver o sol, se perder do mar, da chuva, já é um castigo grande” (Paty, 54 anos, Valparaíso)

 

Maternar dentro do cárcere começa pelos processos vitais da gravidez, sendo afetados pelas condições estruturais da prisão que, assim como indicam Restrepo e Francés (2016), estão construídas sob uma lógica patriarcal de desprezo pela vida. Nas prisões femininas não há acesso garantido a serviços básicos de higiene e saúde, menos ainda se garantem as necessidades particulares de saúde sexual e obstétrica que requerem as mulheres em processo de gestação, parto e puerpério, assim como nos relata Marisol:“Parir no cárcere é uma experiência encadeada onde os filhos nascem privados de liberdade” (45 anos, Viñas del Mar).

Durante a lactância tanto mães como filhes se encontram vulnerades em seus direitos fundamentais, o que se evidencia nos maus tratos por parte dos agentes penitenciários, da equipe de saúde e das entidades de Justiça. Em relação a essa vulneração que se estende às crianças que vivem na prisão, as companheiras relatam que: “ Eles estão igual a nós, são mais um de nós, mesmo estando separados e tendo sua própria casinha, eles ainda ouvem e vêem tudo" (Jessica, 47 anos, Viña del Mar).

O espaço que habitam junto às crianças é “só cimento, grades e arames farpados" (Jéssica, 47 anos, Viña del Mar). Além disso, é importante considerar que as mulheres exercem sua maternidade 24 horas por dia, não tendo descanso algum de suas funções de cuidado, que, somadas às precárias condições de habitabilidade e de recreação - tanto para elas como para es filhes - acabam deteriorando sua saúde física e mental.

Sobre esse último ponto, o sistema carcerário não cumpre com os protocolos, já que, no próprio Manual de Direitos Humanos da Função Penitenciária de Gendarmaria se estabelece que:

“No que diz respeito a ‘mulheres com filhos dentro da Unidade Penal’, deve prevalecer o interesse superior pela criança (...) quando estes se encontrem com suas mães, jamais serão tratados como reclusos e, no lugar físico onde se localizem, será separado do resto da população penal” (GENCHI, 2012:32)

A realidade evidencia que das 40 prisões que recebem mulheres, apenas 26 contam com seções materno-infantis, segundo os dados do último estudo de condições carcerárias de caráter nacional (INDH, 2019). Somado ao anterior, as mulheres ex-prisionadas relatam que dentro da prisão a atenção médica é de má qualidade e insuficiente, suprindo suas necessidades por meio de sobremedicalização: “Quando eu pedi uma hora com a parteira, não tinha ninguém, a única coisa que tem são trabalhadores da saúde que vão e te dão comprimidos para as que se sentem mal (...) Uma vez me injetaram não sei o que me deram, e me mandaram de volta ao módulo” (Jessica, 47 anos, Valparaiso).

Assim, a experiência da maternidade e da infância na prisão é observada oscilando entre a importância e o direito que tem, tanto mães quanto filhes, de poder desenvolver um vínculo afetivo seguro; e uma constante vulneração de seus direitos humanos ao habitar um espaço tão hostil como o cárcere, causando a separação de muitas mães e filhes antes do estabelecido pela lei (dois anos de idade), o que afeta profundamente seus processos identitários e afetivos, devido a culpa e a estigmatização que resulta da privação da liberdade feminina, já que se deve recordar que o sistema penal “trata de perpetuar os modelos hegemônicos e heterocentristas de “boa mulher” e “boa mãe” (Gea Fernández, 2014, p.217 e ss. Francés y Restrepo, 2011)

O rompimento do vínculo Mãe-Filhe

“Eu estou presa, mas porque tem que estar presa minha bebê? Aí  decidi que minha irmã pegaria e levaria ela para a casa”(Paty, 54 anos, Valparaíso)

A separação de seus filhes — resultado do encarceramento — constitui um marco inapagável nas vidas das mulheres: “Quando te tiram um filho, chegam um dia e te dizem que hoje é o dia e  levam ele, e chega o Sename1O Sename se define como “Um organismo do Estado que depende do Ministério de Justiça”, cuja missão é “contribuir protegendo e promovendo os direitos das crianças e adolescentes e a reinserir na sociedade os adolescentes que tenham infringido a lei” (https://www.sename.cl/web/). Entretanto, na prática tem sido acusado de ser uma instituição que vulnera os direitos das crianças e adolescentes. Agência Uno (2021): Albert, C e Urquieta Ch, C (2019) e Palma, S (2021). (...) e tchau, você o viu pela última vez e  volta para o quarto” (Marjorie, 32 anos, Valparaíso).

