superação de conflitos plurais em contexto de pandemia

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

foto: Patrick Mendes

A favela quer viver!

Informação, mobilização e solidariedade para enfrentar os impactos da pandemia nas favelas e periferias do Rio

por Gabrielle Araujo e Priscila Rodrigues | Observatório de Favelas

| Brasil |

agosto de 2020

"Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual". Era década de 90 quando Mano Brown entoou o verso em O Homem na estrada. Em uma analogia, a canção reflete, de maneira lúcida, os percalços que moradores de favelas e periferias vivenciam diariamente. Desde o início de março, a população brasileira sofre com o aumento dos casos de contaminação e óbitos causados pela COVID-19. Porém, moradores de territórios populares lidam não somente com um vírus invisível que vitimiza milhares de pessoas diariamente, mas também com a desigualdade social latente no país.  Frente a isto, mobilizações de solidariedade eclodem pelo país como uma forma de reduzir os impactos causado pela pandemia.

No Rio de Janeiro, a política de segurança pública também segue ceifando, como uma navalha afiada, vidas negras e pobres. De acordo com dados da Rede de Observatórios da Segurança, as operações policiais aumentaram no Estado do Rio de Janeiro e superaram os números de 2019. Apenas em abril, foi registrado um aumento de 28% em relação ao mesmo período do ano passado. Com o crescimento no número de intervenções, a letalidade policial também cresceu: 58% em comparação a abril de 2019. Entre as vítimas há João Pedro, de 14 anos, Rodrigo Cerqueira, de 19 anos e João Vitor, de 18 anos. mobilizações de solidariedade eclodem pelo país como uma forma de reduzir os impactos causado pela pandemia

Sem acesso a atendimento eficaz nas unidades de saúde, além da superlotação, é preciso enfrentar ainda a ausência de recursos como testes, medicamentos e equipamentos. Decretado pelo governador do Estado em Diário Oficial no dia 17 de março, o isolamento social somou-se ao desamparo do Estado. Sem estratégias que viabilizassem a garantia de direitos básicos, a desigualdade social se aprofunda. Das 1019 favelas que integram a capital carioca, apenas 11 possuem unidades básicas de saúde. Os dados integram a sétima edição do Mapa Social do Corona, boletim quinzenal realizado pelo eixo de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas para visibilizar os impactos desiguais da pandemia na cidade do Rio de Janeiro bem como identificar uma agenda de urgências colocadas e de práticas significativas para o enfrentamento da atual crise sanitária a fim de incidir sobre o debate público e as políticas públicas da cidade. 

operações policiais aumentaram no Estado do Rio de Janeiro e superaram os números de 2019

A edição também evidencia que as maiores taxas de letalidade sobre a COVID-19 do Rio tem cor e endereço fixo nas regiões periféricas. “Essa realidade perversa, composta por um conjunto de elementos estruturais, possui entre seus pilares o racismo. Longe de termos a pretensão de esgotar aqui essa temática dentro do atual contexto de pandemia na cidade do Rio de Janeiro, esperamos no entanto contribuir com conceitos, dados e análises capazes de lançar luz sobre este problema no sentido de se somar a tantos outros esforços para a superação dessa crise”, enfatiza Lino Teixeira, coordenador de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas.

as maiores taxas de letalidade sobre a COVID-19 do Rio tem cor e endereço fixo nas regiões periféricas

O exercício é prático: nos bairros mais ricos e majoritariamente branco, há um indicativo de 5% dos óbitos totais de coronavírus do Estado, em comparação a 26,9% de apenas uma favela de Campo Grande, localizado na zona oeste do Rio. Em relação à raça, na Maré, 43% das mortes por COVID-19 são de pessoas negras, enquanto que brancas representam 26%. Não muito distante, na Rocinha, 46% dos mortos são negros, com 37% de pessoas brancas. 

Acesso à saúde é direito

“O exercício de pesquisar e ensinar faz com que a gente esteja sempre conectado com aquilo que acontece, como as situações de saúde que mais precisam de atenção e que se configuram como ‘problemas’ de Saúde Pública que precisam ser enfrentados. Penso também, continuamente, na formação do nosso sistema de saúde, no planejamento de políticas públicas e na atenção planejada e implementada nos serviços para a população”, afirma a a enfermeira, doutora em Saúde Coletiva pela Fiocruz e professora na Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ, Andreza Rodrigues que se dedica à formação de enfermeiros e de outros profissionais de saúde. 

