Resenha

periferias 7 | desaprisionar o cárcere

ilustração: Mateus Rodrigues

Ghassan Kanafani: o escritor palestino cujas palavras não podem ser assassinadas

Primeira biografia de Kanafani em hebraico ecoa a resistência palestina em um momento em que a opressão se intensifica

Hagai El-Ad

| Israel | Palestina |

abril de 2023

traduzido por Jemima Alves

Introdução de Danny Rubeinstein, autor de “Why didn’t you bang on the sides of the tank?” (Por que vocês não bateram nas laterais do tanque?) — Yedioth Books (2022).

Já se passaram mais de cinquenta anos desde que Ghassan Kanafani, o escritor Palestino, foi assassinado em Beirute. Um assassinato elo na cadeia da campanha israelense contra o movimento nacional palestino. Há décadas desde então, Israel passou a instituir um regime de apartheid em todo o território sob seu controle, que se estendia do Mar Mediterrâneo ao Rio Jordão. É um regime este que consolida a supremacia de aproximadamente sete milhões de judeus sobre quase o mesmo número de palestinos vivendo em Israel/Palestina.

Os palestinos que vivem neste território estão fragmentados em uma geografia descontínua, cada qual com um nível específico de opressão e desapropriação empregado contra eles de acordo com a determinação israelense. Cerca de dois milhões de palestinos vivem em Gaza sob bloqueio anual; quase três milhões vivem sujeitados na Cisjordânia ou com o status inferior de residentes permanentes em Jerusalém Oriental; e, aproximadamente, dois milhões são cidadãos em condição de desigualdade no interior da Linha Verde (Fronteira de 1967).

Não foi por acaso que Ghassan Kanafani transformou-se no autor mais querido e conhecido pelo público palestino. Sua história de vida não se resume a história de um garoto de 12 anos de idade, da cidade de Acre, que se tornou refugiado, mas é também um símbolo de uma luta que nunca terminou. Mesmo agora, com o nacionalismo árabe sob declínio e o abandono da causa palestina pelas demais nações árabes, Kanafani permanece essencial. Seu legado literário relembra sua massiva audiência de fãs e leitores que devem continuar resistindo ao regime israelense, sem desistir. Apesar de a resistência palestina assumir diversas formas, algumas mesmo que violentas, a imagem de Kanafani está sempre presente. 

Após a Nakba, as pessoas palestinas estavam a ponto de ser eliminadas do palco da história. Kanafani, que pertence à geração da Nakba, foi vital para libertar o povo palestino dos grilhões deste destino. Sua vida, escrita e legado simbolizam esta luta pela libertação — libertação do destino do exílio e desapropriação, libertação da opressão israelense, libertação de consciência e libertação política na luta por liberdade, retorno e justiça. 

Israel ainda destina às pessoas palestinos a uma vida de aprisionamento permanente, seja a prisão do exílio ou a prisão de viver sob um regime de apartheid. A consciência de Kanafani, entretanto, desafia esta aspiração israelense e, não importa o que faça Israel, as palavras de Kanafani jamais poderão ser aprisionadas.

Justin McIntosh, CC BY 2.0

O retorno de Kanafani 

Entre em qualquer livraria de Israel, nos dias de hoje, e você provavelmente encontrará um novo lançamento sobre um dos maiores escritores que estas terras já conheceu, um autor cuja escrita continua a influenciar milhões: Ghassan Kanafani. Este, contudo, é o primeiro livro sobre a autor palestino escrito em hebraico — um palestino que até hoje Israel considera um terrorista. Nascido em Acre, em 1936, Kanafani foi exilado aos 12 anos durante a Nakba: “Quando chegamos à Sidon, já pela tarde, nos tornamos refugiados”, ele escreveu em seu autobiográfico Ard al-burtuqal al-hazin (A terra da laranja triste), de 1962.

Kanafani foi assassinado há 50 anos, em Beirute, junto com sua sobrinha de 17 anos, Lamís. Ele tinha 36 anos e nunca retornou para casa. Apesar disso, sua escrita, assim como seu retrato na capa deste livro envolvente, permanece comovente. Ler Kanafani permite que se comece a atar os fios da história que a maioria dos judeus prefere deixar soltas: “Você e eu e todas as crianças da nossa idade não entendemos o que estava acontecendo. Mas esta noite, nós começamos a atar os fios da história” Ardh al-burtuqal al-hazin (A terra da laranja triste). 

Em “Why didn’t you bang on the sides of the tank?” (Por que vocês não bateram nas laterais do tanque?), o jornalista Danny Rubinstein apresenta ao leitor de hebraico uma ideia considerada verdadeiramente subversiva no atual clima político de Israel: que a resistência palestina à empresa sionista não é “intrinsicamente antissemita”, pelo contrário, está enraizada em motivações factuais e políticas muito reais. A noção de conexão objetiva da história dos últimos 100 anos — sobretudo a do projeto político judaico na Palestina — à resistência palestina a este projeto pode parecer um tanto trivial. Entretanto, Israel ainda está tão imerso em sua própria propaganda, farisaísmo e auto-vitimização que continua regurgitando a mentira de que tudo nada mais é que uma forma palestina de antissemitismo, de rejeitar totalmente o judaísmo e agir contra os judeus “apenas por serem judeus”. E isto se dá pelo propósito de reduzir a resistência palestina a um projeto político específico de (muitos) judeus: Sionismo. 