Contudo, o rompimento desse vínculo não é unidirecional, já que as crianças - ao sair da prisão - também experimentam uma interrupção violenta de seu crescimento psicoemocional: “É um bebê que não tem ideia  porque de um dia para o outro deixou de ver sua mamãe” (Paty, 54 anos, Valparaíso).

Esse impacto se encontra mediado pelo novo espaço de socialização e cuidado no qual se desenvolvem as crianças uma vez que são separades forçosamente de suas mães. As realidades são muito diversas, enquanto um grande número de crianças se mantêm sob a custódia do Serviço Nacional de Menores (Sename), onde a maioria das vezes veem seus direitos fundamentais vulnerados, outres ficam sob cuidado de outros familiares, em sua maioria, outras mulheres - evidenciando a reprodução feminina dos cuidados - sendo as tias, avós, vizinhas inclusive, muitas vezes, as filhas, que cuidam de seus irmãos/irmãs pequenos/pequenas, o que reproduz o círculo de violência, desigualdade e estigmatização das mulheres: dessa forma, se compreende como a cárcere entra na vida de muitas mulheres sendo ainda menores de idade.

O rompimento do vínculo também afeta — mesmo que de forma diferenciada — aqueles filhes maiores de dois anos de idade. Nesse caso, mães e filhes não habitam cotidianamente no espaço carcerário, já que são separados imediatamente, resultado do encarceramento das progenitoras, sendo as visitas que se realizam dentro dos recintos de reclusão a sua única forma de se relacionar. Lamentavelmente, dadas as precárias condições do sistema de visitas dos cárceres no Chile, os vínculos familiares são profundamente danificados, dentro desse processo de rompimento, incide o violento procedimento de revista que se pratica no Chile:

“No caso das revistas praticadas nas crianças e adolescentes, se constata que ainda se realizam de forma invasiva em diversos estabelecimentos. Em mais da metade dos cárceres inspecionados são descritas por pessoas privadas de liberdade que se desnudam crianças e adolescentes” (INDH 2019:306).

  A situação descrita acima gera maior impacto quando, somente durante o ano de 2019 se reportaram a visita de 30.921 crianças ou adolescentes às distintas prisões por todo o país (INDH, 2019). Sobre o espaço disposto para visitas, se repete a mesma situação de vulneração de direitos, no caso particular do Centro Penitenciário Feminino de Valparaíso,  o setor de visitas consiste unicamente em um pátio sem teto nem proteção alguma, assim como se indica a partir do Instituto de Direitos Humanos: “Nesses lugares, não tem calefação, nem uma quantidade de cadeiras e mesas suficientes para as pessoas privadas de liberdade e suas visitas” (INDH, 2019:12)

Dessa forma, mães e filhes não voltam a compartilhar um espaço íntimo até que elas consigam sua liberdade. Situação que pode se estender por anos considerando que, - dentro desse sistema punitivista onde se encarcera a pobreza - as penas são cada vez mais altas, onde, por delitos não violentos, como os mencionados anteriormente, as mulheres podem receber entre um, três, dez ou até mais anos de pena, e, portanto, sem estar e conviver com seus filhes, significando um rompimento profundo dos vínculos afetivos, já que existe a perda do acompanhamento das etapas vitais do desenvolvimento desde a primeira infância em diante.