Andreza ainda participa da campanha “Como se proteger do coronavírus”, iniciativa de comunicação do Observatório de Favelas, com apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),  que a partir de diálogos com especialistas de diversas áreas busca produzir conteúdos sobre proteção e cuidado elaborados por e para moradores de favelas e periferias. As peças gráficas, textos, áudios e vídeos produzidos na campanha são divulgados nas redes sociais e whatsapp da organização.

A professora da UFRJ alerta sobre a importância de que as recomendações sobre cuidados e prevenção à população seja transmitida de forma objetiva. “Pensando os profissionais de maneira geral, quanto mais perto eles estão de onde as pessoas vivem, maior é a chance deles disseminarem informações. Por isso, os profissionais da atenção primária são os que mais efetivamente podem criar essa comunicação com os moradores, tendo papel fundamental nesse processo”, completa.

Formada por uma equipe multidisciplinar, a Atenção Primária à Saúde (APS) enfrenta medidas de desmantelamento desde 2017. De acordo com o Ministério da Saúde, até 2019 eram cerca de 90 milhões de pessoas cadastradas nos serviços da APS. O número pode ser ainda maior ao passo que avança o cadastro efetivo da população no sistema. “Neste momento da pandemia, a gente percebeu que o acesso a serviços de atenção primária é fundamental para que as pessoas possam receber cuidado adequado, pois através dela podemos considerar que em torno de 80% dos casos podem ser resolvidos. "a gente percebeu que o acesso a serviços de atenção primária é fundamental para que as pessoas possam receber cuidado adequado, pois através dela podemos considerar que em torno de 80% dos casos podem ser resolvidos." Embora tão sucateada e tão esvaziada de profissionais, ela ainda é a nossa chance de nos reorganizarmos para garantir cuidados em saúde a grande parte da população”, afirma Andreza.

A desigualdade também impacta a forma como a saúde é ofertada para algumas populações, pois as unidades de saúde ainda não estão presentes em todas as favelas. Para o futuro, não mais vestir os erros do passado é uma premissa fundamental, inclusive na saúde. “Somente com o reconhecimento e com a garantia de direitos para todos é que vamos conseguir de algum modo sair dessa”, finaliza.


Cuidado e proteção em pauta

Enquanto o futuro não chega, a comunicação popular se apresenta como uma importante aliada sendo a ponte entre a informação de qualidade e os moradores de favelas e periferias. Com os crescentes aumentos de pessoas infectadas por coronavírus nas periferias, as produções locais superam as dificuldades impostas pela COVID-19 para dialogar com os territórios sobre saúde e prevenção. Para o jornalista formado pela PUC-Rio, fundador do Fala Roça e editor do Favela em Pauta, Michel Silva, “se não fossem os veículos de produção das favelas, não existiriam muitos assuntos a serem divulgados”, completa. O jornal, que possui uma versão online, criou uma categoria em seu site para divulgar informações apenas sobre o coronavírus.

No início do ano, o Rio de Janeiro foi afetado por uma crise no fornecimento de água potável. Alguns meses depois, com a pandemia, em março, os moradores de favelas ainda continuaram com o acesso à água comprometido — o que impactou diretamente na primeira recomendação de prevenção ao coronavírus emitida pelos órgãos de saúde: lavar as mãos. Em um estudo realizado em março pela Defensoria Pública do Estado, foram feitas 397 denúncias de falta de água. Dessas, 27 são da Rocinha cerca de 6,8%. Em julho a situação voltou a se repetir e a favela ainda lidou com mais de 7 dias sem água nas torneiras.

Um assunto que tem ganhado destaque na mídia é a subnotificação dos casos de COVID-19. Na Rocinha, em junho foi criada a “Comissão de Óbito”, com decreto publicado em Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, para fiscalizar as possíveis mortes pelo vírus na região. Porém, a decisão não foi divulgada. “Ela foi criada de uma forma bem silenciosa. Acabei descobrindo essa notificação lendo o D.O., que é um hábito que faço normalmente. Não tinha nenhuma liderança comunitária nesse trabalho”, afirma Michel. Frente a isso, há mobilizações de organizações a divulgarem os números reais de pessoas infectadas e mortas pelo vírus. Como exemplo, há o boletim “De Olho No Corona”, da Redes da Maré, e também o painel “COVID-19 nas Favelas”, do jornal Voz das Comunidades, no Alemão.

