literatura

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

ilustração: Yhuri Cruz

Rememoração

conto de Walidah Imarisha

| EUA |

agosto de 2022

traduzido por Jemima Alves, revisado por Cassia da Rosa e Oliveira

Ayo permaneceu à margem do jardim comunitário e percorreu com os olhos a reunião no Cityheart. Perto dali, gritinhos eufóricos ecoavam do parque enquanto os pequenos brincavam sob o olhar atento dos que hoje cumpriam a função de cuidadores. O vento agitava as tendas em cores festivas sob as quais sentavam-se os mais velhos e quem mais delas precisasse, para o círculo daquele dia. Em grupos, as pessoas conversavam animadas antes do início do evento, desmentindo sua solenidade. Ela viu tantos rostos conhecidos, gente com quem havia crescido na Freedelphia, e havia caras novas também – refugiados recém-chegados em busca de um lugar para chamar de lar, pelo menos por ora. Ayo conhecia todo mundo aqui, mesmo os novos. Para participar do círculo de justiça, as pessoas tinham que estar aqui há pelo menos seis meses e integrar pelo menos um projeto de responsabilidade comunitária. Era preciso mostrar comprometimento com o todo, antes de poder determinar o que significava justiça para esse todo.

Se eu fosse refugiada, talvez não cumprisse os requisitos para participar, Ayo pensou com desânimo. Os círculos de justiça já pareciam para Ayo mais um peso que um privilégio. Aquele de duas semanas atrás, em especial, tinha sido extenuante — havia durado vinte horas. O agressor e o agredido afinal chegaram a um acordo, assim como a maior parte da comunidade, mas o tempo e o esforço que isso exigiu... E os círculos estavam mais frequentes. Quando Ayo era mais nova, havia talvez um ou dois a cada ano. Mas com a escalada da guerra, da escassez de recursos, muitas pessoas chegando dos territórios da UCL, sem nunca ter participado da vida cooperativa antes — parecia que o trabalho em todas as frentes não terminava nunca. E diferentemente de outras áreas da frente do serviço de liberação, como o cultivo de alimentos, a assistência infantil ou a manutenção da paz, não havia rotatividade; todos na comunidade tinham de participar de todos os círculos de justiça, fossem um por ano ou um por dia. 

Ayo balançou a cabeça. Não sabia quantos mais desses existiam nela.

“Olá, amada”, disse uma voz profunda e suave. 

Ayo se virou para ver sua mentora Zaza, e as duas se abraçaram. Ela sempre tinha gostado muito dos abraços de Zaza, bem mais alta que ela. Nos braços dela, Ayo sentia-se em uma atmosfera de proteção. 

De pronto, Ayo se sentiu mais firme. Foi transportada para sua infância, quando estudava com Zaza todos os dias. Agruparam as duas por causa da natureza turbulenta e temperamental de Ayo; pensava-se que, com sua calma inabalável, talvez Zaza ensinasse a Ayo tanto quanto seu conhecimento de matemática e jardinagem. E funcionou: mesmo hoje, sempre que Ayo ficava agitada, fechava os olhos e se imaginava próxima a Zaza no jardim da comunidade, com o sol lhe aquecendo as costas. Do canto do olho, Ayo costumava observar Zaza, com seus longos dreads grisalhos, enrolados no topo da cabeça, e as mãos fortes, já envelhecidas, colocando com cuidado as mudas na terra. Essa lembrança sempre centrava Ayo.

“Você tem falado com Essakai, nos últimos dias?”, Zaza perguntou, trazendo Ayo de volta para o presente.

 O vento eriçou o afro de Ayo, brincando com seus cachos, como Essakai — ou Kai, como diziam os mais chegados — sobrinhe dela, fazia desde que eram mais noves. Apesar de serem família escolhida, pareciam-se muito mais do que muitos irmãos de sangue. A mesma pele amendoada, os mesmos cabelos rebeldes, o mesmo sorriso malicioso, embora Essakai o exibisse com muito menor frequência que Ayo. Com dois anos a mais, era Kai quem tinha a mente inquisitiva – quando criança, sempre queria saber os porquês do mundo. Para Kai, não bastava saber que algo funcionava, tinha que saber como e por quê. Não admira que nossos quatro pais pedissem à cooperativa tantos mentores para nós, Ayo refletia. Entre as infinitas perguntas de Kai e meus chiliques, dávamos mais trabalho do que todos os nossos outros irmanes e sobrinhes juntos.  