Assim nos relata Patrícia:

“Quando eu fui presa, eram crianças pequenas, e quando eu saí todos tinham problemas, tinham sofrido maus tratos, tinham sofrido um montão de coisas. E eu me lembro que no cárcere, pensava nas crianças porque eu sabia que não estavam bem, era super triste (...) Meu filho, que era o mais velho, tinha 8 anos e quando saí era Punk, ou seja, um processo super louco, mudam, e não estava nem eu, nem o pai, e depois te culpam, e eu venho tratando de explicar que o que eu fiz foi pensando neles” (Paty, 54 anos, Valparaíso)

Dessa forma, se evidenciam os distintos obstáculos, assim como também as diferentes subjetividades que se constroem da maternidade no contexto carcerário, a partir de cada um dos processos que têm habitado as mulheres ex-privadas de liberdade que são parte da Comunidade Sorora de Pájarx entre Púas.

 

Ações reparadoras a partir das artes
Resistências que partem do comunitário

A partir da nossa experiência desenvolvendo ações culturais e artísticas, tanto nos centros penitenciários femininos como em centros culturais, junto a comunidades e espaços públicos, temos detectado aquelas violências sistemáticas e desigualdades estruturais que se perpetuam permanentemente na vida das mulheres encarceradas, ex-encarceradas e suas famílias, quem, de maneira direta, experimentam as injustiças desse sistema capitalista colonial e patriarcal, o que desconecta e descarta as pessoas de suas comunidades, desarticulando famílias, bairros e organizações.

Partindo dessa experiência, conseguimos identificar como se manifesta com força a falta de espaços artísticos e de participação cultural dentro das prisões chilenas e nos territórios-bairros, pois em nosso país, as artes e as culturas têm sido concebidas como bens de consumo particulares para uma população privilegiada e elitista, e não como uma ferramenta de desenvolvimento e transformação social e territorial. Essa conceitualização institucional se constata através da segregação artístico-cultural, assim como também, por meio de uma ausência de programas e espaços que disponham de um sentido de pertencimento territorial e comunitário nos distintos territórios do Chile. É essa estrutura segregadora das artes que se intensifica em contexto de privação de liberdade, somando-se ao estigma e às inúmeras dificuldades que enfrentam as mulheres ao sair da prisão, e dificultando ainda mais as possibilidades de acesso e participação social e cultural.

Considerando que somente na região de Valparaíso, 69% das mulheres que se encontram privadas de sua liberdade não tenham se formado no Ensino Médio[1] e 21% não tenham completado sua educação básica (primária) compreende-se a situação crítica e precária sobre o acesso às artes, culturas e educação nos setores mais pobres do país. É por isso que desenvolver ferramentas artísticas pedagógicas nos cárceres é uma forma de nos empoderar e reivindicar como sujeitas de direitos, reconhecendo nossa condição de gênero, classe e etnicidade. (Hoecker, 2020)

Habitar os territórios e espaços comuns que hajam sido segregados para as mulheres e as dissidências sexo-genéricas é um constante resistir ao sistema capitalista. Isso nos leva a criar colaborativamente uma Comunidade Sorora, através de ferramentas artísticas e transformadoras que consigam abrir novas possibilidades para construir comunidades mais empáticas que dignifiquem as mulheres por seus conhecimentos e particularidades. Assim, pretendemos desconstruir o socialmente estabelecido, nos convidando a sentir, pensar e criar a partir do coletivo, para estabelecer espaços seguros de participação que encontrem sentido para todes, e teçam uma rede que fortaleça o tecido social artístico e cultural das denominadas pela sociedade patriarcal de loucas, desviadas, mal portadas e dissidentes. Nessa linha, encontra-se o sentido no relato de uma de nossas companheiras artivistas, Paxi; que, além de ser filha de uma mulher ex-carcerária. Ambas em sua própria história de vida dão conta de um processo de reparação do vínculo mãe-filha através das ferramentas artísticas, culturais e comunitárias:

“É bacana desenvolver a área artística, a conexão que se pode fazer entre a dor, a realidade e misturar com arte e movimento, talvez alguém possa pensar que não se relacionam, mas se relacionam profundamente” (Paxi, 26 anos, Valparaiso).