Michel ainda aponta o descompromisso das autoridades com as vidas nas favelas, o despreparo e a estigmatização que alguns jornalistas de veículos mais tradicionais carregam ao falar das regiões periféricas como desafios para realizar a comunicação nas favelas. “O que os gestores falam, reflete muito na favela. Um exemplo disso foi quando o Bolsonaro falou que iriam morrer poucas pessoas por causa do coronavírus. Após essa fala, muita gente começou a ir para a rua e reduzir os cuidados; O segundo é a grande mídia, o que eles falam ainda reflete na vida das pessoas de favelas”, acrescenta.

Como alternativa, Michel cita a necessidade da produção de telejornalismo na favela, pois é uma linguagem que consegue atingir a todos os públicos de diferentes contextos sociais. “Pode parecer irreal, a gente pensar na comunicação de favela com uma emissora, pois tem que ter uma concessão e tem os equipamentos que são custosos. Mas uma saída no momento pode ser tentar uma grade de horário em um dos canais que já existem, até porque são concessões públicas e nós temos direito a esses espaços”, defende.

Em março, de acordo com pesquisa divulgada pela DataFolha, os jornais de TV lideravam o índice de confiança da população sobre as informações de coronavírus com 68%. Empresas privadas de comunicação viram sua taxa de audiência decolar de forma significativa não vista desde 2009. Para que resultados assim sejam refletidos também em favelas, Michel pontua a relevância da educação e do uso das ferramentas gratuitas disponíveis. 

Para o pós-pandemia, o jornalista defende a necessidade da articulação entre comunicadores de outros territórios, para aumentar ainda mais a rede de atuação e o impacto das produções, principalmente na promoção à saúde. “Uma coisa que mudei no meu vocabulário foi a questão do jornalismo comunitário ou popular. Agora falo sobre jornalismo de favelas, porque envolve mobilização popular, engajamento das pessoas e é um jornalismo usado como ferramenta de mudança”, encerra.


Estado ausente, solidariedade presente

Lutar por justiça e memória dos familiares que foram vítimas do Estado é uma atividade que a historiadora Nivia Raposo, moradora de Nova Iguaçu e parte da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense, desempenha há alguns anos. Com a chegada da COVID-19, os esforços agora também são voltados a garantir que as famílias tenham comida no prato. Junto às outras mães que participam do coletivo, elas constroem pontes entre pessoas engajadas a mudar a realidade de famílias que tiveram a sua renda duramente afetada pela crise. Distribuição de cartões de vale-alimentação e cestas básicas são algumas das ações desenvolvidas. “Articular em tempos de pandemia ficou um pouco complicado. Porém, nós temos mães em vários territórios e isso ajuda na hora da distribuição de cestas. A Rede já possui articulações anteriores e esses parceiros se moldaram para atender diante deste contexto”, afirmou.

Questionada sobre a importância de iniciativas assim, ela é categórica em afirmar que colaborar com o outro é uma ação nobre, mas não exime que esse papel deveria ser dos governantes. “Acredito que essa ajuda é uma medida paliativa. Nossa função social [Na Rede de Mães] é outra. Mas, entendemos que essa é mais uma das muitas obrigações que o Estado não cumpre. Fazemos como nossos antepassados: um ajudando ao outro. Nas favelas e periferias é assim. É o nós por nós levado a sério. Tão literal quanto nossa luta por sobrevivência diária”, acrescenta. 

Com o exercício de coletividade levado à risca, mães da Rede também atendem a outros bairros da Baixada Fluminense: São João de Meriti, KM 32, Duque de Caxias, Valverde e Belford Roxo integram a lista. “Tem a Ilsi, Beth, Jô, Marilza, Luciene, Elenice, Nem, Cirlene”, enumera a historiadora sobre suas companheiras de luta. A Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense foi criada a partir da Chacina da Baixada, que aconteceu em 2005.

Estado no banco dos réus 

Coletividade para garantir a vida também é a máxima da ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), conhecida como ADPF das Favelas. Ação proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e construída coletivamente com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, organizações da sociedade civil, coletivos e movimentos sociais ligados às favelas e a mães de vítimas do Estado. A ação pede que sejam reconhecidas e sanadas as graves violações ocasionadas pela política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro à população negra e pobre das periferias e favelas.

O julgamento da ADPF das Favelas no Supremo Tribunal Federal (STF) teve início em 17 de abril, quando o relator, o ministro Edson Fachin proferiu voto sobre algumas das medidas cautelares solicitadas. Após o voto do relator, a sessão foi suspensa por pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes, ainda em abril. No fim de maio, uma coalizão de entidades ingressou com um pedido endereçado ao relator Edson Fachin pedindo a suspensão das ações policiais no Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19. 