“Sim”, Ayo respondeu a Zaza. “Esperam conseguir revezar a tempo de estar em casa no Dia da Abolição. Você sabe como Kai adora essas celebrações”. Ela alcançou um dos tomates que cresciam na rama perto dela e o tocou de leve. Ainda não estavam maduros, mas não demoraria. 

Zaza riu. “Sim, Essakai adora as festas desde criança. Vocês dois gostavam. Apesar de você gostar mais das encenações do Dia da Abolição e pedir para participar delas bem antes de ter Idade de Escolha, e Essakai preferir falar com os mais velhos sobre como foi vivenciá-lo. Essakai tinha lido todos os textos, visto todos os hologramas, e ainda assim, tinha muitas perguntas sobre isso.”

Ayo sorriu diante da lembrança, e suspirou: “espero que Kai esteja aqui neste ano. Mas nunca se sabe, com a guerra.”

Havia quase um ano que não se viam, desde que Kai tinha se voluntariado para lutar na guerra popular contra a UCL (na cabeça  dela, UCL era a União Confederada Contra a Liberdade, em vez de União Confederada da Liberdade, que era como as nações capitalistas restantes oficialmente chamavam a si mesmas). Ayo e Kai fizeram várias holochamadas, durante as quais Essakai compartilhou um pouco sobre a situação no front. Lá, apoiavam a formação de novos territórios liberados todos os dias, mas o processo era lento e tinha um custo humano e ambiental muito alto. Os Territórios Libertados estavam finalmente vencendo, mas mesmo vencendo, custava caro.

Ayo olhou à sua volta, considerando o espaço de reunião de sua comunidade, Cityheart, e a cidade ao redor. Casas geminadas pintadas em cores vibrantes, unidas ombro a ombro, formavam um círculo protetivo. As casas eram velhas, algumas tinham avarias de quando a cidade foi liberada, mas muito bem cuidadas e visivelmente muito amadas. Freedelphia fora liberada antes de Ayo nascer, e ela se esforçava para imaginar como era a vida para Zaza e os outros mais velhos que haviam crescido aqui. Ela sempre se admirava da força e da coragem necessárias para se rebelarem e começarem a Libertação — um dos primeiros territórios a fazê-lo. Enfrentaram tropas policiais, militares e mercenários. Bem, ela não precisava imaginar, pois estivera no dia da Rememoração, e pôde sentir. Sentiu na própria pele o que eles sentiram. Ela sabia como era ter o medo gritando nos ouvidos, estar na companhia permanente da incerteza e da dúvida. Esta foi uma das razões de terem criado a Rememoração: para que nenhuma geração pudesse idealizar ou enaltecer o passado como algo intocável. 

Mesmo tendo vivido nas memórias daqueles que vieram antes, Ayo não conseguia compreender a decisão de Essakai por lutar as guerras de libertação. Sentia um temor constante por Kai e por todos que participavam da luta. Temia pelo que poderia acontecer a ela mesma e à sua casa e a tudo o que conhecia, se perdessem.

Uma dúvida acendeu nela, no dia em que Essakai disse que pretendia se voluntariar. A dúvida persistia e crescia a cada dia, a ponto de consumi-la. Ela se preocupava por não ser forte o suficiente para oferecer nada pela causa. Ela, que sempre fora a mais enérgica, que amava as encenações do Dia da Abolição – a demolição simbólica da última prisão com as mãos –, tinha ficado para trás, e Essakai, gentil estudante, ia arriscar a vida em defesa da liberdade.

O burburinho de Cityheart aumentou até chamar a atenção de Ayo. Hannon entrava no círculo, amparado pela família. Ela tinha conhecido Hannon quando criança. Era amigo de Essakai. Ayo ficou chocada ao saber que seria ele o centro do círculo de justiça de hoje. Hannon era tão parecido com Essakai: não tão inquisitivo, mas discreto e meigo. Assim como Kai, Hannon se voluntariou para lutar— mas foi ferido e enviado de volta. Seus ferimentos eram tão graves que os curandeiros se ocuparam primeiro do seu corpo, e, infelizmente, ele não pôde receber a cura da alma que os outros recebiam na Rememoração, ao voltar. Um dia, antes de começar esse tratamento, Hannon teve um ataque de fúria no mercado e atacou alguém sem razão aparente. Estava tão fora de si que os mediadores daquele ciclo tiveram que desacordá-lo.