É importante compreender como ao longo da história temos sido violentadas, explícita ou implicitamente, violências que se registram sobre nossas corporalidades, modificando as formas de nos relacionar e nos negando o direito a decidir sobre nossos corpos, violências que se reproduzem dentro dos muros da prisão, já que a instituição carcerária aprisiona e maltrata, causando profundas feridas psicológicas, sociais, culturais, etc.

Feridas que transpassam esses muros, afetando também as famílias e principalmente aos filhes, já que desde pequenes, se vinculam com o cárcere experimentando necessidades e desigualdades que afetam seu desenvolvimento, o que se evidencia através de violências psicológicas, sexuais, econômicas, institucionais, entre muitas outras, manifestando-se em problemas de saúde mental, abandono escolar, poucos laços emocionais seguros, assim como nenhuma participação artística e cultural, o que por consequência afeta todo o sistema familiar:

“Minha mãe saía do cárcere e não davam trabalho, era um círculo de violência que não terminava nunca… Ela nos recuperava, a mim e aos meus irmãos, mas tinha que voltar a roubar os supermercados, então de novo era presa e nos perdia… E assim foi até que nos tornamos maiores de idade” (Paxi, 26 anos, Valparaíso).

Para nós, o bem-estar e proteção significa nos manter juntas na ação e coletividade através das artes, pois é uma linguagem comum e interseccional, capaz de unir as experiências das diversas identidades que nos atravessam. Assim como expressa uma de nossas companheiras da Comunidade Sorora:

“O conhecimento que a coletiva entregou é positivo para a vida de minha mãe e de todas suas companheiras ex-aprisionadas. Se conhecer, dançar, se soltar, se mover, talvez nunca tivessem tido aquela oportunidade (...) As pessoas podem crer que é só se mexer, mas não é só se mexer, vai mais além, se mexe algo dentro, é meio introspectivo e positivo para todas” (Paxi, 26 anos, Valparaíso).

Assim como afirma Paxi, não é só o ato de movimentar o corpo, senão de remover estigmas e violências para romper as grades das múltiplas barreiras que se impõe ao ser mulher, mãe e prisioneira.

Construindo Projeto Nido

Em vista da necessidade de fortalecer os laços entre mãe e filha e quebrar as grades da prisão durante a criação em um contexto prisional através das artes, é que nasce o Projeto Nido, que contempla espaços de desenvolvimento de experiências significativas, tendo as artes e a cultura como ferramentas de vinculação, contenção e reparação das relações afetivas e significativas no desenvolvimento das infâncias, fomentando o apego seguro e um vínculo familiar estável, com equipamento e os cuidados necessários para uma experiência positiva tanto para a mãe como para as/es filhas/es.

Durante o ano de 2021, se levou a cabo uma pesquisa-ação com uma metodologia participativa, onde as principais necessidades e sugestões surgiram das expectativas de vida de mulheres mães que se encontram em prisões e também com a busca de organizações e/ou instituições com experiências similares no mundo, onde somente nos encontramos com experiências desse tipo na Europa, e não na América Latina, demonstrando novamente a falência significativa do sistema penitenciário em nossa região.

Contatamos várias organizações europeias que colocaram em prática um trabalho com mais de 20 anos de experiência salvaguardando espaços seguros para o encontro e reencontro das mães com suas filhas/es, razão pela qual foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com organizações que trabalham em um contexto prisional de forma permanente e abrangente para a ligação entre mães, pais e suas filhas/es através das artes, fazendo parte da rede "Children of Prisoners Europe": Bambinisenzasbarre (Itália), Relais Enfants Parents (França, Bélgica e Suíça), e For Fangers Parorende (Noruega), identificando suas boas práticas e gestão do trabalho integral, contínuo e vinculante através das artes, entre as/os cuidadoras/es no contexto da aprisionamento com suas filhas/es.

