Narrativas

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

ilustração: Tarântula - Guilhermina Augusti

Da janela do gabinete não se vê a rua?

Criminalização de travestis e os discursos do Tribunal de Justiça de São Paulo

Victor Siqueira Serra

| Brasil |

julho de 2022

Escrevi, há quatro anos,  o texto "Pessoa afeita ao crime": criminalização de travestis e os discursos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Nele, analisava 100 processos criminais envolvendo travestis, descrevendo como cada etapa do sistema de justiça criminal (polícias, Ministério Público, Judiciário) reforça estereótipos e estigmas, e como, para esse sistema, vale qualquer recurso para condenar essas pessoas, consideradas diferentes demais, questionadoras demais. Desajustadas. Desviantes. Perigosas.

Ao longo do fluxo do sistema de justiça criminal, desde as ocorrências e investigações policiais até a "ponta final" do processo (Tribunais de Justiça estaduais, STJ ou STF, a depender do caso), há protocolos e procedimentos. Há possibilidades de reverter erros e injustiças. As instituições, porém, não costumam se questionar umas às outras. Na "guerra contra o crime" — que na verdade é uma guerra contra territórios e populações pobres, em sua maioria negras, pois grandes empresas e empresários que cometem crimes econômicos e ambientais não conhecem prisão, tortura e tiros — o sistema entende que qualquer questionamento ou denúncia de uma instituição contra outra significa enfraquecer o seu lado. Perder a guerra.

A elaboração tendenciosa dos boletins de ocorrência, a falta de investigação rigorosa, os dois pesos, duas medidas para colher e avaliar depoimentos de testemunhas, os julgamentos com qualificadoras e aumentos de pena absurdos, tudo aponta para como o braço armado do Estado não sabe (ou não quer) lidar com as questões de pobreza e marginalização que batem todos os dias nas portas das delegacias e fóruns. Digo “braço armado”, mesmo que promotores e juízes raramente usem armas. Porque no mundo em que vivemos, há palavras que autorizam tiros.

Digo “braço armado”, mesmo que promotores e juízes raramente usem armas. Porque no mundo em que vivemos, há palavras que autorizam tiros

Algumas questões que discuti naquele texto ficaram ainda mais evidentes nos quatro anos em que continuei atuando com pessoas criminalizadas, dentro e fora das prisões. A primeira delas são os casos em que travestis são condenadas por roubo, ao se desentender com clientes. Neste país, o que mais mata pessoas LGBT+ no planeta e o que mais consome pornografia com pessoas trans, que exclui travestis do mercado de trabalho formal e criminaliza os mercados informais, quase 90% das travestis exerce algum tipo de trabalho sexual, segundo a ANTRA.

A prostituição, que a rigor não é crime, no Brasil, acaba sendo criminalizada, quando essas mulheres precisam trabalhar em espaços urbanos isolados, escondidos, pois seus clientes não costumam querer ser vistos com elas. Espaços ermos, nas cidades com grande circulação de pessoas, costumam atrair todo tipo de atividade. Costumam ser vistos como lugares perigosos: malocas, zonas, antros. E as pessoas que habitam territórios perigosos são vistas como pessoas perigosas. Criminosas em potencial. Isso aciona um policiamento mais constante e, às vezes, violento, que gera um ciclo de criminalização.

 Nesse contexto de suspeita e violência, as travestis combinam o valor do programa com clientes que, às vezes, pagam a menos ou se recusam a pagar. Distantes das câmeras e dos tribunais, o que vale nesses lugares é a lei da rua. Na rua, quando há conflito sobre o pagamento de trabalhos sexuais, é a palavra delas contra a dos clientes. O valor do que é dito depende de quem diz, assim como quem tem o poder de decidir.

A segunda questão são os casos envolvendo tráfico de drogas. Assim como outras populações pobres e periféricas, travestis são constantemente criminalizadas por portar pequenas quantias de drogas, sem flagrante de venda ou violência, sem que importe se as portam para uso próprio ou de seus clientes. Também não importam suas condições de vida e sobrevivência, dentro e fora da prisão.

Dentre os cem casos que analisei, muitos dos que envolviam tráfico aconteceram dentro das prisões: no cárcere, muitas travestis sobrevivem de lavar roupas e celas, da prostituição e do trabalho de guardar drogas. Quando a droga é apreendida, são elas as acusadas e condenadas, não importa se houve investigação ou não, se há testemunhas ou não, se faz sentido alguém que mal tem comida dispor de grandes quantidades de droga. Para o sistema, o que importa é alguém ser condenado, servir de exemplo, preencher as metas de produtividade. Matar a sede de vingança.