E agora, aqui estão eles, em comunidade, para determinar o que fazer com Hannon. Doeu no coração de Ayo vê-lo cabisbaixo, abatido, esperando pelo início do seu círculo de justiça. Ela tinha certeza de que o círculo chegaria a um acordo; Hannon já havia expressado profundo remorso e dito que aceitaria o veredito da comunidade. Mas quanto tempo levará para tratar Hannon, se é que isso vai ser possível?, Ayo pensava. Ele tinha que ser curado, para que não fizesse mais isso, ou voltasse essa dor contra si mesmo. Se não pudesse ser curado, o que seria feito dele?

Ela esperava que o acolhimento o ajudasse a voltar a si, e achava bom que os círculos de justiça começassem justamente com esse momento, em que cada pessoa da comunidade falava de uma boa lembrança que tinha da pessoa agressora, de modo a lembrar a essa pessoa que ela é mais do que a violência cometida. Que ela tem sempre poder de escolha. 

Depois do acolhimento, a comunidade ouviria a pessoa que sofreu a violência – ela poderia compartilhar o que quisesse sobre o incidente, e também sobre a sociedade e como ela ofereceu ou deixou de oferecer apoio. Porque temos sempre que nos lembrar de que a justiça é relacional e é sistêmica, e devemos criar sistemas cada vez melhores para honrar e proteger todos os relacionamentos, Ayo já tinha a fala decorada. Mas isso era, em parte, o que tornava os círculos de justiça tão exaustivos. Havia os compromissos feitos pela pessoa agressora, mas também por muitos da comunidade, e a todo momento reimaginavam como as coisas aconteceram. Ayo aprendera que essa era uma grande oportunidade de reinventar continuadamente a sociedade — e acreditava nisto.

Ayo suspirou; também queria dizer que havia sempre mais trabalho por fazer. Ficava cansada só de pensar. E ver Hannon agora instilou nela um pavor terrível por Essakai. Até ali, o medo de que Kai não voltasse para casa em vida a consumia. Agora, tinha também medo de quem seria Kai, se voltasse. Que preço pagaria por lutar esta guerra pela liberação? E se ela tivesse que participar de um círculo de justiça para a doçura em pessoa, quando voltasse para casa com feridas tão fundas que alteraram a essência de quem era?

“Seu rosto reflete a aflição no seu coração”, Zaza disse baixinho. “Pode me contar.”

Ayo balançou a cabeça. Não queria contar à sua querida mentora que queria estar em qualquer lugar, menos aqui. Parecia covardia diante de tantos dando tão mais de si. Isto era a abolição. Os mais velhos lutaram para poderem ser responsáveis uns pelos outros. Esse direito era sua herança.

Zaza era a pessoa mais velha que Ayo conhecia. Não restavam muitos dos que participaram do primeiro Dia da Abolição, e Zaza estava lá. Estava lá para receber a família que retornava quando as últimas prisões nas redondezas de Freeladelphia fecharam. Ela viveu tudo isso, e ajudou a construir o mundo à volta deles. 

Mas embora muita coisa tivesse mudado, desde o primeiro Dia da Abolição, e as coisas estivessem impossivelmente melhores, ainda pesava. Todo o trabalho de criar esses processos trouxe muitos avanços tanto para a comunidade quanto para os indivíduos, mas não é num passe de mágica que se transforma o mundo. Só para aquele caso, ainda havia tanto para superar e curar. Imagine para os tantos outros casos que ainda estavam por vir.  

“Eu estava pensando”, Ayo começou devagar, quase com culpa. “Eu queria saber se não era mais fácil antes. Antes da abolição. Eu sei que não era certo, nem justo”, apressou-se em acrescentar, “é que me parece que seria muito mais fácil chamar alguém para lidar com estas coisas.

“Você passou por isso”, ela continuou, os olhos finalmente indo encontrar os de Zaza. “Não existe uma parte de você que sente falta de haver uma outra pessoa que tenha essa responsabilidade, em vez de ela ser sua?”