Nessa primeira etapa do Projeto Nido[2], realizou- se a oficina “Escreve, conta e voa!”[3] no Centro Penitenciário Feminino de Valparaíso, que teve como objetivo gerar um espaço seguro e de qualidade para que as companheiras criassem contos infantis dirigidos para suas filhas/es, e através desses relatos pudessem expressar - fazendo uso da escrita e da narração  os diversos contextos e histórias de vida que as levaram a estar privadas de liberdade e, portanto, separadas de seus filhes.

Graças a realização dessa oficina, foi possível abordar as dimensões afetivas, sociais e culturais que implicaram o rompimento do vínculo mãe-filhe, além de construir novos acordos e vínculos seguros durante o exercício da maternidade no contexto penitenciário. Dessa forma, podemos sintetizar como as artes potenciam as emoções e subjetividades daquelas mulheres que são estruturalmente invisibilizadas e violentadas pela sociedade punitivista e patriarcal.

A partir das experiências no período de pesquisa-ação, durante o ano de 2022 começamos a realizar os “Encontros Significativos NIDO” entre mães privadas de sua liberdade e suas filhas/es no Parque Cultural de Valparaíso - Ex Cárcere, uma ação pioneira e única no Chile, sob responsabilidade da Coletiva e Fundação Pájarx entre Púas. Considerando três datas comemorativas em nível nacional: O dia das mães, o dia das crianças e o natal. Essas datas detém significados sensíveis e por isso, se constituem como marcos importantes de contato tanto para as mães como para as crianças, realizando em ambientes protegidos de memória, enfocados na reparação e no comunitário.

As jornadas NIDO, focadas em atividades culturais e comunitárias, que são especialmente preparadas para os encontros em apoio ao fortalecimento dos vínculos sendo a Coletiva quem se encarrega do transporte das mulheres desde o recinto de privação de liberdade (C.E.T, Centro de Estudo e Trabalho, La Pólvora, Valparaíso) como também da segurança, da programação e do cuidado em cada um dos encontros.

É importante mencionar a colaboração e o uso ativo do espaço celebrado pelo Parque Cultural de Valparaíso - Ex Cárcere, centro cultural da região com o qual se desenvolve uma aliança que se baseia no Programa Vuelo de Pájares[4], que aposta em realizar vinculações entre os centros culturais e os cárceres femininos da 5ª região, tendo como foco principal que os centros integrem essa vinculação em suas programações e linhas editoriais para possibilitar o reconhecimento das pessoas privadas de liberdade como sujeitas de direitos culturais.

De forma paralela e vinculante aos encontros significativos, temos construído um espaço de oficinas permanente com foco reparatório através da criação pessoal e coletiva junto as mulheres que participam desses encontros no Parque Cultural de Valparaíso Ex-Carcere. Esse espaço tem como objetivo desnormalizar violências de gênero associadas ao ser mãe, problematizar as distintas experiências e construções da maternidade e apoiar as diversas habilidades conjugais, relevando o trabalho de cada uma a partir de sua experiência de criação junto a suas filhas/es. Assim mesmo, a permanência e continuidade que se estabelece com as mulheres privadas de liberdade que participam desse projeto sempre se baseia em desenvolver vínculos afetivos seguros entre todas as companheiras/es que formamos parte dessa Comunidade Sorora.

 

Reflexões finais

Por meio dessas páginas, buscou-se visibilizar a problemática da prisão e como isso afeta as vidas das mulheres privadas de liberdade, particularmente sobre as construções da maternidade e os vínculos familiares com suas filhas/es, crianças e adolescentes que são socializades em contexto de aprisionamento carcerário. Como Coletiva e Fundação, apelamos a uma compreensão sistemática do cárcere para que a sociedade seja consciente de como ela se forma como um espaço construtor de violências e repressor das diferenças, espaço de controle e castigo que afeta a todes, sendo uma estrutura de punitivismo que controla o que é bom ou ruim,  segundo cânones hegemônicos e patriarcais que atentam contra a vida mesmo de mulheres, dissidentes, infâncias, povos originários e migrantes, e contra todos aqueles marginalizados do contrato social neoliberal. Espaço de reclusão que nos faz tanto dano, fragmentando os laços comunitários que são o sustento da reprodução da vida digna, da vida nas famílias, nos bairros e territórios.