No início de junho, em decisão liminar, o Ministro Edson Fachin suspendeu as operações em favelas enquanto durar a crise sanitária. Levada ao plenário, a decisão foi mantida após a maioria do colegiado seguir o voto do relator. Determinando assim, a não realização de operações policiais em favelas durante a pandemia de Covid-19, salvo hipóteses absolutamente excepcionais, devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente e com a comunicação imediata ao Ministério Público. 

Os efeitos da medida cautelar integram o relatório produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), feito em parceria com o Fogo Cruzado. De acordo com a pesquisa, no período de 5 a 19 de junho de 2020, houve uma redução de 68,3% em operações policiais em favelas cariocas. O dado representa uma baixa histórica não vista desde 2007. Além disso, o número de óbitos decorrentes dessas ações também caiu para 75,5%.

A antropóloga e coordenadora do Programa de Direito à vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, Aline Maia, é objetiva ao dizer que a ADPF é uma ação histórica e que promove o direito à vida. “É a primeira vez que o movimento de mães e familiares chega ao Supremo Tribunal Federal. Toda a ação, embora tenha autoria partidária, é resultado de uma intensa mobilização coletiva de muitos atores”, elucida.

“É a primeira vez que o movimento de mães e familiares chega ao Supremo Tribunal Federal. Toda a ação, embora tenha autoria partidária, é resultado de uma intensa mobilização coletiva de muitos atores”

Os próximos passos envolvem uma mobilização mais intensa. Embora a suspensão das operações durante a pandemia seja uma vitória, a ADPF das Favelas tem como objetivo a construção de uma política de segurança pública que garanta a vida nas favelas e periferias. “A votação da ADPF como um todo recomeça no dia 7 de agosto.

É mais uma etapa do processo. Durante essa votação a gente precisa se manter mobilizados para que todos os pedidos que constam na ADPF das Favelas sejam concedidos pelo Supremo Tribunal Federal. Essa é a hora do STF demonstrar para a sociedade que uma política de segurança efetiva é uma política de segurança que tenha o direito à vida como uma premissa básica e fundamental.”, conclui.

O julgamento das medidas cautelares terminou na noite do dia 17 de agosto.  O Supremo Tribunal Federal (STF) impôs novas restrições à política de segurança pública do Rio de Janeiro. Foram proibidos: o uso de helicópteros como plataforma de tiro e terror, a realização de operações policiais perto de escolas e hospitais, e o desfazimento de cena de crimes cometidos por policiais. O STF determinou, ainda, que o Ministério Público investigue as violações cometidas por policiais nas operações e que  a redução de homicídios cometidos pelos policiais volte a valer como critério de gratificação.

Diferentemente da decisão que suspendeu as operações policiais no Rio, as medidas concedidas pelo Supremo em 17 de agosto não estão associadas à pandemia da Covid-19. Em nota, as instituições e movimentos articulados no âmbito da ADPF 635 afirmam "comemoramos a decisão da Suprema Corte brasileira, que reconheceu que as favelas fazem parte da cidade e que a política “do abate” adotada pelo governador Wilson Witzel viola direitos fundamentais e é racista. Continuaremos mobilizados para monitorar e cobrar o cumprimento das determinações. A luta continua!".


 

Gabrielle Araujo | Brasil |

Graduanda em jornalismo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e comunicadora pela Agência de Narrativas Periféricas (Agência NARRA) e integra a comunicação do Observatório de Favelas.

gabrielle@observatoriodefavelas.org.br

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Priscila Rodrigues | Brasil |

Jornalista, coordena a comunicação do Observatório de Favelas e integra a comunicação do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial (Fopir).

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Observatório de Favelas | Brasil |

Fundado em 2001, o Observatório de Favelas é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público sediada no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeiro. dedicada à produção de conhecimento e metodologias visando incidir em políticas públicas sobre as favelas e promover o direito à cidade. A instituição tem como missão construir experiências que superem as desigualdades e fortaleçam a democracia a partir da afirmação das favelas e periferias como territórios de potências e direitos. Desenvolvemos programas e projetos prioritariamente nos seguintes eixos: Direito à Vida e Segurança Pública, Comunicação, Arte e Território, Educação e Políticas Urbanas.

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