Zaza reconheceu a importância da pergunta com seu silêncio. Passados alguns momentos, Zaza pegou as mãos de Ayo — as duas tinham quase a mesma cor de pele. E porque a mão de Zaza era tão maior que a de Ayo, era como se a tivesse absorvido, e a mãozinha agora fizesse parte dela.

“Eu entendo a tentação, já que partilhar poder é também assumir responsabilidade. Mas não, eu jamais voltaria ao modo como as coisas eram antes.”

Seu olhar se perdeu em direção ao passado. “O povo negro assassinado nas ruas, sequestrado em túmulos e prisões. Partes de você estilhaçadas tão fundo, que continuavam cortando e sangrando pelo resto de vida. Tudo parte de um sistema que negava o seu poder, negava a sua história, as suas memórias, e dizia que a liberdade era isso mesmo. Mas sempre houve aqueles que sabiam que a verdadeira liberdade era conexão e comunidade. A libertação não significa nada se não for coletiva. 

“É por isso que criamos a Rememoração, para não esquecermos, e para que a sua geração, que veio depois, e as que vierem depois ainda, também se lembrem.”

Zaza fez sinal em direção a Waterway. Ayo sabia pelos filmes que Waterway em algum momento foi uma rua larga, cheia de carros. Mas os mais velhos escavaram-na e a transformaram num aqueduto. Escavaram até chegar ao rio, e Waterway se encheu de água, contornando o centro da comunidade. Zaza apontava a Rememoração do outro lado do Waterway: o prédio mais parecia ter brotado ali do que ter sido construído. Nele, ângulos dispostos em círculo criavam a sensação de infinito, e as trepadeiras e flores que se agarravam aos muros serviam tanto para mantê-lo refrigerado quanto conectado com a terra.

“É por isso que Cityheart e a Rememoração são tão próximos, e por que realizamos os círculos de justiça aqui. Há outros lugares de reunião em Freedelphia aonde poderíamos ir, mas aqui, estamos conectados à Rememoração, a um passado que não é passado, ao futuro que é agora. Nós fazemos justiça aqui sabendo que a fazemos sob os olhos atentos do tempo.”

Ayo olhou para o lugar, e se envolveu nos próprios braços, lembrando-se de sua única visita à Rememoração. Estava tão imersa na experiência do passado, que quase se afogou. Foi durante a Idade da Escolha, que era diferente para cada pessoa. Para ela, foi aos onze anos; para Essakai, mais precoce, aos oito. Ayo se lembrou do quanto importunou Kai para que lhe descrevesse como era, quando voltou de lá. Mas Kai restringiu-se a balançar a cabeça e dizer “Eu não conheço palavras que pudessem descrever essa experiência.” Ayo não entendeu o que isso significava até ela mesma ir até lá. 

Zaza apertou a mão de Ayo com gentileza. “Talvez seja o momento de você Relembrar de novo.”

Ayo assentiu, respirou fundo e então cruzou uma das várias pontes de pedra sobre o Waterway. Ela olhava para baixo onde as águas serpenteavam enquanto ela passava. Zaza disse a ela que era parte da sabedoria ancestral que eles tinham re-Relembrado no tempo que se seguiu ao primeiro Dia da Abolição. A Rememoração precisava da fluição do rio, as correntes que se conectavam a tudo que foi e que é e que será. Somente quando o Waterway foi terminado, a Rememoração respirou pela primeira vez.

Ayo se lembrava de Zaza lhe contar que o nome “Rememoração” vinha de um livro chamado Amada da ancestral Toni Morrison.

Ayo caminhou até as pesadas portas redondas. Sobre elas se lia, em letras que pareciam muito mais um relevo próprio do que entalhado: “Sonhos de liberdade não vivem em tempo real”. Ela tocou as palavras com os dedos, e puxou as portas, entrando. Mergulhou na escuridão, uma escuridão visual e física. Sentia essa escuridão lhe pressionar a pele, fresca e tranquilizante. Era exatamente como da primeira vez em que entrou, mas de todo modo diferente, porque ela própria era também a mesma e outra. 

Abaixou para tirar os sapatos, como lhe disseram para fazer quando era criança. Sob os pés, ela sentiu a textura da grama, o que a deixou confusa na primeira vez e também agora — seria possível que houvesse grama crescendo aqui, na ausência da luz?