Ainda que esse artigo se sustente no regate de uma memória única, situada em Valparaíso de Chile, junto a um grupo de mulheres ex-carcerárias, pertencentes a nossa comunidade, sabemos que essas experiências ecoam nas vidas de milhares de mulheres pessoas gestantes e crianças de todo o continente latinoamericano, quem vem passando pela prisão e com maior ênfase para quem hoje em dia seguem recluses pelas grades do castigo. Fazemos um chamado ativista e transfeminista latinoamericano para que juntes construamos outras alternativas ao encarceramento em massa do qual somos testemunhos na atualidade. Alternativa que se sustentem a partir do comunitário, fazendo uso das artes e das culturas como ferramentas que possibilitem outros mundos possíveis, já que tal como disse Angela Davis em sua obra “Estarão as prisões obsoletas?”:

“Uma abordagem abolicionista que procura responder a perguntas como estas exigiria que imaginássemos uma constelação de estratégias e instituições alternativas, com o objetivo final de remover a prisão das paisagens sociais e ideológicas de nossa sociedade. Em outras palavras, não estaríamos procurando por substitutos para a prisão, tais como prisão domiciliar assegurada por braceletes de monitoramento eletrônico. Pelo contrário, postulando  o desencarceramento como nossa estratégia global, buscaremos como nossa estratégia geral, tentaremos visualizar um continuum de alternativas ao encarceramento: desmilitarização das escolas, revitalização da educação em todos os níveis, um sistema de saúde que ofereça cuidados de saúde física e mental gratuitos para todos, e um sistema de justiça baseado na reparação e reconciliação em vez de retribuição e vingança". (2003:126)

A seguir, apresentamos uma mostra do trabalho realizado por nossas companheiras privadas de liberdade no CPF de Valparaíso durante a oficina “Escreve, conta, voa!”

(Projeto Nido – Fundação e Coletiva Pájarx entre Púas – 2022)

Encabeçado pela atriz, narradora e diretora Gabriela Fernández Chang,  mestre em Educação e artista cênica Myr Chávez e a Psicóloga Vania Gallardo.

 

 

ESTRELLA Y LAS CABRITAS

Por Vanessa

Há muito tempo, num lugar não tão distante, nasceu uma linda menina, uma bebezinha com olhos cor de caramelo, tinha um olhar inquieto, como se quisesse conhecer tudo de uma só vez, sua mãe a chamou de Estrella, justamente por esses olhos que emitem uma luz tão brilhante. A mãe se dedicava a vender cabritas, naquele lugar e naquele momento, as cabras não eram muito bem vistas, porque quando alguém provava, depois já não podia deixar de comê-las, não podia evitar desejar mais, quando não as tinham, eram capazes de fazer qualquer coisa por elas e transformava as pessoas em criaturas indescritíveis.

Quando Estrella fez 10 anos, teve seu primeiro amor, um amor tão forte, assim como são os primeiros amores, que te cegam e que faz com que se veja tudo belo, lindo e perfeito, o que a Estrella não sabia é que esse menino estava louco pelas cabritas. De início era carinhoso, mas depois se tornou um monstro que a mantinha presa, obrigava a comer cabras, a mandava para a rua buscar dinheiro para comprar mais, mais e mais cabritas. Ai de Estrella se não chegasse com o dinheiro! o monstro fazia as coisas que fazem os monstros, coisas monstruosas, a luz de Estrella foi se apagando, já não se reconhecia, não podia viver sem essas cabritas.

Quando fez 16 anos, chegou um menino, que lutou por ela, liberou ela do monstro, foi seu novo amor, semeou uma semente e uma vida começou a crescer, teve um filho lindo, hoje já é um homem do qual Estrella se sente orgulhosa, ele teve que aprender a sair sozinho em frente, pois o poder das cabras era tão grande, que Estrella não conseguiu se livrar tão fácil delas.