Para o sistema, o que importa é alguém ser condenado, servir de exemplo, preencher as metas de produtividade. Matar a sede de vingança

Em terceiro, há a questão de que travestis não aparecem como vítimas de crimes como furto, roubo, agressão, discriminação, calúnia, injúria — apenas de homicídio. Nesses casos, quando já foram mortas (ou quase), o judiciário condena os réus a penas altas, alegando até a qualificadora de motivo torpe, uma vez que que “é inaceitável em pleno século XXI alguém morrer apenas por ser quem é”. Descrevo isso como "só na morte se reconhece a vida", porque o mesmo judiciário que prende esses assassinos de travestis, discursando sobre o preconceito e violência que elas precisam enfrentar, prende também centenas de travestis — nas mesmas unidades prisionais.

Enquanto estão vivas, seus nomes sociais são desrespeitados, apesar de diversas leis e decretos obrigarem seu uso em instituições públicas; o atendimento médico e tratamento hormonal lhes são negados, na prisão e fora dela; são excluídas do mercado de trabalho, desrespeitadas em escolas e outros espaços públicos; são empurradas para as margens da sociedade, e depois criminalizadas por estarem marginalizadas. Enquanto estão vivas, sua cidadania e dignidade são esmagadas. São presas e mortas, em massa. Somente na morte, elas são reconhecidas como humanas. Perigosas e criminosas quando vivas, mártires quando mortas.

O mais importante não é entender se elas realmente roubam seus clientes ou repassam drogas. As presas culpadas existem, assim como existem as inocentes. As vítimas de violências, ameaças e extorsões que não podem recorrer ao sistema de justiça, por saberem que não serão acolhidas, e sim, desacreditadas, contestadas e culpadas. O mais importante é entender que não importa quantas testemunhas de defesa, câmeras de segurança ou provas materiais existam: o sistema, quando quer condenar alguém, condena. Por serem pobres e prostitutas, pessoas violentas e perigosas, o sistema de justiça criminal condena muitas travestis a qualquer custo. Deslegitima as suas narrativas e legitima práticas institucionais questionáveis. As travestis, por serem travestis, não são tratadas como pessoas que podem, mas que devem ter cometido os crimes de que foram acusadas. Uma expectativa transformada em realidade. Uma profecia que se cumpre à força: a força de uma ameaça, de um tiro ou de uma canetada.

Promotores, juízes e desembargadores vivem vidas muito diferentes daquela que vivem as pessoas periféricas que costumam ocupar os autos dos processos e os bancos dos réus. Pelos salários que recebem, figuram entre os 10% mais ricos da população brasileira. Os guarda-costas e os carros blindados a que estão acostumados são uma realidade distante dos barracos sem saneamento básico. E, ainda assim, o judiciário diz julgar a partir de uma suposta experiência comum, qualifica discursos e situações a partir do que considera verossímil. Não compreende, entretanto, os conflitos, as intenções e as necessidades de quem vive essa outra vida – o que parece real ou plausível no ar-condicionado dos carros e mansões muda bastante, quando se tem o sol e mais nada sobre a cabeça. Lá do alto do prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo, no centro higienizado e elitizado da maior metrópole da América Latina, só pode ver quem se atreve a olhar. Da janela do gabinete, não se vê a rua.

Continua urgente arrombar as janelas dos gabinetes, fazer entrar o cheiro, o som e o caos da rua. E, se não abrirem as janelas e os olhos, vamos entrar

Nos últimos quatro anos, algumas amigas travestis conseguiram terminar os estudos. Algumas conseguiram empregos. Outras tiveram recaídas no uso abusivo de drogas e estão tentando se recuperar e reorganizar. Duas foram presas, uma delas, injustamente – e ela agora está livre. Duas faleceram. 

E hoje, como há 4 anos atrás, continua urgente arrombar as janelas dos gabinetes, fazer entrar o cheiro, o som e o caos da rua. Fazer com que vejam as desigualdades, as injustiças e o desespero. Que reconheçam essas vidas como vidas legítimas antes de morrerem. Que não confundam vingança com justiça.

Que vejam os recomeços e as redenções. E, se não abrirem as janelas e os olhos, vamos entrar. Para quebrar o ciclo de violência e criminalização. Negar a profecia. Construir alternativas. Para que a pista e a prisão não sejam o destino certo de tantas travestis. Para que não exista exploração nem existam prisões. Porque a fome e a dor não esperam. A esperança também não.


 

Victor Siqueira Serra | BRASIL |

Graduado e mestre em Direito. Abolicionista penal, educador popular e facilitador de justiça restaurativa. Pesquisa segurança pública e criminologia. Atualmente é gerente de um serviço da rede de assistência social em São Paulo.

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