Ela esperou, na tentativa de acalmar sua respiração e sua mente. A visita anterior quase a consumira de tristeza e dor. Sue terceire genitore sugeriu que ela talvez ainda fosse muito nova para ir, e agora, olhando para trás, ela concordava. Enquanto outros estavam prontos na mesma idade e até mais jovens, ela não estava. É claro que, naquele momento, Ayo se rebelou, insistindo em ir. Contudo, viver nas memórias de seus ancestrais foi uma experiência dura e dolorosa. Ela nunca mais voltou, ao contrário dos outros, inclusive Essakai, que fez disso uma peregrinação anual do Dia da Abolição. 

Centelhas de luz brilharam na escuridão, surgindo do chão e rodopiando em desordem no ar. Chamavam-na para que avançasse, e ela seguiu sem hesitação, sabendo que seus pés encontrariam um caminho seguro. 

Quando se aproximou, a maioria das luzes se distanciaram dela, mas algumas se mantinham próximas, guiando seu caminho. Conforme ela avançava, ela e as luzes se fundiam. Uma explosão de luz dividiu sua consciência: ela existia aqui e em multiplicidade ao longo da história. A cacofonia de dor preencheu cada aspecto de Ayo. Os gemidos dos navios negreiros em seus ouvidos e o fedor em suas narinas. Seu sangue latejava em seus ouvidos, e ela olhava para o cano de uma arma, sabendo que o lampejo vermelho e azul seria a última coisa que veria. Uma corda atritava contra seu pescoço enquanto centenas de brancos escarnecedores lhe apontavam, rindo. O frio penetrava seus ossos numa cela de confinamento solitário, a luz forte acesa 24 horas por dia lhe ofuscava a mente. Sufocou com gás lacrimogênio, os pulmões clamando por ar, e viu, mesmo com os olhos embaçados, os soldados de aluguel enfileirados avançarem sobre ela. A única constante na vida das pessoas eram o choro e os gritos de socorro.

Ela tropeçou à frente, caindo sobre um dos joelhos. Lágrimas lhe marcavam as faces e soluços torturavam seu peito. Seu corpo inteiro tremia sob o peso do trauma geracional. 

Esta experiência era milhões de vezes pior do que ela se lembrava. Agora, entendia claramente as palavras de Zaza, e por que nunca acreditariam que as coisas tinham sido melhores no passado. Mas com tudo isso percorrendo suas veias, conectado aos seus genes, que esperança poderiam ter? Como poderiam encontrar paz se era disso que eram feitos? 

Ayo virou a cabeça em direção à porta; sabia que podia simplesmente sair dali, já. A Rememoração era uma escolha, não uma exigência. 

As poucas luzes restantes pairavam travessas na sua frente, chamando-a. Ayo não sabia de que precisava, mas sabia que precisava de algo, e não sabia onde mais procurar. Pensou em Essakai, e sua determinação se fortaleceu. 

Ela passou a manga da blusa no rosto, e se pôs em pé novamente. Deu um passo adiante, em direção ao próximo feixe de luzes.

Ayo se preparou para ser engolida pela dor e pela desesperança de novo. Em vez disso, no entanto, encontrou algo como uma corrente de rio flutuante. Sussurros nos limites de sua consciência que ficavam cada vez mais altos. Milhares de vozes falando nomes. Alguns, ela conhecia como mártires dos tempos anteriores à Abolição, assassinados pelos agentes do estado. Tantos outros, não conhecia, mas sentia que eram nomes antigos, que se imaginou terem se perdido há séculos. 

“Nada nem ninguém está perdido de verdade”, Zaza repetia. 

Os nomes eram levados pela corrente, e eram a própria corrente, e ela era levada pela corrente, e era a própria corrente; ela era cada um daqueles nomes, e ao enunciar seu próprio nome, ele soou como todos os outros nomes, mas ainda seu. Ao estender a mão para tocar os nomes, ela se sentiu como se tocasse a própria face. 

Por fim, o sentimento de conexão e completude esmaeceu, sem, contudo, desaparecer. Assentou-se sobre a sua pele, tornando-se parte dela. 

Sem qualquer hesitação, Ayo se fundiu com o feixe de luz seguinte, adiante dela.

Silêncio, a respiração suspensa de antecipação.