Uma noite estava comendo as cabritas e se acabaram, quis comprar mais, mas não tinha dinheiro e saiu para conseguir. Parecia que Estrella estava imersa na escuridão, não tinha vontade própria, estava controlada pelo poder das cabritas que a levaram de frente a uma casa, a casa ideal onde poderia encontrar o que tanto precisava.

A casa era como uma caixa-forte, Estrella não via isso, estava possuída, conseguiu entrar pelas grades, era magra como uma tábua e passou pelo meio, grande foi sua surpresa quando os donos do lugar a encontraram, eles não conheciam a história de Estrella, não sabiam que ela estava tão assustada quanto eles, eles a pegaram e a maltrataram fortemente, chamaram as forças da ordem  e com essa força desmedida a prenderam por trás das grades, e mesmo sendo magra como uma tábua, não conseguiu escapar. Estrella segue aí, junto com outras mulheres condenadas pelo sistema, as cabritas viraram história, um conto quase de terror, mas o mais bonito é que sua luz, aos poucos volta a brilhar, às vezes brilha com força, as vezes se apaga um pouco, mas ela a cada dia se deixa brilhar, pensa em seu filho, pensa em sua nova vida como quando chegou nesse mundo, com esses olhos cor de caramelo, com a esperança de poder conhecer tudo, e brilha, brilha, brilha.

O JARDIM DE MARAVILHA

Por Jocelyn

Era uma vez, em um jardim muito grande e bonito, uma maravilhosa flor Maravilha, que vivia feliz e rodeada de muito carinho. Desde que Maravilha era pequena, os jardineiros lhe davam muito amor e cuidados. Maravilha foi crescendo e crescendo, até se tornar uma linda flor adolescente, um dia apareceu no jardim um jovem Girassol, que se fixou em Maravilha, e como nos contos às vezes as coisas passam muito rápido, Maravilha e Girassol tiveram duas lindas tulipas. A família conviveu no mesmo jardim por muitos anos, Maravilha era uma pequena quando se casou com Girassol e com o tempo começou a conhecer a verdadeira personalidade de seu companheiro. Girassol era muito querido quando queria, mas se algo o chateava, apareciam farpas desde seu interior e se transformava em cactos e machucava a todos em sua volta, especialmente a Maravilha. Às vezes, havia dias em que saia sol e Maravilha se sentia bem, as outras vezes havia dias de chuva onde se transformava em cactos e esses dias não se recordava muito bem. Um dia de chuva, tudo acabou, e Maravilha voltou a ser ela, tirou Girassol se sua vida. Mas com o passar do tempo, apareceu um ogro no jardim e o envenenou com pesticidas, Maravilha começou a murchar aos poucos e perder a noção do que estava acontecendo, e não se dava conta do que estava acontecendo com ela ou com o jardim. Não via o jardim como antes e um dia desses apareceu novamente Girassol com sua alma de cactos, o que machucou muito a nossa Flor e começaram a discutir, nesse instante apareceu um gato no local e Maravilha se jogou sobre o gato e o agrediu. O cuidador do jardim pegou Maravilha e a levou para uma estufa, ela se sentia muito sozinha e presa, tudo que havia ao seu redor era desconhecido, se sentia tão longe de seu lindo jardim. Com o passar do tempo, Maravilha voltou a sua casa, mas lamentavelmente se reuniu com o ogro que a pulverizou de pesticida e não pode cumprir com as regras que lhe haviam dado para que mantivesse sua liberdade e a levaram à estufa, mas não ao mesmo, à outro, um na grande cidade. Cinco anos e um dia tinha que ficar naquele lugar terrível. Maravilha leva 22 meses nessa imensa estufa, longe de suas amadas tulipas, e luta dia a dia com a esperança de se reencontrar com seus amados filhos.

[1] Em espanhol, “cuarto médio" é equivalente à secundária.

[2] Mais informações em: https://pajarxentrepuas.cl/2021/04/30/comunidadsorora/

[3] Encabeçado pela atriz, contadora de histórias e diretora Gabriela Fernández Chang, mestre em educação e artista cênica Myr Chávez e pela psicóloga Vania Gallardo López.