Os patriarcas fundadores do Sionismo não se incomodaram com este tipo de propaganda sem sentido: eles eram muito mais decentes em sua compreensão da resistência palestina. Em The Iron Wall (Muro de ferro), de 1923, Jabotinsky escreveu: “... veja se há um único exemplo de qualquer colonização sendo executada com o consentimento da população nativa. Não há qualquer precedente”. Uma vez que a população nativa não pode consentir, há provavelmente uma “interferência forçada” com a implementação do Sionismo, não obstante a natureza “moral e justa” do movimento. “Justiça deve ser feita”, escreveu Jabotinsky, “não importa se Joseph, Simon, Ivan ou Achmet concorde ou não”.

Bem-Gurion concordou, certamente nesse ponto: “Queremos a mesma coisa que eles: tanto nós como eles queremos a terra de Israel. Esta é uma contradição fundamental. Nunca ocorreu na história, nem acho que ocorrerá, um caso em que um povo voluntariamente abra mão de sua terra — eles acreditam que esta é a terra deles — para permitir que uma outra nação a ocupe” (1936).

“De longe, ouvimos o barulho dos tiros”, escreveu Kanafani. Esses tiros ainda estão estalando passados 74 anos, e continuarão reverberando. Rubinstein transporta o leitor de volta a 1948, quando dos eventos da Nakba, cujos desdobramentos moldaram a identidade, a escrita, a vida e a morte de Kanafani. Lemos sobre o que fizemos com os palestinos de Lidda e a deportação de dezenas de milhares — e ouvimos diretamente de israelenses e palestinos que estavam lá. 

Aqui está a descrição de um israelense sobre o que aconteceu em 12 de julho de 1948: “a população de Lod (Lidda) não saiu voluntariamente. Não havia maneira de evitar o uso da força e tiros de advertência para fazer com que os residentes marchassem 15-20 quilômetros até o ponto onde encontrariam as forças da Legião (Árabe). Aqui, um relato palestino: “Era meio-dia, fazia um calor terrível. Não havia água. Velhos e crianças caíam à beira do caminho. Muitos ficaram desidratados e morreram. Os dias de horror em Lidda permaneceram comigo durante toda minha vida... trinta mil pessoas marchando e chorando... gritando de medo... mulheres com bebês e crianças de colo”.

O israelense supracitado era o então comandante da Brigada de Harel, Yitzhak Rabin — o homem que dava as ordens. O palestino, um estudante de medicina, George Habash, que mais tarde fundaria a Frente Popular para Libertação Palestina (FPLP) e cuja vida se ligaria com a de Kanafani até o final: Kanafani fundou o semanário da organização, al-Hadaf, em 1969, e o editou até sua morte, quase três anos depois. 

Rubinstein reforça que a maior parte dos israelenses reconhece o nome de Kanafani em um contexto político, principalmente como o porta-voz mais proeminente da FPLP. Embora palestinos se lembrem de Kanafani primeira e principalmente por sua literatura. Sua escrita certamente tocou em questões políticas e formou a visão de muitos palestinos. 

Rubinstein oferece a seus leitores uma historiografia de Kanafani que traça sua vida como um refugiado em Damasco, um professor no Kuwait, um jornalista em Beirute — e um autor tecendo sua literatura por toda parte. Uma atenção especial é dedicada a dois trabalhos do autor palestino: Retorno à Haifa e Homens ao sol1N.E: Homens ao Sol, com tradução de Safa Jubran, é lançado pela editora Tabla em abril (2023) editoratabla.com.br/catalogo/homens-ao-sol/.. A famosa citação da novela Homens ao sol: “Por que vocês não bateram nas laterais do tanque?” é o título do livro de Rubinstein, e “reflete todas as laranjeiras que ele havia deixado para trás para os judeus” Ardh al-burtuqal al-hazin (A terra da laranja triste). 

Oscilando entre literatura e realidade, sombras e espelhos, os ecos reverberam página a página. Rubinstein nota que, em 1 de janeiro de 1965, a primeira vez que um agente do Fatah foi assassinado, infiltrando-se em Israel desde a Jordânia para o National Carrier, o principal canal de água do país. Ahmed Musa cruzou para Israel com sucesso, mas ao tentar sua segunda travessia — de volta à Jordânia — foi alvejado e morto por guardas jordanianos. Kanafani publicara Homens ao sol, em 1963, dois anos antes. Os protagonistas da narrativa Abu Kais, Assad e Marwan sobreviveram sua primeira travessia, contudo encontraram sua terrível morte na segunda.

O livro é também repleto de corpos despedaçados. Um deles é do personagem de Kanafani de uma antologia de 1960, Abu Othman, que queria ser enterrado em Ramle, sua cidade natal, e por isso escolhe viver sob o regime israelense. Contudo, depois de ver soldados israelenses assassinando sua esposa e filha diante de seus olhos, ele explode a si mesmo no quartel general do comando. Assim, Abu Othman permaneceu em sua terra natal, mas seu sonho foi destruído. Ou ainda considere o real corpo de Maher Habeyshi, de Nablus, desmembrado ao explodir a si mesmo em um ônibus em Halisa, num bairro de Haifa, em 2001 — próximo ao local em que os protagonistas de Retorno à Haifa viviam. E, claro, há o onipresente corpo despedaçado de Kanafani, assassinado em julho de 1972, em Beirute. Os jornais, à época, reportaram que trinta mil pessoas compareceram ao seu funeral, realizado no exílio do qual nunca retornou.

 

originalmente publicado em hebraico (Haokets)
e em árabe (Al-Quds)


 

Hagai El-Ad | Israel |

Diretor Executivo de B’Tselem.

@HagaiElAd

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