Em seguida, uma profusão de vozes em todos os tempos proferia as palavras: “Nós sabíamos que este dia chegaria.”

Uma explosão de vidas povoava sua mente, quando, mais uma vez, sua consciência dividiu-se em diversas realidades. À sua volta, centenas de milhares avançavam, empurrando os renques de policiais militarizados até retrocederem por completo e haver apenas canções e danças ocupando as ruas. O martelo em sua mão acertou o último prego da casa que construíra para sua esposa e filhos, todos nascidos na escravidão, e agora, aqui, estavam em uma casa que era deles. A sensação de muitos braços sustentando-a enquanto ela passava pelos portões da prisão que tinha consumido décadas de sua vida. 

Um êxtase tomou conta de todo o ser de Ayo, gerações da alegria negra transbordavam nela. Ayo percebeu que estava dançando, uma manifestação corporal livre, ofegante. Embora não tivesse consciência disto até então, o corpo sabia que era essa a reação correta.

Nunca tinha sentido nada parecido. Mas já não era primeira vez que passava por esta experiência, deve ter sentido. Como poderia ter esquecido disto? Como pode essa experiência não ter mudado a sua essência?

De súbito, ela se deu conta de que não chegara a completar a Rememoração na primeira vez. A primeira parte da re-relembrança a consumiu, e ela preferiu voltar. Ayo havia sentido apenas o trauma, nunca o júbilo das gerações de antepassados, ampliada e cultivada até penetrar em cada célula do seu corpo.

Ao invés de se entristecer por ter se privado disso por tantos anos, Ayo sorriu, cheia de gratidão por tê-lo vivido agora. 

“Obrigada”, ela sussurrou. E porque não lhe pareceu suficiente, gritou, “Obrigada!”

Ayo começou a cantar enquanto dançava.

“Obrigada, obrigada, obrigada, obrigada, obrigada...”

Houve um movimento da escuridão, uma contração. Ayo sentiu a escuridão abraçar todo o seu corpo, ao que ela levantou as mãos, lançando sua cabeça para trás, e liberou os sons mais alegres que pôde produzir.

Instintivamente, Ayo soube que havia completado sua jornada. À sua frente, da escuridão, ardiam inflamadas as palavras “Sonhos de liberdade vivem em você”. Era o espelho da inscrição na porta. Ela estendeu a mão e empurrou.

Ayo veio à luz. O sol quente sobre a sua pele como a alegria ancestral que agora ela sabia viver nela. 

Zaza deu um passo adiante, e a abraçou forte, e na pele, o abraço era como o calor do sol e a alegria. 

Zaza olhou nos olhos de Ayo. “Eu sei que é difícil. Estamos em período de transição, e de revoltas. Tempos como este demandam muito de nós. Pode parecer que seremos devastadas pelo peso de tudo. Mas é por isso que temos a Rememoração: para nos lembrarmos de que este momento não é único, embora ele não vá se repetir nunca mais.”

Zaza tomou a mão de Ayo. “Tudo é temporário, exceto isto”, ela disse, apertando sua mão.

Em seguida, soltou Ayo e, com um aceno da mão, reuniu a comunidade inteira diante delas. “E isto.”

Ayo assentiu com lágrimas de alegria nos olhos. Elas caminharam de braços dados para o círculo que se partiu organicamente como uma revoada de pássaros para abrir espaço para o retorno do membro rebelde.

“Vamos começar”, os três mediadores de justiça murmuraram em uníssono. 

E, cabeças baixas, todos os presentes começaram a cantarolar no mesmo fôlego, como se emanasse de uma mesma garganta.


 

Walidah Imarisha | EUA |

Educadora e escritora. Coeditora de duas antologias, Octavia's Brood: Science Fiction Stories From Social Justice Movements e Another World is Possible. Imarisha é autora de Angels with Dirty Faces: Three Stories of Crime, Prison and Redemption, que ganhou o Oregon Book Award de 2017, e da coleção de poesia Scars/Stars. Em 2015, ela recebeu uma bolsa Tiptree por seu trabalho de ficção científica. Imarisha atualmente leciona no Departamento de Estudos Negros da Portland State University e é diretora do Centro de Estudos Negros da mesma universidade. No passado, ela lecionou na Stanford University, Oregon State University e Pacific Northwest College of the Arts.

@walidahimarisha

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