[4] Mais informações em: https://pajarxentrepuas.cl/vuelo-de-pajares/


 

Agencia Uno (2021). Fiscalía abre investigación por presunto maltrato en centro del Sename. El Desconcierto Chile. Disponible en: https://www.eldesconcierto.cl/nacional/2021/04/ 27/fiscalia-abre-investigacion-por presunto-maltrato-en-centro-del-sename.html

Albert, C e Urquieta Ch, C (2019). Menores del Sename denuncian abuso policial: lesiones oculares, tocaciones, amenazas de fusilamiento y golpizas. Revista Ciper Chile. Disponible en: https://www.ciperchile.cl/2019/11/15/menores-d el-sename-denuncian-abuso-policial lesiones-oculares-tocaciones-amenazas-de-fusilamiento-y-golpizas/

Castro, S. e Gallardo V. (2020) Investigación, Resistencias: Mujeres que han sido privadas de su libertad. Chile. Disponible en: https://pajarxentrepuas.cl/investigacionaccion/investigaciones/

Cortazar, A., Férnandez, P., Léniz, I., Quesille, A., Villalobos. C, y Vielma, C. (2015). ¿Qué pasa con los hijos de madres encarceladas? Cómo amortiguar los efectos nocivos para los niños cuyos padres están privados de libertad. Instituto de Políticas Públicas: UDP.

Davis, A. (2003). ¿Son obsoletas las prisiones? Bocavulvaria Ediciones Córdoba, Argentina.

Gendarmería de Chile (GENCHI). (2019). Boletín Estadístico: Población femenina privada de libertad. Santiago de Chile. Gendarmería de Chile (GENCHI) (2012). Manual de Derechos Humanos de la Función Penitenciaria. Disponible en: https://html.gendarmeria.gob.cl/doc/ddhh/Archivos_Adicionales/MANUAL_DDHH_GENCHI_ FINAL.pdf

Hoecker, K. (2020). Diagnóstico territorial sobre las artes, culturas y educación en contexto privado de libertad en la Región de Valparaíso, Chile. Fundación y Colectiva Pájarx entre Púas. Disponible en: https://pajarxentrepuas.cl/investigacionaccion/in vestigaciones/

Larroulet, P., Droppelmann, C., Daza, S., Del Villar, P., & Figueroa, A. Reinserción, Desistimiento y Reincidencia en Mujeres.

Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH) (2021). ESTUDIO DE LAS CONDICIONES CARCELARIAS EN CHILE 2019. Diagnóstico del cumplimiento de los estándares internacionales de derechos humanos en la privación de libertad. Disponible en: https://bibliotecadigital.indh.cl/handle/12345678 9/1727#:~:text=Resumen%3A,de%20las%20c% C3%A1rceles%20del%20pa%C3%ADs.

Palma, S (2021). El último grito de ayuda de una niña del Sename. The Clinic Chile. Disponible en: https://www.theclinic.cl/2021/08/16/el-ultimo-gr ito-de-ayuda-de-una-nina del-sename/

Restrepo, D. y Francés, P. (2016). Rasgos comunes entre el poder punitivo y el poder patriarcal. Rev. colomb. soc., 39(1), pp. 21-46.

Walmsley, R. (2018). World female imprisonment list. World Prison Brief

Vania Gallardo López | CHILE |

Psicóloga Feminista e Coordenadora da área psicossocial da Fundação e Coletiva Pájarx entre Púas.

Eva Lineros Vega | CHILE |

Licenciada em Antropologia Social - Equipe de pesquisa-ação Fundação e Coletiva Pájarx entre Púas.

Pajarx Entre Puas | CHILE |

Fundação e Coletiva Transdisciplinar - Feminista que trabalha a partir da Pedagogia, Corpo, Arte e Memória. O nosso principal objectivo é construir uma comunidade sorora de mulheres e dissidências, pessoas encarceradas, ex-carceladas e artistas feministas, que permita criar redes de contenção e criação para subverter e imaginar juntos um mundo sem prisões.

@pajarxentrepuas

Edições Anteriores

Assine nossa newsletter